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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Teatra"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Teatra”,
de João Telmo e Martim Pedroso
Caracterização | Cátia Bolota
Figurinos | João Telmo, Besta de Estilo
Produção | Nova Companhia
Ponto C - Cultura e Criatividade, Penafiel
27 Set 2024 > 23 Fev 2025


“Qual a personagem que nunca interpretaram, mas pela qual sempre se sentiram seduzidos?” Foi este o desafio lançado a duas dezenas de actores e encenadores, dos mais significativos da cena teatral portuguesa, espevitando-lhes a imaginação e levando à concretização dos sonhos de cada um, apenas que só pela metade. Nas vidas sonhadas para além da máscara, nos ecos do tempo que a memória devolve, os papéis que invejaram na interpretação de outrem, as personagens sugeridas por uma leitura ou uma simples troca de ideias, foram-se cristalizando em desejo, ao encontro do qual se assumiu, em grande medida, o projecto de João Telmo e Martim Pedroso. Assim nasce “Teatra”, um projeto de registo fotográfico de algumas das figuras que mais glorificaram, enobreceram e engrandeceram a arte do Teatro em Portugal. Através dele se arquitecta e imortaliza um legado fotográfico visualmente musculado e integro, o que é tanto mais importante porquanto, nos quase cinco anos que medeiam entre a estreia da exposição no Teatro da Trindade, a 20 de Dezembro de 2018, e o momento em que chega a Penafiel, dois dos vinte retratados partiram já do reino dos vivos.

Sendo a Nova Companhia uma plataforma artística que tem como objetivo basilar o constante questionamento e investigação do teatro e das artes visuais contemporâneas, pretendeu-se com esta exposição erigir uma obra intemporal, que homenageasse de forma magnânima e inaudita as efígies do teatro português. Quem repara nas belíssimas imagens que preenchem alguns dos espaços nobres do Ponto C, percebe isso mesmo, e percebe também que isto de fotografar as maiores figuras do teatro português não é apenas “apontar a máquina e disparar”. Há todo um trabalho de concepção, encenação, caracterização e confecção de figurinos digno de uma grande produção. Atente-se, por exemplo, na imagem que abre a exposição. É um Rei Lear de longas barbas brancas e vestes sumptuosas, a coroa tombada na cabeça, o olhar enlouquecido, quem sabe se após ter tido conhecimento da traição de duas das suas filhas e de ter proferido a sentença de morte de Cordélia, a filha mais nova. O olhar é vivo, mas as rugas em torno dos olhos denunciam certa idade. Aproximamo-nos da legenda e a surpresa invade-nos. É Maria do Céu Guerra, e não poderia ser um Lear mais convincente.

De igual forma, vemos e valorizamos Eunice Muñoz na pele de Doutor Fausto, Ruy de Carvalho como Tenente Columbo ou Isabel Ruth fazendo-se passar por Orlando. Fernanda Lapa é Medeia, Cucha Carvalheiro é Mary Stuart, João d’Ávila é Herodes e Carlos Paulo personifica, de forma extraordinária, Dioniso, de “As Bacantes”, de Eurípedes. O mesmo se poderá dizer de Rui Mendes e Paula Só, Sinde Filipe e Márcia Breia, João Mota e Lourdes Norberto ou Rui Mendes e Lídia Franco, entre outros, em papéis que visitam algumas das mais intemporais obras teatrais, casos de “Hamlet”, de Shakespeare, “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, “Bruscamente no Verão Passado”, de Tennessee Williams ou “A Dança da Morte”, de August Strindberg. Perante gente tão ilustre, é inevitável sentirmo-nos tomados pelo desejo de ver aqueles que aprendemos a respeitar e a amar nos papéis que só ao de leve afloram, certos do sublime que tomaria conta dos momentos em que tal fosse possível. Mais do que uma homenagem, “Teatra” e uma reverência. É afirmar que as tábuas do passado são as tábuas do futuro.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

CONCERTO: "Contar Cantigas" | Paulo de Carvalho



CONCERTO: “Contar Cantigas”
Com | Paulo de Carvalho (voz), Victor Zamora (piano)
Teatro Aveirense
09 Fev 2025 | dom | 2025


Quando, em 1971, alcançou o segundo lugar no Festival RTP da Canção com “Flor Sem Tempo”, música de José Calvário e letra de José Sottomayor, Paulo de Carvalho era um quase estreante nas andanças televisivas: “Foi a segunda vez que eu apareci, mas foi a primeira vez que as pessoas repararam em mim”, recordou. “Contar Cantigas”, o espectáculo que, com o pianista Victor Zamora, levou ao palco do Teatro Aveirense na noite do passado domingo, trouxe precisamente essas memórias de “tempos muito lá para trás, mas onde se fizeram coisas muito boas”. De fora desses primórdios de há mais de seis décadas ficaram os “Sheiks”, que fundaria em 1963 juntamente com  Carlos Mendes, Fernando Chaby e Jorge Barreto, bem como uma passagem fugaz pelos juniores do Benfica, mas outras e boas memórias estavam prestes a serem partilhadas. Assim foi ao longo de mais de hora e meia, o cantor e compositor a mostrar-se um bom contador de histórias e a oferecer ao público a música que gosta de cantar e que continua a encantar, mesmo que a idade não perdoe, a voz já não seja o que era e “uma anca ande para aqui a chatear”.

“Viva a alegria, viva a vida, viva o amor!” O concerto não poderia ter começado da melhor forma, com uma canção “oferecida” há uns anos largos por um conterrâneo, natural do Alentejo e emigrado em França. Foi com ela, cantada “à Capella”, que Paulo de Carvalho abriu um conjunto de 15 + 1 canções, com as quais preencheu um alinhamento que, para além de recuperar um conjunto de temas intemporais, serviu de homenagem a alguns dos maiores poetas e músicos da nossa língua, de José Carlos Ary dos Santos a José Niza, de Fernando Assis Pacheco a Agostinho da Silva. Sob os ritmos do Caribe escutou-se “O Cacilheiro”, já que “ninguém é perfeito” falou-se de “Lisboa, Menina e Moça”, com “Balada para uma Boneca de Capelista” percebeu-se que o azar de uns pode ser a sorte de outros, “O Meu Mundo Inteiro” mostrou que isto das cantigas também é, ou pode ser, negócio de família e “Um Beijo à Lua” lembrou que há diferenças a separar a noite do dia, a mulher do homem. Fazendo um interregno nestas cantigas contadas, Paulo de Carvalho deu o protagonismo ao público e este não se fez rogado, gargantas ao rubro, num abraço às Américas e a Consuelo Velásquez com“Besame Mucho”.

“Maria Vida Fria” e “Calé” levaram os presentes numa viagem pelos mais acolhedores lugares da alma, a qual se prolongou com “E Posto que Viver me é Excelente” e “Caminho Para São Tomé (Sodade)”, no primeiro caso o tampo do piano a fazer de adufe e no segundo o suporte do microfone a servir de tambor. A viagem prosseguiu pela imensidão da África e da América do Sul com a poesia de Rui Mingas, Alda Lara e Sílvio Rodriguez, em temas como “Prelúdio (Mãe Negra)”, “Os Meninos de Huambo” e “Pequeña Serenata Diurna”. Com o concerto a entrar na recta final, “Gostava de vos ver aqui” foi, na verdade do poema, um abraço ao público por “aquele que vos diz que a canção sou eu”, enquanto “Nini dos Meus Quinze Anos” constituiu mais um momento sublime de partilha, com espaço para bailarico de aldeia e um polvo à galega. Como não podia deixar de ser, “E Depois do Adeus”, fechou o serão em beleza, os quatro primeiros versos do poema extraídos “de quatro princípios de quatro cartas de África escritas pelo José Niza para a mulher”, a imporem a sua força, tal como se do começo desse dia inicial inteiro e limpo se tratasse. Foi bonita a festa, Paulo.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

TEATRO: "1984"



TEATRO: “1984”,
de George Orwell 
Adaptação | Robert Icke, Duncan Macmillan
Tradução | Eduardo Calheiros Figueiredo
Encenação | Pedro Carraca
Cenografia e Figurinos | Rita Lopes Alves
Interpretação | Ana Castro, Carolina Salles, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Paulo Pinto, Pedro Caeiro, Raquel Montenegro, Tiago Matias, Victor Gonçalves 
Produção | Artistas Unidos
120 Minutos | Maiores de 14 Anos
Ponto C - Cultura e Criatividade, Penafiel
08 Fev 2025 | sab | 17h00


A viverem o mais conturbado período de uma existência de quase três décadas, ainda sem casa onde morar e em risco de extinção, os Artistas Unidos trouxeram ao magnífico espaço do Ponto C a peça “1984”, de George Orwell, na visão premiada de Robert Icke e Duncan Macmillan. Tendo como ponto de partida um grupo de pessoas que lê o diário de Winston Smith, personagem principal da obra, a peça explora os princípios da “novilíngua”, espécie de idioma assente na remoção e condensação das palavras, assim como dos seus significados comuns, de modo a permitir ao governo autoritário da Oceânia, um dos três super-Estados beligerantes em que o mundo se organizou, restringir e controlar o pensamento dos seus cidadãos. Retrato de uma realidade distópica, “1984” mergulha o espectador num regime totalitário, no qual este elaborado instrumento linguístico impede a expressão dos sentimentos, bem como a criação de conceitos abstratos com recurso à memória, ao mesmo tempo que anula qualquer percepção de poder existir outra linguagem. Com ela, palavras como honra, coragem, vergonha, dignidade e liberdade deixam de existir. É o fim da liberdade de opinião, o fim do livre pensamento.

Protagonista da obra, Winston Smith sonha com um mundo livre. Conhece o processo de alienação. Trabalha no Ministério da Verdade, reescreve o passado conforme a “novilíngua” e tem de destruir a evidência dos factos incómodos para que uma nova história, com novas lógicas e “verdades”, possa ser erigida. Apesar do risco, tem um diário pessoal, o que é pura transgressão. O sentimento de revolta é reforçado quando conhece Júlia e por ela se apaixona. Seduzido por O’Brien e pelo que parece ser um nicho de oposição, Winston acaba por se tornar num peão deste, afinal um agente do regime, e é capturado. No final, para poder sobreviver, sobra-lhe apenas a denúncia e a submissão plena ao Grande Irmão. Num cenário despojado e futurista, a peça convida à reflexão a partir de um conjunto de premissas que a impregnam de uma enorme actualidade. “Não devíamos ter confiado neles” é uma frase escutada recorrentemente e que ganha uma pertinência e um alcance enormes face às convulsões que o mundo sofre actualmente, com a escalada da extrema direita e a ascensão dos regimes fascistas, fortemente securitários, assentes na vigilância e na repressão, inimigos da paz, da liberdade e da democracia.

Verdadeiro teste à tolerância do público face à violência que dela se derrama, a peça coloca em perspectiva a obra-prima de George Orwell, transformando em passado longínquo o futuro que o autor desenhou em 1948 (o título será um anagrama da data), sobre factos ocorridos em 1984, ao situá-lo num vindouro ano para lá de 2050. Assim, para além da história de Winston Smith, que não sabemos se verdadeira ou não, aquilo a que assistimos é à história do próprio romance ao longo do tempo decorrido desde que foi escrito, e de como é que o livro contribuiu ou não para alterar a nossa visão de futuro. Em que tempo situar este comum funcionário do Ministério da Verdade, onde tem como tarefa primária manter a coerência entre os “factos” e o discurso oficial, sabendo que está prestes a cometer um “crimepensar”, a partir do momento em que escrever as primeiras palavras no seu diário? Que “polícias do pensamento” estarão a preparar-se para apagar tudo o que tenhamos feito, interditando a nossa existência passada para, depois, sermos votados ao esquecimento, num processo de eliminação, aniquilação e “despessoalização”?

Quando pensamos no “big brother”, essa figura ambígua que simboliza a liderança num Estado totalitário que tudo vê e tudo escuta, sentimos que George Orwell previu bem o futuro. De facto, é praticamente impossível estar hoje numa sala sem que estejam presentes uma câmara de gravação e um microfone, algo que qualquer dos nossos telemóveis possui. Os mesmos telemóveis que permitem que cada um de nós possa ser alvo de vigilância, escuta e localização. Não apenas por isso, mas também, a peça junte à violência física que se abate sobre os que são presos e torturados, a violência psicológica de nos sabermos encerrados num círculo que se aperta a cada dia, que controla os nossos movimentos e nos vai tolhendo o pensamento e a liberdade de expressão. O colectivo de nove actores que, em palco, se entrega para dar corpo à história, tem uma prestação convincente. Entre quem sonha e quem impede de sonhar, as representações são credíveis na sua essência, intensas na sua verdade. Sem concessões ao supérfluo ou ao excessivo, o ritmo da peça é alucinante e a versatilidade dos cenários permite explorar uma vasta gama de meios, com destaque para o vídeo, que a abrilhantam e enriquecem. Necessária e urgente, “1984” é uma peça a não perder.

[Foto: Teatro Municipal da Guarda | https://www.facebook.com/teatromunicipalguarda]

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

TERTÚLIA LITERÁRIA: "Conversas às 5" | Dora Gago



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Dora Gago
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
06 Fev 2025 | qui | 17:00


As “Conversas às 5" regressaram ao Centro de Reabilitação do Norte na passada quinta-feira, trazendo ao encontro de doentes, colaboradores e visitantes a escritora Dora Gago. Doutorada em Literaturas Românicas Comparadas, mestre em Estudos Literários Comparados e licenciada em Português e Francês, foi investigadora e professora universitária no Uruguai, Macau, Estados Unidos e Portugal. Actualmente é investigadora doutorada integrada do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e lecciona também, a título de professora convidada, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. É autora de livros de poesia, ficção, crónica e ensaio, tendo publicado o seu primeiro livro, “Planície de memória”, em 1997. “Floriram por engano as rosas bravas” e “Palavras nómadas”, este último distinguido com o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores / Câmara Municipal de Braga, são as suas obras mais recentes e foram elas que, em cima da mesa, serviram de base a um momento intensamente livre e enriquecedor de partilha de experiências e conhecimentos.

Tão distante e, porém, tão perto, o mar de permeio a desenhar-se em ouro e prata do lado de lá das vidraças da sala, o Oriente impôs-se na conversa, num inequívoco convite à viagem e ao sonho. Foi Macau o grande protagonista de uma hora de convívio franco e livre, em ambiente intimista, aberto aos presentes em mistério e magia no que encerra de choque cultural, as assimetrias e contradições de vastos territórios e culturas milenares como fonte de espanto e sedução. E foi de sedução que se constituíram as primeiras palavras, das primeiras letras numa pequenina aldeia do barrocal algarvio, onde Dora Gago nasceu e “onde ainda não chegava a luz eléctrica”, ao poema “Peregrina do Amor”, publicado numa revista no início da adolescência. Mas foi, sobretudo, a sedução decorrente da experiência de uma visita a Macau e Hong Kong, em Agosto de 1991, a cultura portuguesa tão presente, certos traços arquitectónicos a mostrarem Macau como território intrinsecamente português, que levaram a convidada a interiorizar, mais do que uma vontade, uma certeza: “Sempre acreditei que voltaria a Macau”, conforme as palavras deixadas na abertura do livro “Floriram por engano as rosas bravas”.

Dora Gago voltou em 2011, como professora de português na Universidade de Macau, a qual integra, neste momento, o maior departamento de Português do mundo, com mais de trinta professores a leccionarem a nossa língua. Por lá permaneceu uma década, o território já sob administração da China, e talvez ainda lá estivesse, não fora uma pandemia mostrar, em simultâneo, o lado negro da doença e de um regime político de partido único como é o chinês. Sobre esta permanência estendida no tempo, falou a escritora de múltiplas experiências que não se resumiram a Macau, abraçando os vizinhos Laos, Tailândia, Malásia, Vietname e outras regiões da própria China. Foi tempo de mostrar uma sociedade marcadamente patriarcal e a predominância das personagens femininas na sua escrita, os nove tons do cantonês e o “risco de insultar as pessoas sem querer”, a violência de um tufão e a loucura do jogo nos Casinos, o impacto na sociedade da política do filho único e a grande afluência às bibliotecas de Macau. Também de Saramago, Lídia Jorge ou António Lobo Antunes e as suas obras traduzidos para chinês, a quase veneração de Maria Ondina Braga e Camilo Pessanha, sobre os quais caiu o pano de uma sessão feita de “palavras coladas à alma”, a conversa como sementes plantadas no coração dos presentes. Sementes das quais certamente florirão, em beleza e harmonia, todas as rosas bravas que a imaginação possa conter.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #92



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #92
Com | Patrícia Rodrigues, Tânia Dinis e Mário Macedo
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
06 Fev 2025 | qui | 21:30


Fazendo orelhas moucas às “regras da sensatez”, o público Shortcutz Ovar fez questão de voltar, ainda e sempre, “ao lugar onde já foi feliz”. No arranque da 9.ª temporada, foi vê-lo invadir a Escola de Artes e Ofícios com o entusiasmo e animação de sempre, atento, comprometido, participativo, numa sessão com tanto de variedade como de qualidade para oferecer. Grande anfitrião do Shortcutz Ovar, Tiago Alves começou por falar da temporada que agora começa, referindo que se encontram programadas vinte e quatro curtas-metragens, sendo o equilíbrio uma constante em matéria de géneros cinematográficos, com seis primeiras obras, seis documentários e seis filmes de imagem animada. Metade das obras a exibir serão de ficção e metade dos realizadores convidados pisará pela primeira vez o chão da belíssima Sala Expande. “Quebrar com a normatividade das narrativas” foi outro dos princípios que presidiu à selecção das obras, prometida que está uma temporada “desafiadora, surpreendente e estimulante”. Refira-se, ainda, que Laura Rui e Leandro Ribeiro se irão manter no júri do certame, o qual integrará este ano a realizadora e actriz Ágata de Pinho, em substituição de Ana Vilaça.

Como vem sendo hábito, foi um filme de imagem animada a dar o pontapé de saída neste ano de curtas que agora começa, com a exibição de “Três Virgula Catorze”, conceito que se reparte entre o território da palavra e dos números e cujo valor aproximado - 3,1416 - todos conhecem, mas ninguém sabe o que fazer com ele. Com realização de Joana Nogueira e Patrícia Rodrigues, o filme reflecte sobre a condição de crianças diagnosticadas com perturbação de hiperactividade e défice de atenção e que lutam contra a sua própria visão do mundo e com o que esperam delas. Com um forte cunho documental, sobretudo no que encerra de investigação e pesquisa, o filme constitui um importante ponto de partida para o debate sobre crianças com este tipo de distúrbio, nomeadamente em contexto escolar. Combinando o desenho 2D com o stop-motion, essa forma magnífica de “falar com as mãos”, o filme revela-se primoroso na sua componente técnica, num colorido vibrante e objectos expressivos. Mas é nas questões que convoca que reside o seu maior valor, colocando o dedo nas feridas da sobremedicação e da “normalização” à força de químicos, das repercussões comportamentais no futuro destas crianças, na forma como a escola as discrimina e reprime, em vez de as proteger e integrar.

De “filhas dos homens que nunca foram meninas”, nos fala “Tão pequeninas, tinham o ar de serem já crescidas”, a segunda obra da noite. Com realização de Tânia Dinis, o filme fala das mulheres que, provenientes, sobretudo, das regiões de Trás-os-Montes, Minho e Beira Alta, vieram para o Porto ainda meninas, trabalhar como criadas de servir. De crianças a cuidar de crianças nos fala um filme que combina o tratamento ficcional e documental, e parte do arquivo fotográfico e de imagens reais e do testemunho tal de várias mulheres que sofreram esta condição. Nesta visão das “Marias” e “burras de carga”, a realizadora rende homenagem a vidas que contam, fazendo questão de dar voz a quem nunca a teve na sua aspiração por um trabalho digno e um salário justo, por educação, habitação, respeito pelo tempo livre, direito a constituir família. Tânia Dinis, porém, vai mais longe e, num anúncio de jornal que é lido em “off”, lembra que a discriminação e o preconceito permanecem portas adentro, hoje com mulheres do Leste, do Brasil ou de outros países da América Latina. Um filme fundamental, que reuniu a maior fatia de consenso entre as obras exibidas e é, desde já, o primeiro finalista ao Prémio do Público da temporada.

Os ambientes da infância voltam a servir de pano de fundo ao filme que encerrou a sessão. “That’s How I Love You”, ficção de Mário Macedo rodada na Croácia, leva-nos ao encontro de uma ruralidade que nos parece familiar, e de Viktor, uma criança de férias em casa dos avós. Através do seu olhar de menino, o espectador mergulha nas próprias memórias, percebendo o esbater de diferenças culturais, sociais e geográficas e a forma como as diversas narrativas confluem para o lugar-comum da infância, domínio de aventuras, emoções, assombros, medos e violência, e onde pequenos dramas e pequenas conquistas se misturam e confundem. As histórias assustadoras contadas à mesa, um passeio de mãos dadas com o avô, uma canja de galinha, um pássaro na mira de uma flóber ou o primeiro cigarro, são marcas que perduram e ainda nos fazem sorrir. Destaque para a forma como Mário Macedo conduz esta ficção - e que lhe valeu o Grande Prémio Competição Internacional do Curtas Vila do Conde -, fazendo-a assentar num menino de oito anos, Viktor Fabiančić, tocante de expressividade, surpreendente de carisma.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

CINEMA: "A Semente do Figo Sagrado"



CINEMA: “A Semente do Figo Sagrado” / “Dâne-ye anjîr-e ma'âbed”
Realização | Mohammad Rasoulof
Argumento | Mohammad Rasoulof
Fotografia | Pooyan Aghababaei
Montagem | Andrew Bird
Interpretação | Soheila Golestani, Missagh Zareh, Setareh Maleki, Mahsa Rostami, Niousha Akhshi, Reza Akhlaghirad, Shiva Ordooie, Amineh Mazrouie Arani, Mohammad Kamal Alavi, Parisa Mohyedini, Barat Azimi
Produção | Rozita Hendijanian, Mohammad Rasoulof, Amin Sadraei, Jean-Christophe Simon, Mani Tilgner
Irão, França, Alemanha | 2024 | Drama, Thriller, Crime | 167 Minutos | Maiores de 14 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 5
07 Fev 2025 | sex | 13:10


Enquanto o cineasta dissidente Mohammad Rasoulof se encontrava detido numa prisão iraniana, o mundo do lado de fora daquelas paredes vivia momentos tumultuosos. O movimento “Mulher, Vida, Liberdade” exibia furiosamente a sua revolta contra as regras obrigatórias do uso do hijab, acabando por se tornar rapidamente num veículo para uma variedade de insatisfações a ferver dentro do Irão. Depois de ser libertado, Rasoulof sabia que tinha de abraçar a causa e responder à mobilização dos cidadãos pela liberdade, e a sua contribuição para esse esforço foi a realização de um novo filme. Numa sociedade submetida à lei dos ayatollahs, não foi fácil reunir o elenco e a equipa que correspondessem à vontade do realizador e que se mostrassem dispostos a assumir os riscos de um projecto deste tipo. A verdade é que, contra todas as expectativas, foi possível iludir o sistema de censura e, no final, a coragem da equipa foi a força motriz que permitiu levar a cabo “A Semente do Figo Sagrado”, um filme que capta o risco de lutar contra um estado securitário e fortemente repressivo e a esperança de mudanças significativas rumo à liberdade e à democracia.

Dispensando arquétipos, “A Semente do Figo Sagrado” dá a ver os macro-conflitos que envolvem a sociedade iraniana através da micro-unidade de uma família. Iman dedica-se à magistratura no Tribunal Revolucionário Islâmico ao ponto de lhe ser atribuída uma arma para sua protecção. Mas, quando a arma desaparece, a sua paranóia crescente leva-o a suspeitar que as mulheres da sua família estão por detrás do desaparecimento. Dado que o realizador situa a acção no contexto dos protestos, as assertivas filhas adolescentes de Iman, Rezvan e Sana, despertam as maiores suspeitas. Mas a sua esposa, Najmeh, dividida entre a obediência e um desejo crescente de independência, não escapa à suspeita de conspirar para minar a sua autoridade. O filme mostra que o actual regime iraniano só se mantém no poder através da repressão que exerce sobre o seu próprio povo. A arma aqui é uma metáfora da violência da ditadura e, além disso, a única alternativa para as mulheres reivindicarem a sua liberdade (a arma das mulheres oprimidas é, com efeito, a sua força de vontade de resistir até ao fim, como a figueira que, simbolicamente, envolve os ramos da árvore).

Entre o thriller e o drama, a dinâmica desta família é utilizada por Rasoulof para delinear, na sua síntese discursiva, um comentário sociopolítico sobre as injustiças e as consequências da violência contra as mulheres, compreendido a partir da perspectiva de um burocrata doutrinado que reprime as sensibilidades feministas da sua mulher e das suas duas filhas na defesa irracional da ética doutrinária do radicalismo islâmico que governa a sociedade iraniana com mão de ferro. Enquanto mulheres que lutam contra a dominação patriarcal, as actrizes têm interpretações brilhantes na sua verdade e consistência. É igualmente credível a prestação de Missagh Zareh, no papel de pai autoritário, que cai no abismo ao adoptar medidas draconianas contra as únicas mulheres da sua família. A encenação dos espaços herméticos é notável, como notáveis são a iluminação natural, a música envolvente e a abordagem documental dos protestos sangrentos nas ruas de Teerão, através do recurso a imagens reais captadas com telemóveis. Urgente e necessário, este é um filme intenso, que denuncia a grave situação do Irão através do olhar de uma família desfeita.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Cinco Relíquias, Cinco Fotógrafos”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Cinco Relíquias, Cinco Fotógrafos”,
de Pedro Ferreira, Lucília Monteiro, Beatriz Vilhena, Sebastiano Raimondo e Paulo Serafim
Coordenação | Paulo Catrica
Museu de São Roque
24 Jan > 13 Abr 2025


O costume de venerar relíquias dos santos cristãos remonta às catacumbas da Roma Antiga, onde se concentravam muitas sepulturas cristãs. Com o alargamento do Cristianismo a outras regiões e com a construção de igrejas, passaram a ser disseminadas parcelas de relíquias corporais ou, na falta destas, objetos relacionados com os santos. Já na Época Moderna, deve-se à Companhia de Jesus o grande incremento do culto às relíquias em Portugal. O Museu e a Igreja de São Roque alberga um dos maiores acervos de relíquias de santos, da doação de João de Borja às relíquias da Capela de São João Batista, inscritas em centenas de relicários. Através delas contam-se vidas, hagiografias e todo um percurso dos poderes na construção da santidade pessoal de cada um dos santos. Nelas se abrigam devoções, uma variada dimensão material, poderes de intercessão que só a fé explica. Na sua essência, percebe-se o quão profundamente enraizadas estão nas culturas do nosso território - procissões, romarias, rituais de toque e devoção, comidas, canções, tradições - e de que forma se destacam na paisagem.

O que são relíquias? Porquê relíquias? Que relíquias há? Que relação têm as relíquias com os relicários? E como se relacionam com as muitas vidas e virtudes dos santos? E com as suas imagens esculpidas e pintadas? E que ligação há entre devotos de santos, as suas relíquias e Deus? Em conclusão, como descrever e estudar a extraordinária colecção e relíquias da Igreja e Museu de São Roque? Estas são algumas das muitas perguntas que desenham o “reliquiarum”, projecto que o Museu vem construindo desde 2022 com inventariação, jornadas de estudo, exposições, edições e co-edições. Assente nas mais modernas tecnologias, boas práticas museológicas e na rede de contactos em torno do tema pelo mundo fora, o “reliquiarum” assume o objectivo de responder às dúvidas e questões de investigação que se levantam em torno desses pequenos e quase escondidos objectos de devoção, por meio de aproximações que partem de um inventário exaustivo e de cruzamentos de saberes da área das artes sociais e humanas.

A exposição “Cinco Relíquias, Cinco Fotógrafos” integra, através da fotografia, um olhar artístico contemporâneo sobre a relíquia. Desta forma, ao visitante é dada a possibilidade de perceber a relíquia enquanto imagem, através da aproximação fotográfica que possibilita o acesso a pormenores que à vista desarmada não são visíveis. Dentro da lógica de investigação do projeto “reliquiarum”, estas foram, em traços gerais, as dimensões de inquérito colocadas aos fotógrafos Pedro Ferreira, Lucília Monteiro, Beatriz Vilhena, Sebastiano Raimondo e Paulo Serafim, sob a coordenação de Paulo Catrica. A variedade de olhares de quem aponta, ilumina, dispara e edita, são a prova do interesse que o tema despertou nos artistas e que agora se oferece ao visitante em novas visões, novas perspectivas, novas linguagens artísticas, novas leituras, novas dimensões. De luz, paz, dignidade, força e vida se faz uma exposição que pede a cada um de nós que observe, veja, pense, sinta e se imagine como fotógrafo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

LUGARES: Igreja do Sagrado Coração de Jesus



LUGARES: Igreja do Sagrado Coração de Jesus
Rua Camilo Castelo Branco, 4 - Lisboa
Horários | De segunda a sexta-feira, das 09h00 às 19h30; domingos, das 11h00 às 12h00; encerra aos sábados


“A uma igreja que arquitetonicamente se abre para a cidade parece legítimo propor que a cidade se introduza no seu organismo.”
Pedro Vieira de Almeida, revista Arquitectura

Se há um ano atrás me dissessem que estaria hoje a falar da Igreja do Sagrado Coração de Jesus e a mencioná-la como “absolutamente a visitar” nas páginas do blogue, certamente torceria o nariz. Foi Valdemar Cruz e o seu extraordinário “Paisagens Construídas - O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras”, edição de autor de Novembro de 2023, que me “iluminou o caminho” para a Igreja. Encontrei-a no espaço de um bairro como que despojada, quase anónima, despida da habitual iconografia, “pobre entre os pobres”. No seu descuidado caminhar, creio que poucos serão aqueles que, de passagem por esta parte da cidade, percebam estar perante um templo católico, tão pouco chamativa ela se mostra, à excepção de um discreto carrilhão, não facilmente avistável. Na vasta nave deparei-me com um espaço de culto totalmente vazio numa dimensão acolhedora, a luz exterior a jorrar de dois altos janelões e a preencher o espaço de cambiantes de cor inesperados, os pormenores arquitectónicos a convocar atenção e espanto, o cunho brutalista na verdade dos materiais construtivos a impor-se no conjunto da obra como metáfora da condição humana, as vigas de betão e o tijolo sem nada que os cubra.

Obra dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, a Igreja abriu ao culto em 1970. Localizada numa zona central de Lisboa, funde-se com a cidade e faz com que esta se dilua nos meandros do templo ao criar espaços públicos de acesso e de ligação entre as ruas circundantes, o que surgia como uma contestação ao esquema tradicional de concepção de igrejas, “fazendo desaparecer o objecto arquitectónico enquanto elemento isolado”, conforme descrito pelo júri do concurso que viria a atribuir aos dois arquitectos a responsabilidade de erguer o projecto, num concurso que avaliou catorze trabalhos, envolvendo um total de sessenta e seis arquitectos. Os jurados notam “a forma inteligente como se faz assentar o santuário sobre uma sucessão de espaços sagrados sobrepostos (câmaras mortuárias e criptas dos altares secundários), caracterizando-os e dando-lhes continuidade por meio do elemento estrutural em que se apoia a laje do santuário, o qual, segundo a intenção histórica expressa na memória descritiva, como que funda directamente no terreno todos os altares’ ”. No seu livro, Valdemar Cruz fala de “um imenso fator de estranheza brotado por aquele corpo desenvolvido em sete pisos, construído ao longo de quase uma década em que o projecto passa por várias alterações”.

Recorro ainda a Valdemar Cruz e àquilo que escreveu sobre “um templo revolucionário num país em ditadura”, referindo que “o alcance e a rutura provocados pelo projeto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus só é compreensível à luz dos múltiplos caminhos de questionamento e reflexão há muito desenvolvidos pelos autores do projeto: os católicos progressistas Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. O resultado é uma transformadora mudança no contexto da arquitetura religiosa e nos costumes litúrgicos, ao democratizar, não apenas o espaço de culto, como as zonas exteriores de circulação, abertas a todos, seja qual for o seu credo.” É emocionante perceber os contornos políticos, sociais e religiosos que envolvem toda a história do projecto e construção do templo, e onde cabem, nomeadamente, as recomendações do Concílio Vaticano II, concluído no pontificado de Paulo VI, em Dezembro de 1965. É o espírito do Evangelho contido nos preceitos de “Pureza - Verdade - Pobreza - Paz”, assumido como condição para o desenvolvimento de uma arquitectura de inspiração cristã, que norteia o trabalho dos arquitectos. Hoje, como outrora, acredito que a opinião dos crentes não seja consensual, numa igreja pouco magnificente e sem as costumeiras capelas nas naves laterais. Mas a riqueza dos seus significados e o inquestionável valor arquitectónico fazem dele um templo de visita obrigatória. Acrescentarei que a Igreja do Sagrado Coração de Jesus foi Prémio Valmor em 1975 e é Monumento Nacional desde 2010.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

TEATRO: "A Médica"



TEATRO: “A Médica”,
de Robert Icke
Tradução | Ana Sampaio
Encenação | Ricardo Neves-Neves
Cenografia | Fernando Ribeiro
Figurinos | Rafaela Mapril
Interpretação | Adriano Luz, Custódia Gallego, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Pedro Laginha, Rita Cabaço, Sandra Faleiro e Vera Cruz
Produção | Teatro do Eléctrico
Teatro da Trindade Inatel - Sala Carmen Dolores
02 Fev 2025 | dom | 16:30


Uma menina de 14 anos está a morrer numa cama de hospital. Um padre católico, amigo dos pais da criança, vê negada a sua pretensão de auxílio espiritual a uma vida prestes a deixar de o ser. A recusa intransigente parte de Piedade Lobbo, directora do Hospital, a Médica a que alude o título da peça. Justifica-se com a necessidade de garantir serenidade à doente num momento delicado, diz nada ter que prove ser essa a vontade dos pais, garante que, sendo a criança menor, é ao médico que cabe qualquer tomada de decisão. O padre insiste, não aceita a recusa, informa que vai gravar a conversa, a confusão instala-se. Há insultos e ameaças, talvez haja mesmo uma agressão física. Afinal, o que poderá estar na origem de uma tomada de posição tão pouco compreensiva por parte da médica? O facto de ser mulher, branca e judia, face a um homem, negro e católico, terá algo a ver com a decisão? A menina morre e o caso é tornado público. Piedade Lobbo será suspensa de funções, num processo ao qual não serão alheias as questões éticas e deontológicas da profissão médica, os valores morais da Igreja, as diferenças de género, a manipulação da opinião pública, a promiscuidade entre a política e os negócios, a desinformação digital, os julgamentos em praça pública.

O caso da criança entre a vida e a morte toma conta da peça desde os primeiros momentos. Os factos são apresentados na sua forma mais crua e o público vê-se obrigado a “entrar na peça”, a tomar partidos. A tão propalada humanização nos serviços de saúde parece não se coadunar com a decisão médica de negar a presença de um padre à cabeceira de uma doente, e isto até os menos familiarizados com as dinâmicas no seio das equipas médicas são capazes de adivinhar. Piedade Lobbo não terá contra si apenas alguns dos médicos do Conselho Geral ao qual preside, mas também uma boa parte do público. Mas não é só na cumplicidade imediata com cada um dos espectadores que a peça marca pontos. Também a qualidade das interpretações é posta em evidência, desde a chegada de um novo interno à equipa ao diálogo final da médica com o padre. No leque de actores, sobretudo Adriano Luz e Rita Cabaço nos seus papéis, complementando da melhor forma o desempenho excelente de Custódia Gallego. Será ela que, no papel de Piedade Lobbo, se irá metamorfosear ao olhar do público, abandonando a sua dureza, implacabilidade e orgulho à prova de bala, desmoronando-se face a tanta agressividade por parte de quem não a conhece, para mostrar o seu lado frágil e profundamente humano, dando nisso a mais bela prova da sua inocência.

Adaptação contemporânea de Robert Icke, da peça de 1912, “Professor Bernhardi”, de Arthur Schnitzler, “The Doctor”, no original, coloca-nos perante um conjunto de temas que estão na ordem do dia. Partindo dessa espécie de braço de ferro da medicina e da ciência com a religião, o texto possui um lado engenhoso que consiste em deixar as questões em aberto, em busca de respostas que cada um terá (ou não) dentro de si. Ciência, religião, sexualidade, identidade ou racismo, são como cartas atiradas para a mesa de todas as discussões, ora funcionando como um desafio às nossas convicções, ora mostrando a forma como lidamos com o preconceito e tendemos a falar daquilo que não sabemos. Ora, é precisamente aqui que a peça afirma a sua força, ao confrontar-nos com uma lutadora pelos direitos humanos e pela dignidade que se impõe a qualquer pessoa, e todavia uma mulher isolada, incapaz de fazer valer os seus argumentos e provar a sua inocência, vítima de uma sociedade onde a tão proclamada igualdade está longe de ser uma realidade. Num quadro de adulteração de princípios, rendidos cada vez mais ao imediatismo, ao consumismo e à globalização, é premente não esquecer que neles se fundam os valores da nossa vida em sociedade e que a sua rejeição é uma via directa para o caos. “A Médica” ajuda a que não nos esqueçamos disso.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

EXPOSIÇÃO: “Às Armas ou às Urnas”



EXPOSIÇÃO: “Às Armas ou às Urnas”
Organização | Estrutura de Missão para as Comemorações do Quinquagésimo Aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974 
Coordenação Geral | Maria Inácia Rezola, Marta Lourenço
Curadoria, textos e investigação | Bruno Cardoso Reis, David Castaño, Gonçalo Margato 
Concepção e museografia | António Viana
Museu Nacional de História Natural e da Ciência
26 Set 2024 > 16 Fev 2025


Portugal acordou, na madrugada do dia 25 de abril de 1974, ouvindo na rádio comunicados de um até aí desconhecido Movimento das Forças Armadas. Os militares estavam nas ruas, mas as dúvidas persistiram durante horas: seria para derrubar ou para endurecer o regime? Seria para pôr fim à guerra contra os movimentos independentistas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau ou para a intensificar? Por África, tinham passado, desde 1961, cerca de 800.000 soldados e os combates tinham provocado milhares de vitimas civis e militares, entre portugueses e africanos. Como qualquer guerra de guerrilha, esta não tinha solução militar convencional. Além de representar mais de 20% dos gastos do Estado, começara a afetar significativamente a capacidade de recrutamento de oficiais do quadro, o problema que esteve directamente na origem do MFA. O movimento começou por reunir oficiais para defenderem a sua carreira, que, depois, concordaram que o fundamental era pôr fim à guerra e ao regime, temendo a repetição do que sucedera com a ocupação indiana de Goa, em 1961: serem culpados por uma derrota previsível.

A operação «Fim de Regime» foi um golpe militar clássico para controlar as sedes dos poderes do Estado e infra-estruturas críticas. Planeada e executada por militares, não deve ser ignorada a influência dos opositores civis, que tinham combatido a ditadura durante décadas de violenta repressão, dando sinais de renovado vigor com o Congresso de Aveiro, em abril de 1973, de onde saiu a tese dos três D - Descolonizar, Democratizar, Desenvolver - incorporada no Programa do MFA. No final do dia 25 de abril, a RTP transmitiu imagens da Junta de Salvação Nacional, orgão máximo de uma nova estrutura provisória de poder militar e político, mas as grandes questões sobre o futuro continuavam por responder. Nos meses seguintes, assistiu-se a uma multiplicação de propostas alternativas para o futuro do pais, tendo o MFA acabado por assumir um papel militar e politico preponderante, o que conduziu a um longo processo de transição para uma democracia plena no modelo da Europa Ocidental, concluído em 1982. É a história desta transição, marcada por dois períodos distintos, que “Às Armas ou às Urnas” nos conta.

Apoiada em inúmeros documentos - onde não faltam a pintura de Nikias Skapinakis ou de Maria Helena Vieira da Silva, a fotografia de Alfredo Cunha, as primeiras páginas dos principais jornais nacionais, excertos de peças televisivas, cartazes de propaganda política e até um disco dos GNR e um cartoon de António, entre outros -, a exposição viaja pela nossa história comum, destacando os anos de 1974 e 1975, a adesão popular ao 25 de Abril, o primeiro 1º de Maio e as primeiras eleições livres. Sob o signo da instabilidade, a descolonização, o verão quente de 1975, o 25 de Novembro e o 11 de Março, a morte de Francisco Sá Carneiro ou a entrada do FMI, são outros dos assuntos estruturantes da mostra. A institucionalização da democracia, a revisão constitucional de 1982 e o movimento de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia fecham, por assim dizer, o conjunto de temas em destaque. Aula aberta sobre o 25 de Abril, “Às Armas ou às Urnas” será, porventura, a melhor exposição sobre o mais relevante momento social e político da nossa história que pude presenciar. No Museu Nacional de História Natural e da Ciência, só até ao próximo dia 16 de Fevereiro.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

EXPOSIÇÃO: “Impressões Digitais. Coleção MNAC”



EXPOSIÇÃO: “Impressões Digitais. Coleção MNAC”
Curadoria | Ana Guimarães, Emília Ferreira, Maria de Aires Silveira e Tiago Beirão Veiga
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Exposição de longa duração (inauguração em 12.dez.2024)


Depois de sete exposições temporárias, entre 2018 e 2023, em que o Museu Nacional de Arte Contemporânea apresentou vários núcleos da sua colecção, privilegiando obras que nunca haviam sido expostas, a nova exposição de longa duração reúne autores conhecidos de todos e novas entradas na colecção, de artistas contemporâneos. Com curadoria de Ana Guimarães, Emília Ferreira, Maria de Aires Silveira e Tiago Beirão Veiga, esta exposição integra obras fundadoras da historiografia da arte portuguesa contemporânea, de 1850 à atualidade, entre as quais vários tesouros nacionais. Do retrato à paisagem, passando pela abstração e por várias outras linhas de experimentação artística, a colecção do MNAC tem vindo a crescer de forma exponencial nas últimas três décadas, na sua grande maioria graças aos criadores nacionais, com uma expressão crescente de artistas mulheres, o que constitui “um legado ímpar, histórico e emotivo, de algum modo tão identitário como as nossas impressões digitais”, conforme afirma Emília Ferreira, Diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea.

O percurso por estes 170 anos de história, patente no edifício Wilmotte, coloca em diálogo pintura, desenho, fotografia, gravura, escultura, instalação e vídeo. A maqueta do “Monumento ao prisioneiro político desconhecido”, de Jorge Vieira, abre-nos a porta de uma viagem por quase dois séculos da nossa melhor pintura e escultura. A peça constitui uma síntese linear possibilitada pelo bronze, solicitando uma participação dos espaços vazios que são sobrepostos e encadeados. É desde os pés cravados no chão, definindo também eles um espaço vazio emergente, que se projecta uma continuidade espacial ascendente travada pelo encadeamento que os filamentos de bronze impõem com uma certa tensão. A sugestão de um movimento ascendente, que é assim reprimido, encontra no título uma relação directa com o mundo. Está dado o mote para a exposição de longa duração, cujas obras se mostram além do seu significado artístico, abrindo-se nas suas dimensões políticas, sociais, culturais e pessoais.

Ao avançarem com esta “remodelação”, os curadores tiveram a sensibilidade de não a transformar numa simples troca das obras que fazem parte do espólio do Museu, fazendo com que o público não ficasse privado do contacto com os seus quadros favoritos e com os quais se relacionam de uma forma quase afectiva. Numa leitura muito pessoal, foi muito bom poder rever “Vendedeiras”, de Querubim Lapa, “Retrato de Manuel Mendes”, de Sarah Afonso, “A Sesta”, de José Malhoa, “O Grupo do Leão”, de Columbano Bordalo Pinheiro, “Éguas de Manada”, de Dordio Gomes, “Pousada de Ciganos”, de Eduardo Viana, “Jogo de Damas”, de Abel Manta, “Gadanheiro”, de Júlio Pomar, “O Poeta e o Anjo”, de Mário Eloy e a belíssima “Viúva da Nazaré”, fotografia de Varela Pècurto. “A Blusa Azul”, de Adriano Sousa Lopes, “Episódio com um Cão”, de António Dacosta, “Pequena Fiandeira Napolita”, de Silva Porto, “Lisboa e o Tejo; Domingo”, de Carlos Botelho e “Cabeça” de Guilherme Santa-Rita são gratas surpresas.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

TEATRO: "War Maker"



TEATRO: “War Maker”
Direcção | Husam Abed
Dramaturgia | Marek Turošik
Direcção artística | Astrid Mendez
Cenografia | Katarina Cakova, Astrid Mendez
Produção | Dafa Theatre
50 Minutos | Maiores de 12 Anos
A SEDE
31 Jan 2025 | sex | 2130


“Sabes exactamente o que deixaste para trás: um passado que não figura em canções sobre os novos troianos, dos quais nada é dito a não ser o que os inimigos relatam. Mas eles não raptaram Helena nem causaram a guerra. Eram bondosos e pacíficos, o seu único crime foi terem nascido em encostas comparadas às escadas que conduziam a Deus. Eram corajosos sem espada, espontâneos sem retórica, pelo que alquebraram diante dos tanques, foram deslocados e espalhados pelo vento sem perderem a fé no dia em que a ferida da História sararia. // Portanto, quem és tu nesta viagem? Um poeta troiano que escapou ao massacre para contar a história, ou uma mistura de troiano e grego que se perdeu a caminho de casa?”
Mahmoud Darwish, in Na Presença da Ausência

Baseado na história real do artista palestiniano Karim Shaheen, “War Maker” é um exercício de teatro simples e eficaz, relevante na sua genuinidade, determinante na sua autenticidade, significativo na sua mensagem. Acompanhando o percurso de exílio de Karim - do Iraque ao Kuwait, da Síria à antiga Jugoslávia, da Hungria aos Estados Unidos - a peça faz-se de memórias estilhaçadas, onde se cruzam os namoros e o sofrimento de quem perdeu um braço, as sirenes que anunciam os ataques aéreos e um balde de pipocas, crianças recrutadas para servir no exército e soldadinhos de chumbo, o som dos bombardeamentos e a saga da Guerra das Estrelas. Sozinho em palco, rodeado de malas que são, como veremos, lugares de passagem num trajecto marcado por violentos conflitos armados, Husam Abed opta pela língua árabe (com legendas em inglês e português) para contar os sonhos e pesadelos de uma criança obrigada a fugir constantemente da guerra que tudo queima em redor, o que a leva a questionar-se se não será ela uma “war maker”, a grande causadora de tudo o que acontece à sua volta, para onde quer que se desloque.

Encenador, realizador, intérprete, marionetista, músico e produtor, Husam Abed conheceu Karim Shaheen no campo de refugiados de Yarmuk, em Damasco, na Síria. Foi aí que soube da sua enorme paixão por filmes de ficção científica e do seu sonho de vir a tornar-se um designer de efeitos visuais na Estados Unidos da América. Deportado da Síria em 2000, deu por si exilado na Jugoslávia e na Rússia, depois na Ucrânia, na Roménia e na Hungria, até chegar aos Estados Unidos, o país com que sempre sonhou, graças ao seu labor artístico e ao reconhecimento do seu trabalho. Mas será que a história acaba aqui, conhecidas que são as políticas da administração Trump em matéria de imigração? Um respeitador silêncio toma conta da sala. Ante o olhar do público, é o drama de milhões de refugiados que se concentra numa só pessoa, dividida entre o amor, os sonhos e as ligações familiares. Memórias da guerra, questões identitárias e exemplos da fragilidade humana fazem do palco uma verdadeira caixa de ressonância, chamando a atenção para uma realidade que constitui uma mancha vergonhosa na face da Humanidade.

Estreada em 2022, “War Maker” combina performance teatral, arte visual, teatro de objectos e meios multimédia. É uma forma de teatro alternativo, que documenta e ficciona, ao encontro de uma prática pública que pretende expressar e abordar questões e preocupações que se colocam às comunidades onde é apresentada. Mais do que uma forma de entretenimento puro e simples, a peça é um meio de auto-expressão, que desafia estereótipos, promove a consciencialização cívica e conecta pessoas por meio do teatro. A produção é do Dafa Theatre, companhia sediada em Praga, na Chéquia, e cujo nome, “Dafa”, provém do árabe e significa “calor”. Um calor que conforta e que se estendeu ao público que, n’A SEDE, foi livre de imaginar, sonhar e reforçar a convicção de que é urgente agir em prol da construção de uma sociedade mais justa e solidária. “Dafa” é, assim, o oposto de isolamento e alienação. É o que resiste quando os direitos humanos são violados, quando falham a educação e a saúde, quando a água e o ar são contaminados, quando os recursos naturais estão nas mãos de apenas alguns. Contra tudo isto, o Teatro resiste. O Teatro é liberdade!

[Foto: Dafa Theatre | https://dafatheater.com/]

sábado, 1 de fevereiro de 2025

LIVRO: "Sem Destino"



LIVRO: “Sem Destino”,
de Imre Kertész
Título original | “Sorstalanság” (© 1975 Imre Kertész)
Tradução | Ernesto Rodrigues
Ed. Editorial Presença, Maio de 2003 (5ª edição revista, Janeiro de 2025)


“Na verdade - soube-se a pouco e pouco, e já nem sei bem de que maneira -, aquela chaminé, aqui em frente, não era de uma fábrica de curtumes, mas de um "krematorium", isto é, de um forno de incineração, como me explicaram. É claro que passei a observá-la melhor: era uma chaminé compacta e facetada, com uma boca larga e pesada, como se a tivessem golpeado em cima. Confesso: à parte um certo respeito - para lá do cheiro, naturalmente, em que já estávamos atolados, como numa espécie de lama fervente de pântano -, não sentia nada. Só que, ao longe, vimos outra chaminé, e outra, e, já na fímbria luminosa do céu, outra, espantados que duas delas cuspissem fumo, como a nossa, e os que distinguiam ao longe, atrás de um arremedo de bosque raquítico, uma nuvem de fumo que se elevava, tinham decerto razão, e perguntavam-se, justamente, pensava eu, que epidemia fazia assim tantos mortos.”

Não é fácil encontrar as palavras certas para descrever as emoções que se desprendem da leitura de “Sem Destino”, relato lúcido da brutalidade e do terror sob o jugo nazi no campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau. Também não tenho a certeza de, ao usar as frases que me parecem mais adequadas, estar a respeitar devidamente o viver e o sentir de Imre Kertész, ele próprio um sobrevivente do Holocausto. Mas como falar de um horror que nenhuma imaginação comporta? Narrando a história de György Kövés, um judeu húngaro em plena adolescência, o livro começa por evidenciar uma candura que faz com que o protagonista não tenha consciência imediata do perigo que se abriga na imparável ascensão do regime expansionista nazi e da afirmação de um brutal anti-semitismo, o que o leva a encarar a estranheza do momento com esperança e optimismo, como se de uma aventura se tratasse. Tudo isto irá mudar muito rapidamente, a esperança num trabalho que faça de Köves uma pessoa útil a transformar-se em desconfiança, a inocência de quem pensa que tudo é provisório a ceder lugar a uma realidade monstruosa. Está em marcha a “solução final”, os campos de concentração como destino de milhões de judeus condenados ao extermínio.

Embora Imre Kertész refute a ideia de que “Sem Destino” é uma obra autobiográfica, a verdade é que o protagonista é, tal como o autor, um judeu húngaro com apenas 15 anos de idade, deportado em 1944 para Auschwitz, depois para Buchenwald e finalmente para Zeits, onde viria a permanecer até à libertação pelas tropas aliadas. Com Kövés somos levados numa verdadeira descida aos infernos, desde a viagem para a Alemanha num vagão de carga, sem água apesar de haver comida, aos momentos de espanto perante a imensidão do campo de concentração de Auschwitz, com os seus cuidados canteiros floridos, os arruamentos e os barracões de uma geometria meticulosa, a ordem que reina sob uma hierarquia que se estende aos próprios prisioneiros. Mas são as cabeças rapadas das mulheres, as parcas refeições, a identidade de cada um reduzida a um número, a forma arbitrária como se decide espancar alguém ou as altas chaminés das quais se liberta um fumo negro e que arrasta consigo um cheiro pestilento, que nos sobressaltam e nos deixam perplexos diante do abjecto e do inominável.

Publicado apenas em 1975, “Sem Destino” deixa adivinhar um processo doloroso no pós-libertação e as dificuldades do quotidiano numa Budapeste a renascer das cinzas e, desde logo, sob a esfera política da antiga União Soviética. O livro viria a ser determinante no reconhecimento da qualidade da escrita de Kertész, agraciado em 2002 pela Academia Sueca com o Prémio Nobel da Literatura. Independentemente da visão pessoal do autor sobre o horror à sua volta, o que mais impressiona é a sua capacidade de narrar o inenarrável sem trair um olhar não despido de inocência. É nesse ponto crucial que a sua escrita se revela, em simultâneo, tão terrível e tão poderosa, a visão sobre o absurdo e a forma como o seu espírito se adapta ao ponto de se sentir reduzido a nada, de perder a humanidade e, mesmo assim, recusar para si próprio a “solução final”, numa luta feroz pela sobrevivência. A par de “Se É Isto Um Homem”, de Primo Levi, este é um daqueles livros que nos coloca perante o incompreensível, o impossível, a realidade insuportável dos campos de extermínio. Um livro que nos dá força para, uma e outra vez, lutarmos contra a ignorância e a recusa de muitos em aceitar factos marcantes da História da humanidade.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #91 - Júri Jovens Cinéfilos



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #91
Júri Jovens Cinéfilos – Temporada 8
Com | Clara Maio Alves, Duda Terra, Sara Oliveira, Maria Manarte, Maria Silva, Tânia Marques 
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
30 Jan 2025 | qui | 21:30


“É isso, malta: Divirtam-se, reflitam e espero que gostem!” Foi com toda a espontaneidade, verdade e um belo sorriso que Maria Silva, um dos elementos do Júri Jovens Cinéfilos do Shortcutz Ovar, resumiu o espírito da sessão programada para a noite de ontem na Escola de Artes e Ofícios. Feita por jovens e para jovens, a noite abriu-se às escolhas de Clara Maio, Eduarda Terra, Francisco Fidalgo, Maria Bacelar, Maria Manarte, Maria Silva e Sara Oliveira, dando o pontapé de saída na programação anual do Shortcutz Ovar. Conhecedor do valor, interesse e originalidade de uma sessão sempre especial, o público esgotou a lotação da sala, seguro da possibilidade de ver ou rever três dos vinte e cinco filmes exibidos na temporada anterior, fazer novas leituras de cada uma das obras e participar numa discussão sempre viva e enriquecedora. Discussão que, ao longo de 2025, irá expandir-se, como nos anos anteriores, aos concelhos da Murtosa e de Espinho, mas também a Vila Nova de Gaia e Tomar, na altura em que esta verdadeira embaixada cultural levar o programa de curtas-metragens ao encontro dos jovens estudantes de Agrupamentos Escolares das localidades referidas.

Praticamente consensuais, as escolhas do júri recaíram sobre “O Senhor do Porto”, de Tânia Marques, “Feios, Porcos e Maus Doc.”, de O Inglez e “2720”, de Basil da Cunha, numa amostragem deveras interessante das narrativas que presidiram à oitava temporada do Shortcutz Ovar. Uma escolha que se saúda, na medida em que recai sobre filmes muito bem estruturados e de grande qualidade, que abordam temas da actualidade e cujas preocupações são transversais a todas as idades e estratos económicos e sociais. Mimetizando aquele que foi o alinhamento dos filmes exibidos ao longo de 2024, também ontem o primeiro filme exibido foi “O Senhor do Porto”, enquanto “2720” encerrou a sessão. Uma coincidência interessante, que reforça a ideia de “representatividade” ou, se assim quisermos, de súmula daquilo que foi a temporada passada. Ao público era pedido que encontrasse um fio condutor para os filmes exibidos, um elo comum que justificasse, em grande medida, a opção do júri por estes filmes, ficando claro, desde o início, que o tema da habitação seria um dos elementos distintivos do conjunto de propostas. Mas será que não houve outros aspectos a ligá-las?

“O Senhor do Porto” fala de habitação, do substracto nefasto que reside na especulação imobiliária, dos preços inflacionados aos quais os jovens casais ou os estudantes não conseguem chegar, dos movimentos demográficos rumo às periferias das cidades que arrastam consigo uma irremediável perda de identidade. No meio disto tudo, o senhor do Porto é um resistente, como resistentes são a Leninha, o Bezelga e o Sr. Manel de “Feios, Porcos e Maus Doc.”, afirmativos na sua liberdade de escolha, na verdade, humanidade e dignidade de quem se despe de preconceitos, rejeita a formatação da sociedade e vive a vida tal e qual a idealizou, ainda que muito precariamente. Igualmente precário é o viver da comunidade cabo-verdiana de um dos bairros da Reboleira, Amadora (código postal 2720), retratada de forma nua e crua por Basil da Cunha, num exercício de cinema-verdade absolutamente magistral. Um filme que encontra no Estado securitário e na violência policial uma fonte de discriminação e preconceito, que traz o medo, a insegurança e o desenraizamento aos moradores do bairro, que mesmo oprimidos e excluídos resistem. Mais do que “habitação”, “resistência” será mesmo a palavra certa para definir o lema da sessão, à qual devemos somar as palavras “território” e “identidade”.