“ (…) Germinam escolhas intrincadas:
grito vermelho de lâmina erguida
no preto e branco
- tela de protesto ou prenúncio de terramoto:
vozes de ruas desertas,
águas que cavalgam naufrágios de vidas
em simbioses (com)sentidas.”
Ilda Figueiredo, in “Nas Asas do Pássaro de Fogo”
As Tertúlias Literárias “Conversas às 5” voltaram a abrir-se em novidade e espanto aos muitos amantes das artes e das letras que marcaram presença no Centro de Reabilitação do Norte, para assistir à última sessão antes da pausa estival. Pela primeira vez na história do evento, o convite foi endereçado a um artista plástico e o livro à volta do qual a conversa se desenrolou foi um magnífico álbum, repleto de intrigantes e muito belos trabalhos artísticos, quase despido de palavras, mas com muito para dizer. Jornalista, artista plástico, investigador, curador independente e director da Bienal Internacional de Arte de Gaia, Agostinho Santos foi o convidado da sessão, a qual contou também com a participação especial de Manuel Sobrinho Simões, renomado patologista, Professor Emérito da Universidade do Porto e fundador do IPATIMUP, um dos três laboratórios europeus acreditados pelo Colégio Americano de Patologistas. “O Estranho Terrível Outro”, editado pela Officium Lectionis (2025), foi o livro em cima da mesa, girando a conversa em torno do trabalho de Agostinho Santos e da forma como, através do desenho, da pintura ou da colagem, o artista interpreta, de forma única, a variedade de rostos de pessoas com cancro.
“A arte é uma arma para denunciar e alertar para os males do mundo, e também para reflectir e convidar a reflectir sobre todas as questões que nos incomodam”, começou por dizer Agostinho Santos, artista que não dispensa de elevar a voz que a arte lhe confere para denunciar “a guerra, as desigualdades sociais, as injustiças, a corrupção, os problemas ambientais, a discriminação entre o homem e a mulher, a violência”. Veio isto a propósito de “O Estranho Terrível Outro”, um livro que aborda a questão do cancro na óptica do pintor, assunto que, confessa, “me mete medo, me faz pensar”. Um livro que, antes de o ser, foi uma série de pinturas sobre o cancro na tentativa de o personalizar, de partir em busca da sua imagem. Neste caminho de descoberta, Agostinho Santos sentiu, a partir de dada altura, a necessidade de aprofundar o tema, recorrendo para tal ao Professor Manuel Sobrinho Simões que o foi “municiando” com “fotografias de cancros, desde peças macroscópicas e imagens de microscopia óptica, até paisagens lunares de microscopia electrónica”. O resultado salda-se, nas palavras do patologista, por “uma incursão feliz na tentativa de aproximar a estranheza da diferença”.
Folheando o livro, salta à vista do leitor a diversidade de abordagens àquilo que de comum há num tema tão vasto. Incontornáveis, a rica iconografia - imagens que se entrecruzam e metamorfoseiam numa estranha simbiose, figurações de animais e plantas, símbolos do sagrado e do profano - e as séries sequenciais marcadas por uma cor predominante, foram temas de conversa, com Manuel Sobrinho Simões a falar da cor como “algo que tem um preço”, dando como exemplo o polvo e a evolução natural que lhe permite confundir-se com o seu meio natural e escapar aos predadores. “O artista faz o contrário, a coisa pior para o artista é passar despercebido”, acrescenta. Visto por Agostinho Santos como um assunto “negro, doloroso, que me mete medo”, o cancro representado na sua pintura - além de constituir uma tentativa de exorcizar fantasmas e demónios -, tem muita cor. “Um dos principais responsáveis por eu utilizar muito a cor foi o Professor Sobrinho Simões que me fez chegar trabalhos de estudo e de investigação com muita cor. Portanto, eu tentei que os rostos de pessoas com cancro - e neste livro só há rostos - incorporassem os medos, as inquietações, o que as pessoas sentem, dando cor àquilo que nos mete medo, não reduzir o problema ao preto e branco.”
“Não há nada tão parecido connosco como os nossos cancros. Se eu tiver um gémeo, sou mais parecido com o meu cancro do que com o meu gémeo”. A estranheza da frase teve o condão de adensar ainda mais o silêncio na sala, com o público extraordinariamente atento àquilo que Sobrinho Simões tinha para dizer. Sem perder o foco numa particular representação pictórica do cancro, o patologista falou da carga genética comum ao ser humano e ao arroz, ao bróculo ou à banana, por exemplo - “quando estamos a comer uma banana, estamos a comer um primo afastado, o que é uma chatice”, ironizou. Lembrando que todos nós “já fomos um ovo”, Sobrinho Simões destacou a forma como o artista mostra os diferentes rostos de pessoas com cancro, diferentes representações “não só da biologia, como da relação com os outros, o medo, as expressões mais elaboradas do ser humano”. E acrescenta que “não é a arte e a ciência que nos caracterizam, antes a educação, a formação, a relação com os outros, o sermos decentes. Quando temos um cancro, perdemos estas carapaças, temos cagaço”, algo que o artista consegue captar muito bem, estabelecendo diferenças no que é semelhante.
A cor e as questões de ordem prática ou as tendências a ela ligadas, a forma como é percepcionada ou exprime estados de espírito, abriu espaço às questões do público, enriquecendo o momento com apontamentos de grande pertinência. O luto em diferentes culturas, os sonhos a cores ou a preto e branco, o daltonismo e aquilo que é inato ou adquirido, as influências da moda, as viagens e os livros, foram assuntos sobre a mesa a suscitar um intenso momento de troca de opiniões e partilha de experiências e conhecimento. “Não seria o pintor que sou, se não fosse o jornalista que fui”, disse Agostinho Santos, acrescentando que se não fosse jornalista e pintor gostaria de ser “jornalista e pintor”, para logo emendar e falar no gosto imenso que teria em ser cientista (com provas dadas em miúdo, quando quase fazia ir pelos ares a cave lá de casa). Os derradeiros momentos ouviram Agostinho Santos e Manuel Sobrinho Simões falar dos muitos “estranhos terríveis outros” que minam as nossas sociedades, mas também deste “exercício de comunidade” que são as tertúlias, do valor dos momentos em que abandonamos o “eu” e nos voltamos para o “nós”. Agostinho Santos irá regressar ao Centro de Reabilitação do Norte para mostrar os trabalhos resultantes da passagem da esposa, Ilda Figueiredo, por este espaço. Será em Agosto e estão todos convidados a visitar a exposição.