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quarta-feira, 9 de julho de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Nova Lisboa" | Gonçalo Fonseca



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Nova Lisboa”,
de Gonçalo Fonseca
100 Anos da Leica I - O Mundo Através do Visor
Curadoria | Magda Pinto
Museu Nacional Soares dos Reis
24 Mai > 13 Jul 2025


Uma das boas notícias de 2020, um ano marcado pela emergência sanitária que levou a Organização Mundial de Saúde a declarar o estado de pandemia face à COVID-19 e ao espalhar da doença em todo o mundo, foi a distinção de Gonçalo Fonseca com o Prémio Leica Oskar Barnack na categoria Revelação. O fotógrafo português viu o seu trabalho ser muito justamente reconhecido pelo júri, com a série “Nova Lisboa” a testemunhar a dramática situação habitacional que afecta Lisboa e, com base em relatos individuais, a revelar as consequências do avanço da gentrificação. Os dados oficiais mostravam que, no ano anterior ao da atribuição do prémio, cerca de seis milhões de pessoas visitaram a capital portuguesa durante as suas férias, fazendo de uma cidade com cerca de meio milhão de habitantes um dos destinos mais populares da Europa. O boom do turismo, a especulação imobiliária e o avanço da gentrificação levaram a que mais de 10.000 inquilinos tivessem perdido as suas casas, nas quais muitos deles tinham vivido a vida inteira.

Um turista urbano que venha a Lisboa e alugue um apartamento barato no casco antigo, provavelmente não pensará na história por trás do seu alojamento, quem terão sido os antigos inquilinos ou em que condições e com que consequências a habitação é hoje um alojamento local. Graças à crescente popularidade da cidade como destino turístico, o mercado imobiliário mudou muito rapidamente. Durante muito tempo, os proprietários evitaram qualquer tipo de obras de restauro ou reparação nas habitações, mas com a liberalização durante a crise financeira uma onda de especulação extrema varreu a cidade. Os fundos de investimento lidaram com edifícios exclusivamente como ativos, sem qualquer consideração pelas pessoas que neles viviam. Os preços das rendas escalaram, as casas foram vendidas e muitas vezes transformadas em apartamentos turísticos, sem qualquer intervenção da autarquia e sem que fossem dadas alternativas aos antigos inquilinos. É no quotidiano desolado dessas pessoas que o fotógrafo centra a sua série.

Com uma abordagem muito dedicada às pessoas que fotografa - o fotógrafo mantém contacto com quase todas as pessoas que deram o passo corajoso de compartilhar consigo as suas vidas -, Gonçalo Fonseca acompanhou de perto o processo de transformação que a cidade sofreu nos últimos anos. Tendo passado grande parte de 2018 na Índia a trabalhar num projecto, ao regressar ficou impressionado com a rapidez com que a cidade estava a mudar. Viu os restaurantes e lojas favoritas a fechar para darem lugar a negócios virados exclusivamente para os turistas. Viu as desigualdade aumentarem, com um número crescente de famílias em dificuldade para pagar as rendas das casas. Sentiu, enfim, que encetava uma luta contra o tempo, uma vez que as mudanças e seus efeitos precisavam de ser documentados. “Nova Lisboa” pode ser vista no Museu Nacional Soares dos Reis, no âmbito da mostra “100 Anos da Leica I - O Mundo Através do Visor”, permanecendo patente ao público só até ao próximo domingo.

terça-feira, 8 de julho de 2025

CINEMA: "Estou Aqui" | Zsófi Paczolay, Dorian Rivière



CINEMA: “Estou Aqui”
Realização | Zsófi Paczolay, Dorian Rivière
Fotografia | Dorian Rivière
Montagem | Joana Góis, Dorian Rivière, Zsófi Paczolay
Interpretação | Plácido, Maria Teresa Bispo, Tiago
Produção | Terratreme Filmes
Portugal | 2024 | Documentário | 79 Minutos | Maiores de 14 Anos
Vida Ovar – Castello Lopes
07 Jul 2025 | seg | 13:55


Em março de 2020, sob a pressão da emergência da pandemia de COVID-19, o maior complexo desportivo de Lisboa, o Casal Vistoso, viu-se transformado numa estrutura multifuncional temporária com capacidade para cem pessoas em situação de sem-abrigo. Sob a liderança de Maria Teresa Bispo e com uma filosofia única baseada na comunicação, inclusão e empoderamento, os residentes foram capazes de restaurar uma cultura de cuidado e apoio mútuo e de encontrar uma voz e um sentido de pertença neste lugar de soluções, apesar do desprezo da vizinhança e do alheamento de uma sociedade à beira do colapso. Pese embora as muitas dificuldades, o centro revelou-se um lugar seguro, graças a uma escolha estratégica de proporcionar a maior equidade possível entre todos e devolver a confiança a um conjunto de pessoas a viver há demasiado tempo nas ruas. Foi lá que Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, realizadores de “Estou Aqui”, começaram a fazer voluntariado, distribuindo cafés, comida e cigarros, comendo com os outros técnicos, funcionários de limpeza e voluntários, conhecendo muitas pessoas que aceitaram partilhar as suas histórias e tornando-se lentamente parte desta comunidade em crescimento.

Quando chegaram ao Casal Vistoso, os dois realizadores perceberam imediatamente a singularidade e o poder de um projecto inovador. Contrariando a lógica do “cada um por si” como resposta ao evoluir da situação sanitária e ao alarme social crescente, o centro propunha uma abordagem oposta, incentivando a inclusão e o cuidado aos mais excluídos, encorajando-os a participar, a dar a sua opinião e a construir uma organização evolutiva e democrática. Após algumas semanas no abrigo, Zsófi Paczolay e Dorian Rivière perceberam haver dois residentes que se destacavam dos restantes, revelando-se muito sociais e ativos dentro da comunidade. Com naturalidade, Tiago e Plácido tornaram-se os protagonistas deste documentário, guiando o espectador através das suas rotinas diárias, mas também dos seus momentos mais íntimos, já que o centro assumiu o lugar de uma nova “casa” para todos. Aceitando o desafio de filmar num lugar assim, com todos os cuidados em relação ao bem-estar e à aprovação das pessoas, bem como às questões éticas implicadas no processo, a dupla de cineastas soube combinar na perfeição o cuidar e o filmar, contando para tal com a aceitação e o reconhecimento de todos.

Construído com enorme sensibilidade, o documentário mostra como é possível estabelecer um sistema onde os mais carenciados se possam sentir seguros, obter comida e uma cama, num mesmo sítio que lhes possibilita o acesso a diferentes organizações de apoio, com soluções ao nível da saúde, alojamento permanente e possibilidades de trabalho, dependendo da situação de cada um. Ao contrário de outros abrigos, aqui qualquer pessoa necessitada era bem acolhida: casais, jovens ou idosos, locais ou estrangeiros, pessoas LGBTQ+, pessoas com animais de estimação, problemas de adição, saúde mental ou com passado criminal. O que era tão especial naquele lugar era que não estava apenas focado numa resposta a curto prazo para a falta de habitação, mas realmente desenvolveu-se numa iniciativa a longo prazo para encontrar trabalho e casas para os residentes, com apoio personalizado. E, sim, o filme mostra que as pessoas começaram a acreditar que desta vez poderia ser diferente, que teriam hipótese de construir uma nova vida. Mas também põe a nu a fragilidade e as incertezas dos programas de reintegração sustentável sem o cuidado e os recursos adequados. Infelizmente, devido às mudanças políticas, o programa deixou de ter apoio e já não existe nestes moldes. Para ver e reflectir!

segunda-feira, 7 de julho de 2025

TEATRO: "Vida: Uma Aplicação"



TEATRO: “Vida - Uma Aplicação”
Texto | Gisela Casimiro
Encenação, desenho de som, luz, cenografia e figurinos | Leandro Ribeiro
Design e apoio aos figurinos | Marta Baldaia
Interpretação | Daniela Adelino, Yasmin Lucchi, Renata Resende, Alexandre Pinto, Maria Reis, Maria Silva, Mariana Costa, Francisco Fidalgo, Sofia Oliveira, Sofia Miguel Costa, Margarida Laranjeira, Madalena Carvalho, Filipe Marques, Leonor Eglésias, Francisca Nata, Gabriel Garrido, Eduarda Terra, Rita Pereira, Maria Inês Campos, Sara Oliveira e Mafalda Reis
Produção | Sol d'Alma - Teatro
Promotor | Teatro Nacional D. Maria II - Projecto PANOS
75 Minutos | Maiores de 6 Anos
Auditório Sol d’Alma
05 Jul 2025 | sab | 17:00


Depois de, em 2022, ter sido seleccionado para a fase final do Concurso Nacional de Teatro Juvenil do Projecto PANOS - Palcos Novos, Palavras Novas, com a peça “As Cigarras Septendecim e Tredecim”, o elenco juvenil do Sol d’Alma - Associação de Teatro voltou a abraçar o desafio em nova edição do PANOS e, de novo, marcou presença num espectáculo final que teve lugar no Convento de S. Francisco, em Coimbra. Daí que o primeiro aplauso vá, com a devida vénia, para os actores e restante equipa do Sol d’Alma que fazem acontecer, dedicadamente e com enorme trabalho, coisas bonitas como esta. O aplauso maior vai para a forma como souberam pegar num texto que se instala no quotidiano de um mundo cada vez mais cego e surdo, e reflectir sobre o uso excessivo do telemóvel e suas redes sociais, onde o que conta é o captar da mais bonita fotografia ou da postagem instantânea do vídeo mais inusitado. Num registo que se aproxima do Teatro do Absurdo, o que a peça nos vem dizer é que absurda é a vida e o mundo em que coexistimos e não o Teatro. Mas vamos por partes.

Tudo começa numa típica tasca lisboeta, algures na segunda metade do século passado. Uma tasca frequentada por operários e donas de casa, escritores e senhorecas, onde se ouve Amália, se anuncia “O Costa do Castelo”, se celebram os Santos Populares e o tasqueiro é... uma tasqueira. É neste cenário que a nota de inverosimilhança se impõe na figura de uma “influencer” que, munida de telemóvel, tudo regista e tudo partilha nas redes sociais, ávida de mostrar ao mundo as personagens que tipificam um muito peculiar microcosmos social e de receber, em doses generosas, os correspondentes “likes”. Entre viagens de metro, combóio, autocarro, barco, taxi ou bicicleta, e respectivos pontos de recolha ou salas de espera, aquilo que a peça mostra é a quebra irremediável dos vínculos comunitários, da partilha de olhares, palavras e sentimentos, do cimento que nos torna cúmplices e solidários, em desfavor do imediatismo de uma mensagem num telemóvel, de um vocabulário reduzido a palavras como “postar”, “tweetar” ou “trollar”, dos egos reforçados por recompensas contadas em “gostos”, do “apagar memórias para instalar mais uma rede social”.

Quem leu o excelente “Estendais”, de Gisela Casimiro, sabe que é para nós que a autora escreve. Para todos e cada um de nós, sublinhe-se, mesmo que as prioridades divirjam, as rotinas se estranhem ou as origens se afastem. Através da escrita, a autora mostra-nos os seus lugares, as suas vivências, a sua forma de ver e sentir o espaço em volta, porque sabe que, tal como sucede consigo, haverá sempre alguém que encontrará o fim do mundo em Carnaxide ou em Válega. Isto sente-se e é por isso que nos toca tanto escutarmos, da sua voz, que “a negação caminha de mão dada com a prostração”, que “a fome é uma ameaça que demora muito a deixar-se ver” ou que “parecemos cada vez mais desabituados uns dos outros”. “Vida - Uma Aplicação” não é diferente. “Filha do Senhor Emoji e da Dona Figurinha”, a geração zoomer é a prova do quão mudado está o paradigma social, um olho no ecrã e outro no acontecimento, porque importa partilhar nas redes sociais as imagens da dor e do sofrimento, em vez de prestar auxílio e mostrar-se solidário com quem verdadeiramente precisa.

Está de parabéns Leandro Ribeiro por, uma vez mais, ter conseguido “dar a volta ao texto” e levar à cena, com imaginação e humor, uma peça complexa e aberta a múltiplas abordagens. Alicerçado num grupo de enormes actrizes e actores, o resultado final surpreende pela forma como tratou temas complexos sem os reduzir a meras metáforas. Na mente do espectador ficará o extraordinário quadro da agressão a uma passageira de autocarro, a remeter para o caso Cláudia Simões, com o julgamento em praça pública amplificado pela omnipresença dos telemóveis; como ficará o quadro da influencer a maquilhar-se enquanto explica uma cena banal do quotidiano. Ficará, sobretudo, um dos quadros finais que junta quatro pessoas num mesmo espaço, mas que dialogam entre si ao telemóvel para dizer, entre muitas outras coisas, que “a vida está tão José Régio”. “Beijinhos à família antes que me esqueça” e, enfim, toca a levantar do sofá onde lêem isto e a cantar comigo, bem alto, “e se a vida ligar / se a vida mandar mensagem / se ela não parar / e tu não tiveres coragem de atender / tu já sabes o que é que vai acontecer / eu vou descer a minha escada / eu vou estragar o telemóvel, o telele / eu vou partir o telemóvel”.

[Foto: © Manuel Vitoriano / https://www.facebook.com/soldalma]

domingo, 6 de julho de 2025

CONCERTO: Trios de Schubert | Pedro Burmester, Pedro Meireles, Filipe Quaresma



CONCERTO: Trios de Schubert
Com | Pedro Burmester (piano), Pedro Meireles (violino), Filipe Quaresma (violoncelo)
FIME - Festival Internacional de Música de Espinho
Auditório de Espinho - Academia
04 Jul 2025 | sex | 21:30


A caminhar para o fim, o 51º FIME - Festival Internacional de Música de Espinho teve para oferecer aos amantes da grande música um concerto verdadeiramente imperdível na noite da passada sexta-feira. Interpretados por Pedro Burmester (piano), Pedro Meireles (violino) e Filipe Quaresma (violoncelo), os Trios com piano n.º 1 e n.º 2, de Franz Schubert, chamaram ao Auditório de Espinho um público atento e interessado que voltou a esgotar a lotação da sala. Fazendo gala de uma enorme sensibilidade, cumplicidade e virtuosismo, os três instrumentistas mergulharam no universo intimista e nostálgico do compositor, expressando com emoção o espírito imaginativo, lírico e melódico que fizeram dele uma das traves mestras da passagem do estilo clássico para o romântico e que o tornam, muito justamente, num dos maiores compositores do século XIX. Escritas pouco antes da sua morte, estas duas obras de Schubert têm a uni-las o facto de serem compostas por quatro andamentos e terem uma escala incomumente grande para trio com piano, levando mais de quarenta minutos cada uma para serem executadas. Isso, e um certo sabor de improviso, o que as torna vivas, espontâneas, calorosas, sentimentais e imaginativas.

Concluído em 1828, o Trio com piano n.º 1, em Si Bemol Maior, D. 898, só viria a ser publicado em 1836 como Opus 99, oito anos após a morte de Schubert. O primeiro andamento, Allegro moderato, apresenta-se em forma de sonata, com um primeiro tema caracterizado por ritmos pontuados e durações de frases irregulares, enquanto o segundo tema, em contraste, apresenta melodias líricas e frases regulares. A secção de desenvolvimento expande ambos os temas, tornando-se por vezes turbulenta e apresentando versões fragmentadas do tema principal numa sucessão de tonalidades, cada uma mais próxima da tonalidade central do que a anterior. Andante un poco mosso, o segundo andamento, segue o estilo de uma canção de gôndola, com uma melodia cadenciada e ritmo oscilante. Como alguns dos outros movimentos lentos tardios de Schubert, há uma secção contrastante mais turbulenta para, de pronto, a calma ser restaurada. Scherzo: Allegro, o terceiro andamento, segue a forma clássica do minueto. O scherzo propriamente dito apresenta um contraponto pesado, com os três instrumentos imitando-se constantemente, ao passo que a secção do trio é uma valsa descontraída. No último andamento, Rondo: Allegro vivace - Presto, predomina um ritmo de dois compassos, a música terminando com uma coda marcada Presto.

O Trio com piano nº 2, em Mi Bemol Maior, D. 929, data de Novembro de 1827 e foi também uma das últimas composições concluídas por Franz Schubert. Publicado pela Probst como Opus 100 no final de 1828, pouco antes da morte do compositor, e apresentado pela primeira vez numa festa privada, em Janeiro de 1828, para celebrar o noivado do amigo de escola de Schubert, Josef von Spaun, o Trio foi uma das raras composições do período final de Schubert que teve a possibilidade de ouvir serem executadas antes de sua morte. Tal como na peça anterior, também aqui o primeiro andamento, Allegro, se apresenta em forma de sonata. Sobejamente conhecido, Andante com motto, o segundo andamento, assume uma forma ternária dupla assimétrica e viu o tema principal ser usado como musica central no filme “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick, e numa enorme quantidade de outros filmes, séries e documentários. O terceiro andamento, Scherzo: Allegro moderato é uma peça animada em formato ternário duplo padrão. O quarto andamento, Allegro moderato, é em forma de sonata rondo e nele Schubert incluiu, em dois interlúdios, o tema de abertura do segundo movimento numa versão alterada.

O final da interpretação desta última peça teve num veemente e prolongado aplauso a eloquente demonstração do apreço do público pelo excepcional serão proporcionado. Os músicos responderam agradecidos com a interpretação do Notturno para Trio com piano, do mesmo Schubert, uma peça inicialmente pensada para o segundo andamento do Trio com piano n.º 1 e que acabou por ser recomposta e assumir uma faceta completamente nova. Ficou o Notturno - ou “Adagio”, para alguns - “pendurado”, mas não esquecido, a ponto de ser oferecido ao público num extraordinário “encore”. Beethoven dizia que as peças de Schubert o faziam sentir-se no paraíso, e foi um vislumbre do paraíso que Burmester, Meireles e Quaresma ofereceram aos presentes, com uma peça emotiva, rica em matizes sonoros, de uma grande harmonia e que, verdadeiramente, nos fez ver aquilo que somos. Franz Schubert morreu a 19 de Novembro de 1828, em Viena, com 31 anos de idade. Está sepultado no cemitério de Währinger, muito próximo de Ludwig van Beethoven, compositor que venerou em vida. No seu epitáfio, escrito pelo poeta Franz Grillparzer, podemos ler: “A arte da música enterrou aqui grandes riquezas, e esperanças ainda maiores”.

sábado, 5 de julho de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Critical Minerals - Geography of Energy" | Davide Monteleone



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Critical Minerals - Geography of Energy”,
de Davide Monteleone
100 Anos da Leica I - O Mundo Através do Visor
Curadoria | Magda Pinto
Museu Nacional Soares dos Reis
24 Mai > 13 Jul 2025


Há muito tempo que activistas de todo o mundo, em áreas como as ciências, os negócios, a política, os direitos humanos e o meio ambiente, vêm alertando para os elevados custos da actual transição energética. Elementos fundamentais de uma cadeia que tem como objectivo afastarmo-nos em definitivo das energias fósseis, determinados elementos naturais transformaram-se em alvos privilegiados das indústrias extractivas, levando à destruição de vastas áreas florestais, alterando irremediavelmente os ecossistemas locais, reduzindo drasticamente a biodiversidade, aumentando a erosão dos solos e, consequentemente, o risco de inundações. “Critical Minerals - Geography of Energy”, série fotográfica de Davide Monteleone, o mais recente vencedor do Prémio Leica Oscar Barnack, actualmente exposta no Museu Nacional Soares dos Reis, ilustra os riscos que enfrentamos na busca desenfreada por energias mais sustentáveis, mostrando que estamos a repetir os erros do passado em vez de inaugurarmos um futuro mais justo, equilibrado e limpo.

Carros eléctricos, que supostamente melhorarão o equilíbrio climático, smartphones que se tornarão indispensáveis na comunicação quotidiana, baterias que poderão vir a armazenar o excesso de energia produzida pelas fontes eólica e solar, todos eles integram na sua constituição cobalto, cobre, níquel ou lítio, recursos que passaram a estar na mira das grandes indústrias. Ao encontro das regiões afectadas pelos trabalhos de extracção mineral, em países como a República Democrática do Congo, o Chile e a Indonésia, o que Davide Monteleone faz é mostrar-nos o reverso da medalha. Para concretizar a promessa de futuras tecnologias “limpas”, são necessários minerais específicos, mas a sua extracção faz-se em condições questionáveis, desumanas e ambientalmente perigosas: Trabalhadores descalços segurando ferramentas obsoletas em túneis com pouca segurança, água contaminada, paisagens devastadas e envenenadas. Não há região que o fotógrafo não tenha explorado com a sua lente, pondo a nu os enormes problemas resultantes da extracção de matérias-primas.

As vibrantes fotografias de paisagens, algumas das quais tiradas de uma perspectiva aérea, não poderiam ser mais enganadoras. Um exemplo eloquente é o do deserto do Atacama, no Chile, considerado um dos lugares mais secos do planeta. Ali, o lítio é processado em grandes lagoas de evaporação, mas a água escasseia nas torneiras, para desespero das populações. Outras fotografias tiradas por Monteleone dão-nos a ver Chuquicamata, uma cidade fantasma a ser soterrada lentamente pelos sobrantes de uma mina de cobre a céu aberto. Erguida para albergar os trabalhadores da mina, Chuquicamata rapidamente se viu “engolida” devida à quantidade crescente de escória, à deposição de poeiras e aos gases da fundição próxima. Em busca de conexões entre cada elemento e a história de um indivíduo ou comunidade a ele conectada, o artista mostra as diferentes relações entre humanos e consumo, natureza e economia, acção individual e geopolítica. Uma forma inteligente e impactante de informar e envolver o público, abrindo possíveis caminhos para uma cadeia de suprimentos mais sustentável e diversificada.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

LIVRO: "Pés de Barro" | Nuno Duarte



LIVRO: “Pés de Barro”,
de Nuno Duarte
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. LeYa, Abril de 2025


“Oito horas durava o turno, oito duras horas até voltarem pelo mesmo caminho, mas agora mais arrastados, mais sujos, mais suados, com os corpos sovados por um gigante de aço, à noite ninguém precisaria de encolher as pernas para caber no colchão, encolhidas estavam elas, dobradas pelo peso da jorna, e mesmo assim houve quem preferisse o álcool ao descanso, muitos foram às tascas, a maioria não tinha ninguém a espera, só um quarto e uma cama vazia, é destas solidões que se faz a camaradagem, anda, Tirapicos, anda, disseram-lhe, mas ele recusou, não recusaria sempre, mas naquele primeiro dia sim, queria estar com a Dália, contar-lhe como tinha sido, explicar-lhe como se fazia a maior ponte suspensa da Europa e depois adormecer-lhe ao colo, sabê-la a entrelaçar os dedos no seu cabelo, a fazer-lhe festas como se fosse uma criança pequena, hon, no fundo é isso que todos os homens são, crianças pequenas, e as mulheres suas mães. Freud explica e Édipo também. Amanhã há mais.”

O livro de Nuno Duarte leva-nos ao início da década de 1960, a um tempo em que o regime ditatorial de Oliveira Salazar começava a mostrar-se um gigante com pés de barro. A capitulação de Goa, Damão e Diu rompia com o Império uno e indivisível, “do Minho a Timor”, e a Guerra do Ultramar, com início em Angola e que, “rapidamente e em força”, alastrou à Guiné e a Moçambique, abria brechas que já nenhuma cosmética permitia disfarçar. Orgulhosamente só, exaurido de recursos, o governo compensava um esforço de guerra que consumia quase 10% do PIB com mais carestia, mais intolerância e mais repressão. Neste contexto, era urgente encontrar um bom motivo para desviar as atenções da população e nada melhor do que a construção de uma ponte sobre o Tejo, um gigante de aço com 2277 metros de comprimento e um vão livre de 1013 metros, ainda hoje a maior ponte suspensa da Europa. Uma ponte que pretendia ser um símbolo do esforço para a modernização do país e de uma suposta maior abertura ao mundo, mas que não conseguia disfarçar o número crescente de bairros de lata à volta da capital, as elevadas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil, ou os muitos milhares de portugueses que saltavam diariamente a fronteira em busca de uma vida melhor. Hon.

Fazendo oscilar a acção entre o Pátio do Cabrinha, conjunto de habitações modestas na zona de Alcântara, e o estaleiro das obras da Ponte sobre o Tejo, Nuno Duarte oferece-nos um retrato intenso e vivo de um Portugal de dias sempre iguais, sempre cinzentos, cingido a Fátima, ao Fado e ao Futebol, com um Estado securitário, um aparelho de vigilância e repressão política cada vez mais feroz e os seus melhores filhos a serem dizimados aos milhares em África, em nome de uma visão imperialista cega e surda aos novos ventos da História. Ao longo das pouco mais de trezentas páginas do livro, vamos acompanhando um conjunto de personagens cuidadosamente desenhadas, tocantes de humanidade no seu viver resignado, sedentas de liberdade e de justiça. Com tanto de verdade como de ironia, Nuno Duarte pousa o braço sobre o nosso ombro, ao mesmo tempo que mantém uma animada conversa com o Lúcio da tasca que dizia as coisas duas vezes, o Ângelo que ensinava a ler ao mesmo tempo que aprendia a desler, a Cordália que estava sempre doente, ou era da cabeça ou era das pernas ou era das costas ou era do peito, a Helena das serenatas, a Adélia que cantava o fado na Cesária e tinha um rapaz em Angola, o Manel Cheirinho que tinha um filho desertor, o Quim que veio de Moçambique só com metade do corpo, o Fernando da guarda e até os bêbados, o Ti Zé Maria e o Tibúrcio, mais a Odete peixeira e a sua língua afiada. E, claro está, o Victor Tirapicos e a Dália, os grandes protagonistas do romance. Hon.

Há livros que valem todo o tempo que com eles despendemos, de tal forma abrem em nós o desejo de querermos saber rapidamente o final da história e, ao mesmo tempo, pretendermos que as páginas não cheguem ao fim. “Pés de Barro” é disso um bom exemplo, embrenhando o leitor num conjunto de narrativas sabiamente entretecidas e que, no seu conjunto, passam a pente fino a História de um país e mostram o que de bom e de mau há nesta espécie de sortilégio de ser português. No seu estilo peculiar de contar uma história, o autor vai extraindo do leitor a necessária cumplicidade com as principais figuras do romance, fazendo-o sentir a tristeza e as humilhações dos explorados e oprimidos, a sua impossibilidade de erguer a voz contra as injustiças, e o secreto desejo de uma revolução que acabe com tudo e um novo dia - inicial inteiro e limpo - possa erguer-se da mais escura noite. Saúde-se Nuno Duarte e a sua escrita, o seu gosto em dar um segundo sentido às palavras, a forma como replica as expressões de um alentejano ou de um americano, como incorpora o vernáculo nos diálogos, como faz uso de um extraordinário sentido de humor. Fortemente visual, a narrativa põe à prova os sentimentos e emoções do leitor, sendo capaz de o levar às lágrimas com a mesma facilidade com que lhe arranca uma saborosa gargalhada. Uma surpreendente primeira obra, muito justamente merecedora do Prémio LeYa 2024. Hon, hon.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Places of Memory” | Andrea Hoyer



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Places of Memory”,
de Andrea Hoyer
100 Anos da Leica I - O Mundo Através do Visor
Curadoria | Magda Pinto
Museu Nacional Soares dos Reis
24 Mai > 13 Jul 2025


Pela primeira vez na sua história, o Prémio Leica Oskar Barnack foi concedido a um fotógrafo alemão. Estávamos em 2003 e a reportagem fotográfica de Andrea Hoyer, um projecto de longo prazo iniciado cinco anos antes, seria alvo do reconhecimento do júri de um dos galardões mais prestigiados do mundo, ao documentar os anseios, as perspectivas e os estados de espírito da população russa da era pós-União Soviética. Curiosidade, sede de aventura e a vontade de se envolver com outros povos e culturas caracterizam uma série cujo olhar se estende do Cazaquistão ao Uzbequistão, da Rússia à Ucrânia. Feita de imagens a preto e branco cuidadosamente compostas, “Places of Memory” foi registada com uma Leica M6 e nela podemos observar elementos representativos da antiga União Soviética, desde monumentos onde figura Estaline a vistas internas do Exército Vermelho. As vastas extensões da paisagem russa, bem como cidades e praias do Mar Negro, são igualmente retratadas.

A viver em Nova York, Andrea Hoyer concentra-se nas circunstâncias das pessoas: Na sua solidão, sozinhas ou em grupos, na falta de orientação ou de segurança no círculo íntimo da família e dos amigos. Na série agora patente no Museu Nacional Soares dos Reis, percebemos que a artista não busca o drama ousado de uma certa forma de fazer fotojornalismo, mas usa o seu apurado poder de observação para intensificar estados de espírito e mostrar de que forma se vêem reflectidos na sua própria alma. O resultado escapa àquilo que designamos por “reportagem clássica”, antes encerra uma visão muito pessoal dos lugares visitados. As pessoas que Hoyer retrata são sempre parte de uma composição geral: surgem muitas vezes cortadas ou indefinidas, ajustando-se na pose à arquitectura e às paisagens que as rodeiam como parte de um todo enigmático e complexo. No trabalho de Andrea Hoyer não há fotografias cuja interpretação seja imediata, mas isso só torna ainda mais convidativo um olhar cuidado e atento sobre cada uma delas.

Andrea Hoyer nasceu em Göttingen, em 1967, e cresceu na Alemanha e nos EUA. Estudou fotografia em São Francisco e no Centro Internacional de Fotografia de Nova York. Na Universidade de Columbia, diplomou-se em Estudos do Oriente Médio/Árabe e em 1995, após um ano a estudar a língua uzbeque, começou a fotografar nos estados da Ásia Central da ex-União Soviética e, em seguida, orientou os seus interesses predominantemente para a Rússia. Desde 2012, Hoyer começou a esculpir e a modelar cabeças de pessoas imaginárias em argila, combinando esse lado do seu trabalho com um enorme interesse por memórias individuais e colectivas e por factores como a identidade e a perda. Como sempre trabalhou numa relativa obscuridade, o reconhecimento da Leica colocou-a no mapa da fotografia, abrindo-lhe as portas de um mundo novo e mostrando caminhos que a artista desconhecia. O seu sucesso na cerimónia de premiação durante os Encontros de Fotografia de Arles recompensou a sua coragem e perseverança e chamou a atenção do público para o seu trabalho.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "A Torre dos Clérigos" | Sérgio Jacques



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Torre dos Clérigos”,
de Sérgio Jacques
Torre dos Clérigos
13 Jun > 30 Jul 2025


“Na sua mágica contemporaneidade, a Torre dos Clérigos persiste, 300 anos depois da chegada de Nasoni ao Porto como motivo inspirador de criadores literários e artísticos.”
Joel Cleto

Ex-libris incontornável da cidade do Porto, a Torre dos Clérigos ergue-se sobre o casario com os seus quase 76 metros de altura, o que faz dela uma das mais altas torres do género no nosso país. Jóia do Barroco, projectada por Nicolau Nasoni e erigida entre 1732 e 1749, domina a paisagem citadina, atraindo o olhar de locais e visitantes onde quer que se encontrem. Haja pernas para isso e não deixa de ser tentador subir os seus 225 degraus para ter a recompensa de uma vista deslumbrante sobre o Porto e a cidade de Gaia, com o Douro de permeio. Os que não se atrevem, quedam-se pelas praças que a circundam, apenas para admirá-la no que tem de majestade e altivez e, num olhar mais atento, descobrir-lhe a harmonia e beleza dos seus inúmeros detalhes. Há também os que se cruzam nas ruas que dela partem ou nela desembocam, as mais das vezes vendo-a sem a ver, que a pressa de apanhar o autocarro ou de chegar a horas à consulta no Santo António é muita. Há, enfim, Sérgio Jacques e o seu olhar, capaz de captar o visível e de nos envolver naquilo que apenas se adivinha.

Aliando a arte e a sensibilidade que fazem dele o excelente fotógrafo que é, ao conhecimento que tem da cidade que o viu nascer, Sérgio Jacques desenvolve um corpo de trabalho que se afasta do cânone e aposta mais no que sugere do que naquilo que verdadeiramente mostra. A preto e branco, a série escapa ao conceito clássico de definição ou nitidez, as imagens desfocadas, tremidas, imprecisas à vista do visitante, como que a sublinhar o propósito de o inquietar, de o questionar sobre a sua relação com o monumento e com a própria cidade do Porto. Nas memórias que convocam – outros tempos, outras paragens –, as fotografias carregam em si o coração de uma cidade no seu incessante pulsar, ante o olhar vigilante e atento da magnífica Torre. Difusas, mostram o que de efémero pode haver numa relação que não se compadece com contemplações. Etéreas, misturam o dito brejeiro com a cacofonia em todas as línguas, a ementa mais elaborada com o pastel de bacalhau. Irreais, cruzam a esplanada selecta da Praça de Lisboa com um tasco da Rua de Trás, acertam o passo da cidade pelo atraso dos autocarros, falam-lhe de sonho e ilusão nas mãos dadas dos amantes.

“Como nunca viajava com máquina fotográfica, acabava por passar muito tempo a olhar para tudo aquilo que sentia necessidade de reter.” Estas palavras de Afonso Cruz, que podemos encontrar no seu livro “Jalan Jalan” (Companhia das Letras, Novembro de 2017), parecem harmonizar na perfeição com o olhar pausado de Sérgio Jacques ante o formigar que se adivinha à sua volta. É o Porto gentrificado, o Porto turistificado, uma cidade tomada diariamente de assalto por gente das sete partidas do mundo, gente de passagem, de rosto fugaz, voraz na urgência de tudo registar com a sua câmara fotográfica ou telemóvel. Que talvez daí a umas horas estará a muitos milhares de quilómetros de distância, exausta, levando consigo cinco mil imagens guardadas nos cartões de memória. Mas o que viu, realmente? Pelo que vi e senti, pelo que me levou a pensar e a imaginar, esta é uma exposição que recomendo vivamente. A salinha é acanhada, as imagens são poucas e o custo do bilhete – com o pretexto de que “há outras coisas para ver” –, é um escândalo. Ao menos não vai precisar de subir os degraus todos e esta “torre” do Sérgio Jacques é daquelas que vale a pena descobrir.

terça-feira, 1 de julho de 2025

CINEMA: "Mississipis" | António-Pedro



CINEMA: “Mississipis”
Realização | António-Pedro
Fotografia | António-Pedro, Miguel Canaverde, Vasco Saltão
Montagem | António-Pedro, Cláudia Rita Oliveira
Interpretação | Filipa Francisco, Susana Gaspar, António Torres, Ricardo Freitas, Pietro Romani
Produção | António-Pedro, Caroline Bergeron, João Matos, João Moreira, Leonor Noivo, Luísa Homem, Pedro Pinho, Susana Nobre, Tiago Hespanha
Portugal | 2024 | Documentário | 88 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar - Castello Lopes
27 Jun 2025 | sex | 13:05


Antes de falarmos de “Mississipis”, o documentário, falemos de “A Viagem”, espectáculo de dança. “A Viagem” começou com uma viagem que a coreógrafa e artista transdisciplinar Filipa Francisco fez a Ramallah, na Palestina, para trabalhar com Carlos Pez e com a El-Funoun, companhia de dança tradicional e contemporânea desta cidade. Trabalhar sobre as danças tradicionais, para esta companhia, é uma questão de afirmação de identidade e de sobrevivência a uma colonização brutal, um acto de resistência, de reconstrução e de sobrevivência deste país. Quando Filipa Francisco regressou a Portugal, quis perceber as danças tradicionais, o que tinham de identidade e de resistência. E, com o impulso de um desafio do cineasta Tiago Guedes, iniciou um projecto de investigação e criação que mistura a dança tradicional com a contemporânea, ao qual decidiu chamar “A Viagem”. Daí em diante, quase podemos intuir o convite a outros artistas para integrarem o projecto, o trabalho em residência artística com os grupos folclóricos, o envolvimento de todos os participantes em matéria de co-criação, o desenho das partituras coreográficas e musicais, enfim, a apresentação do trabalho num tão aguardado espectáculo final.

Neste cruzamento de grupos de desconhecidos que, no interior de Portugal, embarcam numa viagem artística e existencial, vamos encontrar António-Pedro, artista multidisciplinar e autor da música da peça, alguém cuja sensibilidade o levou a fixar a viagem humana que foi acontecendo em cada uma das residências, desde o início do projecto, em 2011. Durante cerca de dez anos, o realizador foi registando estes processos em vinte e cinco locais diferentes, em Portugal, no Brasil e no País de Gales. Fazendo incidir o seu olhar sobre o ponto de junção dos que chegam da cidade e do “contemporâneo”, com os que são do campo e da “cultura popular”, o realizador conta histórias, convoca memórias e dialoga com a vida, ao mesmo tempo que espreita o insondável de si próprio e de cada personagem. As imagens são a prova de que “A Viagem” só se conquista no espaço não formal, no encontro entre o que pessoas tão diferentes podem ter de comum. Entre outras coisas e sintetizando: ter um corpo. Um corpo que dança, que consegue e não consegue, que se cansa, que envelhece, que trabalha, que se diverte, que deseja, que quer, que se transforma. E que, ocasionalmente, consegue ligar-se e formar um corpo comum.

Tentando segurar o tempo, “Mississipis” é, nesse desígnio do prolongar “A Viagem”, um manifesto sobre a importância vital do encontro, das relações de confiança que cada um estabelece com os outros, mas também consigo próprio. Atento às várias fases de um processo intensificado pela necessidade de levantar um espetáculo num período demasiado curto, António-Pedro mostra-nos de que forma o espaço e o tempo são explicados e partilhados. Trabalha-se a liberdade de fazer com o corpo. Improvisa-se. Num chão que é palco, as quedas são tudo menos acidentes. Propõem-se imagens que possam ajudar a criar quadros na dança. Descobrem-se coisas novas. Soltam-se emoções, risos, sussurros e histórias contadas baixinho. Ensaia-se em casa e no campo, na farmácia, no posto médico, no corredor da fábrica. Há sempre medo, mas quando as máscaras caem, sente-se uma liberdade enorme e uma vibração comum a todos. “Mississipis” é um documentário muito belo, que nos vem falar de uma espécie de utopia, a possibilidade de uma verdadeira união entre um grupo de indivíduos, capazes de criar, em conjunto, novos passos, novas relações entre si, novos futuros.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5” | Agostinho Santos e Manuel Sobrinho Simões



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
Com | Agostinho Santos
Participação especial | Manuel Sobrinho Simões
Centro de Reabilitação do Norte
26 Jun 2025 | qui | 17:00


“ (…) Germinam escolhas intrincadas:
grito vermelho de lâmina erguida
no preto e branco
- tela de protesto ou prenúncio de terramoto:
vozes de ruas desertas,
águas que cavalgam naufrágios de vidas
em simbioses (com)sentidas.”
Ilda Figueiredo, in “Nas Asas do Pássaro de Fogo”

As Tertúlias Literárias “Conversas às 5” voltaram a abrir-se em novidade e espanto aos muitos amantes das artes e das letras que marcaram presença no Centro de Reabilitação do Norte, para assistir à última sessão antes da pausa estival. Pela primeira vez na história do evento, o convite foi endereçado a um artista plástico e o livro à volta do qual a conversa se desenrolou foi um magnífico álbum, repleto de intrigantes e muito belos trabalhos artísticos, quase despido de palavras, mas com muito para dizer. Jornalista, artista plástico, investigador, curador independente e director da Bienal Internacional de Arte de Gaia, Agostinho Santos foi o convidado da sessão, a qual contou também com a participação especial de Manuel Sobrinho Simões, renomado patologista, Professor Emérito da Universidade do Porto e fundador do IPATIMUP, um dos três laboratórios europeus acreditados pelo Colégio Americano de Patologistas. “O Estranho Terrível Outro”, editado pela Officium Lectionis (2025), foi o livro em cima da mesa, girando a conversa em torno do trabalho de Agostinho Santos e da forma como, através do desenho, da pintura ou da colagem, o artista interpreta, de forma única, a variedade de rostos de pessoas com cancro.

“A arte é uma arma para denunciar e alertar para os males do mundo, e também para reflectir e convidar a reflectir sobre todas as questões que nos incomodam”, começou por dizer Agostinho Santos, artista que não dispensa de elevar a voz que a arte lhe confere para denunciar “a guerra, as desigualdades sociais, as injustiças, a corrupção, os problemas ambientais, a discriminação entre o homem e a mulher, a violência”. Veio isto a propósito de “O Estranho Terrível Outro”, um livro que aborda a questão do cancro na óptica do pintor, assunto que, confessa, “me mete medo, me faz pensar”. Um livro que, antes de o ser, foi uma série de pinturas sobre o cancro na tentativa de o personalizar, de partir em busca da sua imagem. Neste caminho de descoberta, Agostinho Santos sentiu, a partir de dada altura, a necessidade de aprofundar o tema, recorrendo para tal ao Professor Manuel Sobrinho Simões que o foi “municiando” com “fotografias de cancros, desde peças macroscópicas e imagens de microscopia óptica, até paisagens lunares de microscopia electrónica”. O resultado salda-se, nas palavras do patologista, por “uma incursão feliz na tentativa de aproximar a estranheza da diferença”.

Folheando o livro, salta à vista do leitor a diversidade de abordagens àquilo que de comum há num tema tão vasto. Incontornáveis, a rica iconografia - imagens que se entrecruzam e metamorfoseiam numa estranha simbiose, figurações de animais e plantas, símbolos do sagrado e do profano - e as séries sequenciais marcadas por uma cor predominante, foram temas de conversa, com Manuel Sobrinho Simões a falar da cor como “algo que tem um preço”, dando como exemplo o polvo e a evolução natural que lhe permite confundir-se com o seu meio natural e escapar aos predadores. “O artista faz o contrário, a coisa pior para o artista é passar despercebido”, acrescenta. Visto por Agostinho Santos como um assunto “negro, doloroso, que me mete medo”, o cancro representado na sua pintura - além de constituir uma tentativa de exorcizar fantasmas e demónios -, tem muita cor. “Um dos principais responsáveis por eu utilizar muito a cor foi o Professor Sobrinho Simões que me fez chegar trabalhos de estudo e de investigação com muita cor. Portanto, eu tentei que os rostos de pessoas com cancro - e neste livro só há rostos - incorporassem os medos, as inquietações, o que as pessoas sentem, dando cor àquilo que nos mete medo, não reduzir o problema ao preto e branco.”

“Não há nada tão parecido connosco como os nossos cancros. Se eu tiver um gémeo, sou mais parecido com o meu cancro do que com o meu gémeo”. A estranheza da frase teve o condão de adensar ainda mais o silêncio na sala, com o público extraordinariamente atento àquilo que Sobrinho Simões tinha para dizer. Sem perder o foco numa particular representação pictórica do cancro, o patologista falou da carga genética comum ao ser humano e ao arroz, ao bróculo ou à banana, por exemplo - “quando estamos a comer uma banana, estamos a comer um primo afastado, o que é uma chatice”, ironizou. Lembrando que todos nós “já fomos um ovo”, Sobrinho Simões destacou a forma como o artista mostra os diferentes rostos de pessoas com cancro, diferentes representações “não só da biologia, como da relação com os outros, o medo, as expressões mais elaboradas do ser humano”. E acrescenta que “não é a arte e a ciência que nos caracterizam, antes a educação, a formação, a relação com os outros, o sermos decentes. Quando temos um cancro, perdemos estas carapaças, temos cagaço”, algo que o artista consegue captar muito bem, estabelecendo diferenças no que é semelhante.

A cor e as questões de ordem prática ou as tendências a ela ligadas, a forma como é percepcionada ou exprime estados de espírito, abriu espaço às questões do público, enriquecendo o momento com apontamentos de grande pertinência. O luto em diferentes culturas, os sonhos a cores ou a preto e branco, o daltonismo e aquilo que é inato ou adquirido, as influências da moda, as viagens e os livros, foram assuntos sobre a mesa a suscitar um intenso momento de troca de opiniões e partilha de experiências e conhecimento. “Não seria o pintor que sou, se não fosse o jornalista que fui”, disse Agostinho Santos, acrescentando que se não fosse jornalista e pintor gostaria de ser “jornalista e pintor”, para logo emendar e falar no gosto imenso que teria em ser cientista (com provas dadas em miúdo, quando quase fazia ir pelos ares a cave lá de casa). Os derradeiros momentos ouviram Agostinho Santos e Manuel Sobrinho Simões falar dos muitos “estranhos terríveis outros” que minam as nossas sociedades, mas também deste “exercício de comunidade” que são as tertúlias, do valor dos momentos em que abandonamos o “eu” e nos voltamos para o “nós”. Agostinho Santos irá regressar ao Centro de Reabilitação do Norte para mostrar os trabalhos resultantes da passagem da esposa, Ilda Figueiredo, por este espaço. Será em Agosto e estão todos convidados a visitar a exposição.

domingo, 29 de junho de 2025

ARTE URBANA: MurArcos 2025



ARTE URBANA: MurArcos 2025
Com | Daniela Guerreiro, Helen Bur, Jorge Charrua, Mariana Duarte Santos, Regg Salgado
Arcos de Valdevez, vários locais
25 Jun > 29 Jun 2025


Portentosa sinfonia de sol e de brisas, de luz e de cores, a Terra de Valdevez tem num verde viçoso sem par a sua nota dominante. E isto tanto é válido no Inverno como no Verão, o que a transforma numa pequena caixa de sedução. Franjeada pelo poético Lima, sulcada ao meio, e de ponta a ponta, pelo idílico Vez que lhe dá o nome, esta é uma terra caprichosamente moldada pela natureza, ora em montanhas empinadas e altivas, ora em preguiçosas encostas onde amadura o vinho e sonolentas várzeas onde cresce o pão. É neste quadro natural do mais belo recorte que vamos encontrar os Arcos de Valdevez, cujos habitantes sabem aliar um vasto e rico património à História e à Tradição. Guardiães de um legado milenar, os arcuenses primam em defender as suas matrizes identitárias, sem fechar as portas à modernidade que se oferece em Arte e Cultura. Deste “casamento de interesses” nasce o MurArcos, Festival de Arte Urbana voltado para a dinamização cultural e a reabilitação do espaço público. Desde 2023 que um conjunto de artistas, influenciados pela tradição local, as histórias da população e o contexto histórico e natural de Arcos de Valdevez, tem sido chamado a modernizar o aspecto rústico das casas locais, a impulsionar diálogos intergeracionais e a trazer um novo brilho à zona histórica dos Arcos de Valdevez.

À vista de todos, o resultado de três edições do Festival salda-se em treze intervenções de grandes dimensões e um número de peças de pequeno formato que, até ao início desta edição, era de três, mas que irá certamente crescer graças à criatividade e labor da artista britânica Helen Bur. Os amantes da Arte Urbana conhecem Helen Bur das suas muitas miniaturas espalhadas pela vila de Figueiró dos Vinhos, ou desse extraordinário mural na Covilhã que homenageia as mulheres trabalhadoras da indústria têxtil. Na edição deste ano do MurArcos, a artista oferece-nos uma peça de grandes dimensões, a qual pode ser apreciada na Rua Dr. Joaquim Carlos da Cunha Cerqueira e que representa um muito apetecido mergulho nas águas do Vez. Particularmente chamativo, o trabalho encerra uma dimensão marcadamente impressionista, tirando um extraordinário partido do jogo natural de luz e sombra que o entorno acrescenta. Mas Helen Bur não se fica por aqui e, no Largo da Valeta, já fez nascer duas peças miniaturais, de cunho realista, inspiradas em personagens com as quais a artista se vem cruzando nesta sua passagem pelos Arcos. A ver vamos quantas mais peças poderão surgir nas últimas vinte e quatro horas do evento.

Caminhando em direcção ao centro da vila, vamos encontrar na Rua Dr. António José Pimenta Ribeiro um mural em progresso com a assinatura de Jorge Charrua. Numa fase ainda precoce da sua execução, a peça não dá a ver aquilo no que se irá tornar, mas pela dimensão e colorido que se adivinha em esboços mais adiantados promete vir a ser algo de muito impactante. Certamente impactante e também em progresso está o trabalho conjunto das artistas Daniela Guerreiro e Mariana Duarte Santos. Com provas dadas no panorama da Arte Urbana, quer no plano nacional como internacionalmente, as artistas propõe-se oferecer-nos a figuração daquilo que parece ser o momento de pausa de alguém que, à hora do café, passa o olhar por uma fotografia antiga e reaviva memórias de um tempo outro. Vamos ter de aguardar pela conclusão da peça, mas o resultado final promete ser deslumbrante e pleno de significado. A concluir a breve apreciação dos trabalhos desta terceira edição do MurArcos, falo de Manolo Mesa e do mural que está a desenvolver na Rua 25 de Abril e que, em distintas narrativas, funde a ponte dos Arcos, réplica da anterior ponte medieval e um dos ex-libris da vila, com um conjunto de belas peças de cerâmica, de inspiração autoral, mas que lembram a tradicional loiça de Viana do Castelo.

Passemos agora um olhar pelo legado das duas primeiras edições do Festival. Desta “herança” artística, importa destacar os trabalhos das já referidas Daniela Guerreiro e Mariana Duarte Santos, quer em peças individuais, quer em colaboração artística entre si e com a participação de Regg Salgado, curador do MurArcos e também ele um extraordinário artista - impressionante o seu “Fio Condutor”, na Covilhã. Deste último podemos apreciar um mural muito belo intitulado “O Guarda do Vez” e, numa caixa de electricidade, junto a um mimoso recanto próximo do Largo da Valeta, “Jogo das Caricas”. Num registo muito próximo da ilustração, Mutes oferece-nos as obras “O Major e a Raposa” e “Sem Título”, esta última remetendo para o Recontro do Vez, decisivo episódio da História de Portugal ligado à fundação da nacionalidade. Pintora e muralista reconhecida internacionalmente, a argentina Milu Correch tira partido de duas faces de um posto de transformação de electricidade para, numa peça sem título, nos levar ao encontro do universo infantil e do brincar aos fantasmas. Em mais um extraordinário mural, Pantonio convida-nos a espraiar o olhar pelo Vez ao encontro de uma flora e de uma fauna que, na sua pintura, se fundem em graça, cor e movimento. Olhamos, enfim, para aquela que será a mais apreciada peça de um espólio que não cessa de crescer e que representa, na deslumbrante arte de Bordallo II, a Cachena, o maior bovino autóctone da Península Ibérica. Hoje termina o MurArcos, mas as peças vão estar lá pelo tempo fora e, em qualquer altura, são merecedoras de uma visita.

sábado, 28 de junho de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #96



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #96
Com | Pedro Hasrouny, Malu Lins, Frederico Mesquita, João Bica, Carla Chambel, Alexander David
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
26 Jun 2025 | qui | 21:30


Dobrada a primeira metade da 9.ª temporada do Shortcutz Ovar, o cinema em versão curta voltou, antes da pausa estival, a preencher o serão da última quinta-feira do mês na Escola de Artes e Ofícios. Apesar das evidentes diferenças entre si, o público pôde encontrar aspectos comuns às três propostas de programação, em narrativas abertas ao mar e à praia, às férias, ainda que centradas na imagem que projectamos nos outros, no sentido de auto-afirmação e nos conflitos interiores que daí possam advir. “Francisco Perdido”, de Frederico Mesquita, terá sido o filme que melhor ilustra o carácter da sessão, com o seu tom de comédia dramática a seguir os passos do pequeno Francisco e a sua tentativa de conquistar o coração de Rita. Com Tiago “ao barulho” na equação, a jornada amorosa revela-se um fracasso, ao qual outros se seguirão. Eleito pelo público como o melhor filme da sessão, este olhar agudo sobre os primórdios da adolescência tem como ponto de partida as memórias de infância do realizador, desdobrando um manancial de peripécias onde se cruzam desejo e embaraço, inocência e rebeldia, ousadia e frustração. Um filme onde não faltam as referências musicais que marcaram o início do novo milénio, um garrafão de Coca-Cola, Ronaldo com a camisola 17 da selecção, a “tragédia grega” da final do Euro 2004 e toda uma eloquente cartilha de insultos e palavrões.

“Uma Mãe Vai à Praia” foi o filme de abertura da sessão e nele o realizador libanês Pedro Hasrouny dá nota de uma ida à praia de Teresa, na companhia do pequeno Benji, o seu filho, e da irmã Marga. Mãe solteira, obesa mórbida, Teresa parece ser uma mulher bem resolvida consigo mesma, mas as comparações que Marga estabelece entre Julian, o filho, e Benji, levam Teresa a vacilar nas suas convicções. Exercício de final de curso, “Uma Mãe Vai à Praia” denuncia, com humor e ironia, os estereótipos sociais e as pressões sobre tudo aquilo que configura uma fuga aparente aos padrões de normalidade, seja lá o que isso for. Em camadas que se adensam à medida que a acção progride, o filme faz pender para o lado do espectador o ónus da moralidade ou legitimidade em julgar o outro, convidando-o a abraçá-lo na sua diferença. Piscadela de olho a filmes como “As Férias do Sr. Hulot”, “Pauline à la Plage” ou “Um Anjo à Minha Mesa”, “Uma Mãe Vai à Praia” tem na sua componente estética um enorme trunfo, já que o formato do filme parece reforçar o ambiente concentracionário que condiciona esta mulher refém das normas. O outro grande trunfo é Cláudia Jardim, fabulosa na sua grandeza e eloquência, no que se mostra capaz de dizer sem dizer praticamente nada.

Enfim, de Alexander David assistimos, no fecho da sessão, a “À Tona d’Água”, um filme que rompe com o tom de comédia comum aos dois anteriores e que aborda as férias de Verão em família de uma criança pré-adolescente. Primeira curta-metragem do realizador de “A Primeira Idade”, o filme aborda as questões de género no início da adolescência, um tempo de estranheza, transformações, dúvidas e conflitos, de construção da identidade nos seus mais variados contextos. Com enorme sensibilidade e de forma contida, Alexander David poisa um olhar terno e sensível na figura de Mónica (extraordinária Ada Costa), acompanhando-a nos seus muitos silêncios que mais não são do que o reflexo da forma incerta e sinuosa como a pessoa se constrói, muitas vezes por caminhos desconhecidos feitos de tentativas e erros. Rejeitando paternalismos, condescendências ou falsos moralismos, o filme é um retrato sóbrio desta criança que sabe que é o que não parece e cujas perguntas permanecem sem resposta (eloquente a quase ausência dos pais ao longo do filme). Será a descoberta de um outro desconhecido a proporcionar a descoberta do eu desconhecido e a mostrar todo um novo e longo caminho que agora se abre em mistério e certeza.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

EXPOSIÇÃO: “Tecendo Música: A Iconografia Musical na Tapeçaria de Portalegre”



EXPOSIÇÃO: “Tecendo Música: A Iconografia Musical na Tapeçaria de Portalegre”
Curadoria | Cláudia Sousa
Museu da Tapeçaria de Portalegre – Guy Fino
16 Mai > 31 Out 2025


Das tapeçarias de Portalegre conhecemos-lhes a história longa de mais de oito décadas ao serviço da arte e da cultura, a sua originalidade e enorme poder decorativo, a peça no tear vertical a crescer a partir da base, o trabalho de “formiguinha” das laboriosas tecedeiras. No rigor de uma técnica integralmente manual, capaz de traduzir na perfeição o cartão do pintor, abraçamos as obras de Nadir Afonso, Manuel Cargaleiro, Graça Morais, Luís Pinto-Coelho, Almada Negreiros, Vieira da Silva, Guilherme Camarinha, Joana Vasconcelos e tantos outros artistas, como se dos seus originais a óleo ou acrílico se tratasse. Mas as narrativas em torno de cada uma destas peças verdadeiramente assombrosas não se esgotam na sua qualidade e originalidade, na técnica invulgar ou na preservação de uma arte com tanto de saber como de paixão. É isto que “Tecendo Música: A Iconografia Musical na Tapeçaria de Portalegre” vem demonstrar, ao combinar elementos que reconhecemos como pertencentes ao universo da música, com a evocação de práticas sociais, culturais e performativas, gestos ou estruturas simbólicas próprias do som, da escuta e do acto musical.

Com curadoria de Cláudia Sousa, a exposição propõe um olhar sobre as presenças musicais, visíveis tanto em instrumentos e músicos, como na composição rítmica das formas ou na evocação sensorial de práticas e ambientes. Nesta ligação dos universos musical e pictórico, a arte da tapeçaria surge como um meio onde som e imagem se cruzam, o ritmo do fio e o silêncio da lã repletos de memórias e gestos que falam também de música. De forma subtil, mas intensa e viva, a exposição é um desafio aos sentidos do visitante, convidando-o a perceber na destreza e minúcia com que a tecedeira trabalha a trama, o suave dedilhar das cordas de uma harpa ou o leve pousar dos dedos sobre as teclas de um piano. Esta forte ligação do que se vê ao que se ouve é reforçada por um conjunto de propostas musicais surpreendentes, nas quais imperam a elegância e o bom gosto. Prova disso é a harmonização de composições sonoras realizadas por um conjunto de alunos da Escola de Artes do Norte Alentejano, inspiradas nas tapeçarias expostas de, entre outros, José de Guimarães, Siza Vieira, Júlio Pomar, Cruzeiro Seixas ou Le Corbusier.

O projecto “Mil e uma Noites”, do grupo UmColetivo e vozes de Ana Lua Caiano e Cátia Terrinca, integra igualmente a exposição. Através dele, o visitante tanto é receptor das músicas que as imagens convocam, como tem a possibilidade de criar música a partir das tapeçarias que se abrem ao seu olhar. No convite a fechar os olhos e ouvir de imaginação aberta, hão-de soar teares e estórias de quem partilhou com eles a vida, bem como poemas de artistas plásticas e mulheres que contribuíram para que a arte da tapeçaria de Portalegre seja, afinal, capaz de atravessar os tempos. Na reunião de artistas de diferentes gerações, sensibilidades e linguagens visuais, encontra esta mostra a expressão maior do dar(-se) a ouvir, incentivando o visitante a descobrir não apenas a presença da música na tapeçaria, mas a diversidade de interpretações que dela podem emergir. “Tecendo Música: A Iconografia Musical na Tapeçaria de Portalegre” é, por isso, mais do que uma exposição sobre a música como tema. É uma viagem pela escuta silenciosa da tapeçaria. Um convite a ver com os olhos... e a ouvir com o olhar.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Com as Imagens Bonitas do que Desapareceu” | Paula Preto



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Com as Imagens Bonitas do que Desapareceu”,
de Paula Preto
Co-criação | Alicia Rodrigues, David Silva, Igor Monteiro, Leonor Pina, Miriam Gonçalves, Nicole Saraiva, Yuri Santos
Bienal ’25 Fotografia do Porto
Térmita
15 Mai > 29 Jun 2025


No espaço singular da Livraria Térmita, ao cimo da Picaria, expõe-se uma das mais interessantes séries fotográficas desta quarta edição da Bienal de Fotografia do Porto. Com assinatura da fotógrafa e arte educadora Paula Preto, “Com as Imagens Bonitas do que Desapareceu” sublinha a urgência da presença, do sentido de comunidade e da pertença com a natureza. A partir de um laboratório colaborativo da artista, um grupo de jovens do Centro Social Paroquial Nossa Senhora da Ajuda resgatam o brincar, a curiosidade e a imaginação como forças colectivas para pensar a mudança e a transição para um futuro sustentável. Desenvolvido durante o ano de 2024, no âmbito do “Clima Emocional” - projecto de criação e educação a partir da linguagem fotográfica com foco na ecologia dos sentimentos e das emoções -, Paula Preto dinamizou quinze oficinas de fotografia cujo foco recaiu, num primeiro momento, sobre a experimentação com a câmara fotográfica e as suas potencialidades, o pensamento criativo e o treino do olhar e da observação, abrangendo o Centro Social, a praia e o Parque da Pasteleira.

A partir de uma dinâmica de escuta activa das inquietações e perspectivas deste grupo, Paula Preto desenvolveu um tema que reflecte não só as mudanças no mundo interno destes jovens (fase de transição da infância para adolescência, de mudança de escola e consequentes alterações nas dinâmicas sociais e familiares), mas também no mundo externo, dado que muitos dos elementos naturais fotografados no Parque da Pasteleira durante as oficinas deixaram de existir. Surge, por isso, uma urgência em agir no momento presente. Definido o tema do trabalho, o foco das oficinas recaiu sobre o treino de capacidade de selecção e olhar crítico perante o trabalho desenvolvido; da capacidade de associação de sentimentos e emoções a fotografias; do potencial narrativo de uma imagem; da exploração do pensamento abstracto; e, ainda, da reflexão sobre a relação que estabelecemos com o lugar que habitamos. Procurou-se, assim, reforçar a ideia de que os jovens são elementos transformadores do espaço que os rodeia, com poder para intervir na comunidade.

Aquilo que vemos no conjunto de imagens agora apresentadas corresponde, essencialmente, à última fase das oficinas de fotografia, dedicada à encenação e ficção. Os jovens foram desafiados a descrever elementos da sua infância que desaparecem com o crescimento e elementos que gostariam de levar consigo para a adolescência. A partir daí, propuseram várias ideias de possíveis fotografias e composições de imagens, encenando-as. Além da componente artística, “Clima Emocional” propôs uma componente de desenvolvimento pessoal e de educação ambiental, com seis sessões de Culturas Regenerativas nas quais foram exploradas emoções, vulnerabilidade, pensamento criativo e metafórico, conceitos de permacultura e de sustentabilidade.Tendo como intenção prolongar os efeitos do projecto no tempo e alargar os seus impactos, foram ainda dinamizadas sete sessões com os técnicos do Centro Social que acompanham os jovens, crianças e séniores da comunidade. Desta forma, puderam compreender o trabalho dinamizado no âmbito do projecto, incorporar princípios de permacultura na sua prática profissional e, consequentemente, no contexto comunitário e familiar do jovens e crianças com quem trabalham.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

CONCERTO: ars ad hoc



CONCERTO: ars ad hoc
Com | Ricardo Carvalho (flauta), Horácio Ferreira (clarinete), Diogo Coelho (violino), Gonçalo Lélis (violoncelo), João Casimiro Almeida (piano)
FIME - Festival Internacional de Música de Espinho
Auditório de Espinho - Academia
22 Jun 2025 | dom | 18:00


Espaço para a criação e divulgação da grande música de câmara, o ars ad hoc surgiu em 2018, no contexto da “Arte no Tempo” e foca boa parte da sua actividade na interpretação de nova música para diferentes formações, interpretando e estreando, com regularidade, obras de compositores nacionais e estrangeiros, trabalhando sempre que possível em contacto directo com os criadores que, por vezes, escrevem música propositadamente para este agrupamento. Com programação de Diana Ferreira, o ars ad hoc é formado por músicos que, depois de se terem notabilizado em Portugal, complementaram os seus estudos no estrangeiro: Ricardo Carvalho (flauta), Horário Ferreira (clarinete), Diogo Coelho e Matilde Loureiro (violino), Ricardo Gaspar e Francisco Lourenço (viola) e Gonçalo Lélis (violoncelo). Foi justamente este agrupamento o convidado do Festival Internacional de Música de Espinho para fechar um fim de semana recheado de propostas aliciantes e riquíssimas a muitos títulos.

Uma vez que falei em aliciante, todos concordaremos que um recital de música de câmara dedicado aos modernismos não deixa de ser uma proposta aliciante. Proposta que o público, em muito considerável número, abraçou com entusiasmo, disposto a acompanhar a viagem musical pelos caminhos da tradição dos modernismos, contrapondo os seus primeiros passos às inovações espectralistas. “Prélude à l’après midi d’un faune”, de Claude Debussy, revelou-se uma escolha acertada num programa com um inegável cunho didáctico, já que falamos de uma peça cujo papel disruptivo no cenário musical de finais do século XIX e início do século XX é inegável, assinalando o nascimento da chamada “música moderna”. Num arranjo de Tim Mulleman, os músicos defenderam com brilhantismo uma peça irreverente e ousada na sua aparente falta de estrutura e toque quase improvisado. No bailar dos acordes, o público acompanhou com deleite as tentativas vãs de um fauno de seduzir duas ninfas, por entre o canto dos pássaros, o coaxar das rãs e a música que o próprio fauno extrai da sua flauta (notável a interpretação de Ricardo Carvalho).

Nenhuma composição do século XX se eleva com mais determinação acima das provações e tribulações terrenas do que o quarteto para violino, violoncelo, clarinete e piano que Olivier Messiaen completou e executou no campo de prisioneiros de guerra onde foi encerrado em Janeiro de 1941, o Stalag VIII A, perto de Görlitz, na Baixa Silésia. Tristan Murail quis homenagear o seu mestre, compondo alguns anos depois “Stallag VIIIa”, tema seguinte no alinhamento do concerto, interpretado pelo agrupamento com brilhantismo e que resultou numa experiência vivificadora pelo que acrescentou de diversidade modernista. Também ele aluno de Messiaen, Gerard Grisey compôs “Talea”, a terceira peça interpretada pelo ars ad hoc e cujo ímpeto dramático, textura espectral e vozes polifónicas independentes alcançou a excelência no trabalho dos músicos, com destaque para o “trovejar” do piano de João Casimiro Almeida. “Três andamentos de Pétrouchka”, de Igor Stravinsky, fechou o ciclo, acrescentando o olhar neoclassicista às tendências das composições anteriores e abrindo novos e mais vastos caminhos à Modernidade. Um enorme concerto, com um alinhamento inteligentemente trabalhado e interpretações a roçar o brilhantismo. Bravo!