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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Digitar aqui para procurar & O corpo como arquivo”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Digitar aqui para procurar & O corpo como arquivo”,
de Sofia Yala
Curadoria | Elina Heikka
Encontros da Imagem de Braga 2024
Galeria do Paço - UMinho
21 Set > 26 Out 2024 


Nascida em Portugal, Sofia Yala sempre viveu rodeada de histórias e com acesso a um arquivo que sabe que nem todos os emigrantes têm. Por outro lado, desde cedo percebeu que as instituições são concebidas de forma elitista, feitas para que poucos investigadores as possam aceder, com histórias representativas de um escasso número de sectores da população. No momento em que pegou numa máquina fotográfica, Sofia soube que queria compreender as trajectórias da sua família e contar uma história comum a muitos migrantes angolanos que deixaram o país antes e depois da independência. Alguns ficaram, outros nunca mais regressaram. Para tanto, revisitou, alterou e reconstruiu os seus álbuns e arquivos de família: Os migrantes africanos na Europa, os seus descendentes, a complexa realidade dos corpos racializados e as possibilidades de criação a partir de formas de liberdade em mutação.

“Digitar aqui para procurar & O corpo como arquivo” surge da necessidade de encontrar respostas para as várias questões levantadas em torno das pessoas desconhecidas que encontrou nos álbuns de fotografias. As longas conversas com os familiares levaram-na a aperceber-se de que muita da informação sobre a história da família está fragmentada e perdida para sempre. No entanto, o reconhecimento da importância dos álbuns de familiares negros e da sua representação da história negra funcionou como um impulso pessoal para digitalizar e visualizar a história negra através da prática artística e da expressão diversificada. O tratamento dado aos documentos encontrados numa mala do seu avô – entre notas sobre o local de nascimento dos filhos, datas de nascimento, nomes completos, documentos oficiais e correio internacional – serviu de ponto de partida para um trabalho que foi sendo enriquecido com recurso ao autorretrato e à colagem. Estava em marcha um processo de reconstituição de um espaço paralelo de realidades transgeracionais.

Nesta exposição, a imagem desafia-nos e desafia as formas discriminatórias de apresentar as pessoas. Sofia Yala interessa-se por escavar um pouco e sabotar as noções de realidade, para compreender que o arquivo não é algo deixado no passado e que não deve ser alterado. Pelo contrário, pode sempre ser manipulado, e fazê-lo é um direito que a todos assiste. É isso que a artista faz, remexendo e intervindo nos seus álbuns de família. Entre outros caminhos, a pesquisa levou-a a um arquivo público em Portugal com muitos documentos e imagens da antiga Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Entre as imagens, encontrou um perfil do seu avô, que era tratado como um criminoso. Para ela, foi chocante: para a sua família, o avô era um herói que tinha lutado, juntamente com o seu sindicato, num país que ainda não era independente, pelos direitos dos trabalhadores da marinha mercante portuguesa e angolana. Centrar a busca numa pessoa racializada e continuar com essa procura de tentar viver fora da categorização foi tarefa delicada e árdua que a artista decidiu abraçar.

Onde está a história de uma família como a de Sofia? Quem conta essas histórias? Para Sofia Yala, “os corpos que migram ou os que estão sob algum regime tentam sempre apresentar-se de uma forma ‘civilizada’. Tentam mostrar o que os estados e os regimes querem ver. Por isso, muitas vezes vemos uma atuação nos retratos, mas não a realidade. Muitas pessoas tentaram libertar-se através da música ou da comida, mas as imagens são normalmente uma fachada que as protege”. Ao mesmo tempo, essas fachadas não garantem respeito ou reconhecimento total. A artista gosta de jogar com paralelismos. O arquivo permite-lhe trazer para o presente questões que foram e são relevantes. “O Corpo como Arquivo” é o reconhecimento de que houve gerações passadas que tiveram uma série de restrições que Sofia não tem agora, ainda que, em simultâneo, ela viva agora outras experiências que os seus antepassados não tiveram. “Somos todos o resultado de alterações no percurso histórico”, diz Sofia.

[Baseado no texto de Marcela Vallejo, o qual pode ser lido na íntegra em https://webraga.pt/evento/exposicao-digitar-aqui-para-procurar-o-corpo-como-arquivo-de-sofia-yala/]

domingo, 20 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024 (III)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com Emmy Curl, Gobi Bear e Mirror People
Escola de Artes e Ofícios
19 Out 2024 | sex | 21:30


Chegou ao fim a quinta edição do OVAR EXPANDE. Por força das circunstâncias, uma edição que “ganhou” um dia, chamando à Escola de Artes e Ofícios, entre quarta-feira e sábado, um elevado número de admiradores, aficionados ou simples curiosos do fenómeno da nova música portuguesa. Da pop ao rock, passando pelo jazz e pela electrónica, pela soul ou pela música de raíz tradicional portuguesa, o certame deu a ver, escutar e sentir muito do (muito) bom que se faz no nosso país em matéria musical. Criatividade, vontade de inovar, ousadia, ambição e muita energia, foram predicados da música que Emmy Curl, Mazgani, Margarida Campelo, Bardino, Gobi Bear, Sara Cruz, Laura Rui e Mirror People tiveram para oferecer ao público, fazendo de cada concerto um feliz momento de cumplicidade e partilha. Mas o OVAR EXPANDE não se limitou aos oito concertos, chamando outros e novos actores na forte relação existente entre a música e o cinema. À faceta formativa, vertida numa masterclasse e numa oficina, juntou-se a conversa, outra das imagens de marca do certame, abordando temas como a estreita ligação entre a música e os videoclips, os meios de promoção, o papel da rádio e das redes sociais num contexto de difusão ou a essência do cinema que faz com que o autor e cantor seja, também ele, produtor, realizador e actor.

A abrir a última noite do OVAR EXPANDE, Emmy Curl chamou “Pastoral” ao palco, vestindo de ritmo, harmonia e bom gosto um conjunto de músicas enraizadas na nossa tradição. Em doze inspirados temas, dois dos quais inéditos e pensados para um novíssimo trabalho que está em marcha, a artista abraçou a magia da música, mostrando as sinergias que folclore, jazz e electrónica podem estabelecer entre si, misturando-as no caldeirão da experimentação onde tudo é permitido. Entre a salutar irreverência e o profundo respeito pela tradição, Emmy Curl revelou ao público a genuinidade de um ADN sonoro que ressoa “em cada guitarra, em cada bombo electrónico e em cada voz que se ergue para cantar a nossa história”. Se dúvidas houvessem, “Poetas à Solta” (dedicada ao poeta e pensador Agostinho da Silva), “Mudança”, “Macelada” ou “Botar Água na Vinha” lá estariam para as dissipar. O destaque, no entanto, vai para as notáveis interpretações de “Maio Maduro Maio” e “Senhora do Almortão”, com Emmy Curl a acrescentar valor a dois temas maiores do nosso cancioneiro. E houve, também, a naturalidade e espontaneidade em palco, a voz única, a sinceridade que emana de frases como “o sentido da vida é a arte de estarmos juntos”, “gostava que houvesse mais amor próprio pela música portuguesa” ou “vamos todos plantar florestas”. Bravíssimo!

“Chamo-me Diogo e hoje tocamos todos juntos”. Descendo à Sala Galeria, o público pode escutar Gobi Bear, nome artístico de Diogo Alves Pinto numa alusão directa a uma espécie criticamente ameaçada de extinção. Não parece ser o caso do artista, já que a intensidade da sua música e a sua forte presença em palco têm o condão de garantir um crescente leque de fiéis seguidores. A mostrar “3”, o seu mais recente trabalho, o músico apresentou-se sozinho em palco, “desconstruindo as músicas em múltiplas camadas de guitarra e omnichord”. Músicas imersivas, intimistas, como viagens idílicas e tranquilas ao mais fundo da nossa alma, como bem se percebe em “Deepest Plains” ou “Under Flashes of White”. Como manda a tradição, o OVAR EXPANDE encerrou com a chamada música de dança. Em palco, Mirror People, alter ego do músico produtor e DJ Rui Maia, fez-se acompanhar por Rö (nome artístico de Maria do Rosário), dando a ver um conjunto de temas do seu mais recente trabalho discográfico, “Heartbeats etc.”, aos quais acrescentou muitos outros, num todo imaginativo, com muito de improviso e mais ainda de ritmo e energia. O público “obedeceu” à ordem de “arrastar as cadeiras, que isto é concerto para estar de pé” e fez da Sala Expande a sua pista de dança. O final perfeito de um OVAR EXPANDE fortemente consolidado e cada vez melhor.

sábado, 19 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: OVAR EXPANDE 2024 (II)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com André Tentúgal, Bardino, Gil Godinho, Jaime Valente, Margarida Campelo, Rui Martins e Sara Cruz
Escola de Artes e Ofícios
18 Out 2024 | sex | 10:30, 18:30 e 21:30


Arrancou durante a manhã com André Tentúgal a orientar a masterclass “Música e Cinema”, prosseguiu ao final da tarde com uma conversa que, entre a música e o cinema, se expandiu também à rádio, e terminou com dose tripla de concertos, num serão que se prolongou muito para lá da meia-noite. Foi este o “alinhamento” do terceiro dia do OVAR EXPANDE, um dia repleto de momentos de alta intensidade e que voltou a dar ao público a possibilidade de perceber o quanto de ousadia, criatividade, energia e talento se abriga na nova música portuguesa. Da conversa que Gil Godinho manteve com Rui Martins (do colectivo Bardino), Sara Cruz e Margarida Campelo, artistas que viriam a subir ao palco horas mais tarde, e ainda com o radialista Jaime Valente, reflectiu-se sobre a forte ligação entre a imagem e a música em termos de promoção artística, vincando-se a importância da rádio na divulgação dos artistas e dos seus trabalhos. O cantor como actor, a má música que nenhum vídeo salva ou a certeza de que o vídeo, ao invés de matar a rádio, criou ambientes propícios a que esta se reinventasse e revitalizasse, foram tópicos de uma conversa viva e enriquecedora a abrir espaço a uma noite de muita e boa música.

Naquele que foi o primeiro grande momento da noite, o colectivo portuense Bardino subiu ao palco para apresentar “Memória da Pedra Mãe”, um trabalho editado no final de Fevereiro com o carimbo da Jazzego. Com Rui Martins nos teclados, Diogo Silva no baixo, Rafael Gomes no saxofone e Nuno Fulgêncio na bateria, a banda ensaiou uma viagem por lugares extremos, onde o etéreo e o telúrico se fundem em energia e beleza. A “Pedra Mãe” - uma alegoria inspirada nas pedras parideiras, fenómeno geológico raro que acontece aqui bem perto, na Serra da Freita - funciona como um catalisador de memórias, dispostas em temas com os sugestivos nomes de “Giesta” ou “Tília”, “Fumo” ou “O Semeador”. Nas múltiplas camadas de que se reveste a música dos Bardino, percebem-se as cores da mais elementar matéria, cuja pureza e a dureza confluem num mundo subterrâneo, insólito e ameaçador. Entre o rock e a electrónica, a música dos Bardino abre igualmente espaço ao Jazz, numa salutar linha de experimentação que desafia convenções e desvenda novos horizontes. Um belíssimo concerto, a predispor para uma noite com muito ainda para oferecer.

As convulsões do magma e a violência dos fenómenos eruptivos, tão presentes na música dos Bardino, estendem a viagem até S. Miguel. Açoreana de gema, Sara Cruz abre-nos as portas da sua ilha com “Fourteen Forty-Five”, um trabalho com a chancela da Locomotiva Azul acabadinho de publicar. Também aqui, é intensa a ligação entre o etéreo e o telúrico, embora estejamos muito longe dos mistérios crus e densos que se abrigam nas profundezas, como sugerido no momento anterior. Inspirada, feita de leveza e fantasia, a música de Sara Cruz convoca as paisagens verdes e azuis das ilhas, o ondulado das suas colinas, os caminhos bordejados de hortênsias, os pastos da erva mais verde que se estendem a perder de vista. É nos caminhos da pop que os temas se expandem, tirando o melhor partido da bonita voz da cantora e do ambiente acústico que a sua viola proporciona, muito bem acompanhada em palco pela viola de Miguel Garcia e pela bateria de Francisco Santos. Rompendo com a hegemonia da música inglesa nos temas que compõem o disco, Sara Cruz trouxe-nos “Na Ponta da Madrugada”, um tema que integrou o projecto dos picarotos “Mar e Ilha” e que é cantado na língua de Camões. Um momento que acrescentou beleza a um concerto intimista e de uma grande sinceridade.

No sobe e desce entre a Sala Galeria e a Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios, a ideia da viagem prolongou-se com Margarida Campelo a assumir o último momento da noite. Acompanhada por Raquel Pimpão (teclas), João Correia (bateria) e António Quintino (baixo eléctrico), a cantora apresentou “Supermarket Joy”, o seu primeiro trabalho a solo, publicado em Maio de 2023 pela Discos Submarinos. Com “Maegaki”, as primeiras notas elevam-nos no ar, as sucessivas vagas sonoras e os loops vocais a convocarem o espaço sideral. A batida forte não se faz esperar e, com ela, uma descida abrupta à superfície das águas com “Physali Fit” em dose dupla, um tema que conjuga na perfeição as vertentes instrumental e coral. Está dado o mote para um concerto marcado por um registo “entre terra e céu”, com momentos verdadeiramente impactantes como aquele rap de Raquel Pimpão em “Mapa Astral” ou o solo intenso de Margarida Campelo em “Aura de Panda”. “Tropicais”, “Gemma”, “Deusa”, Love Will Never Be Enough ou “Mexe-te Mais um Pouco”, levaram-nos por caminhos da pop, mas também do R&B, da Bossa Nova, da Soul e do Jazz, numa paleta de géneros eclética e de um bom gosto inexcedível. O final perfeito de um dia feliz no OVAR EXPANDE.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: OVAR EXPANDE 2024 (I)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com Bernardo Freire, Joaquim Margarido, Laura Rui, Mazgani, Miguel Araújo, Tiago Alves
Escola de Artes e Ofícios
16 e 17 Out 2024 | qua e qui | 18:30, 21:30 e 22:30


Nascido da vontade de expandir horizontes à nova música portuguesa e de, num enquadramento inovador, trazê-la para mais perto do público, o OVAR EXPANDE está de regresso para a sua quinta edição. Concertos, conversas, oficinas e masterclasses, são, ao longo de quatro dias, vectores de entretenimento, criatividade, inovação e conhecimento, evocando “a arte e o ofício” de fazer e conhecer a música. Numa edição que explora a ligação da música e da palavra à sua dimensão cinematográfica, o certame arrancou na noite da passada quarta-feira com uma conversa moderada por Tiago Alves e que teve como convidado o músico Miguel Araújo. O visionamento de um punhado de videoclips abriu espaço a um saboroso momento de partilha de ideias, opiniões e algumas curiosidades, dando a ver uma faceta menos conhecida de Miguel Araújo, a de (excelente) conversador, disfarçando muito bem a sua timidez (assumida) e aceitando abrir o jogo sobre o seu processo criativo, a ligação entre a música e as imagens dos seus videoclips, as grandes referências musicais (e não só), o desconforto de estar em palco sem uma guitarra ou os medos de quem não sabe dançar.

O segundo dia do OVAR EXPANDE voltou a explorar o cruzamento do cinema com a música, através de uma conversa que reuniu o cantor Mazgani e o crítico de cinema Bernardo Freire. Centrado no filme documental de Rui Pedro Tendinha, “Estrada para Mazgani”, o momento teve moderação de Joaquim Margarido e permitiu desvendar a “estrada” a que o título se refere. De uma humildade tocante, o músico partilhou as histórias que se abrigam em duas décadas de carreira, o olhar apontado em frente. Bernardo Freire ajudou a descodificar o lado “road movie” que o filme de Tendinha ostenta e Mazgani, entre o compromisso com os seus fãs e a aventura de cantar em português, concluiu que “queria era ser Wagner, ser Beethoven, escrever a Sagração da Primavera”. Ainda que sem o estatuto de génio, é um artista carismático, talentoso, com uma forte presença em palco, contagiante de energia e intencionalidade. Foi isso que o público presente na bonita Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios pode constatar, no concerto que fechou a noite, no qual o artista revisitou temas como “River of Stone” e “Glowing Horses” ou, recuando um pouco mais, “The Poet’s Death” ou “The Traveler”. A grande novidade esteve, porém, em “A Avenida”, que abriu o concerto, mas também em “Frente Leste” ou “Romanceiro”, a “Chama” ou o fabuloso “Cidade de Cinema”, dando a escutar algumas das pérolas do seu último trabalho discográfico.

Entre a conversa e o momento musical que fechou a noite em verdadeira apoteose, o OVAR EXPANDE abriu a série de oito concertos, como é da tradição, com a chamada “prata da casa”. A dar os primeiros passos, mas já com um conjunto de prestações que abrem em promessa e certeza uma carreira que se adivinha recheada de momentos felizes, Laura Rui chamou à Sala Galeria da Escola de Artes e Ofícios um respeitoso número de aficionados, que a acompanharam entusiasticamente ao longo de uma hora de belíssima música. Com Sofia Queirós no contrabaixo e Sónia Sobral no acordeão, Laura Rui fez do alinhamento deste seu concerto uma sequência de poemas cantados, dos quais emergiu a vontade e a força do ser mulher. Em composições inspiradas, com uma voz feita sussurro breve ou intenso grito, a artista de Ovar levou-nos por caminhos de firmeza e coragem, ao encontro das mulheres de Maria Teresa Horta e de Sophia de Mello Breyner, de Fausto Bordalo Dias, José Afonso e António Gedeão. No breve espaço de uma hora, Laura Rui pôs em palco todo o seu querer, ao mesmo tempo mostrando que conhece bem a estrada que decidiu percorrer. O reconhecimento do público fez-se sentir em ovações prolongadas e sentidas. “Há mulheres que são maré em noites de tardes… e calma”.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO: "365" | Carmo Diogo



EXPOSIÇÃO: “365”,
de Carmo Diogo
Museu Escolar Oliveira Lopes
04 Out 2024 > 26 Abr 2025


“ (…) Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas.”
Ruy Belo, in “País possível” (1973)

Há momentos felizes. Estar na sala de exposições temporárias do Museu Escolar Oliveira Lopes, rodeado de tantas obras quantos os dias que o ano tem, pode muito bem ser um desses momentos. Falo de “365”, exposição de Carmo Diogo concentrada em 365 trabalhos sobre papel em tamanho A4, acrescidos de varias outras formas de intervenção artística, da pintura à instalação, dos bordados aos livros de artista. Estabelecendo trajectos pessoais entre passado e presente, a série de trabalhos parte de imagens retiradas de antigos álbuns de fotografia de família e abre caminho a essa tentativa de “perpetuar momentos, cheiros, manifestações de protesto, lugares, situações, identidades dos lugares de outrora”. São, nas palavras da artista, “encenações de afectos ou inquietudes”, conjunto de íntimas reflexões descongeladas no tempo, momentos vividos e respostas emotivas cujo propósito último será o de reter aquilo que a memória acabaria por perder inexorávelmente.

As memórias são um campo de batalha. Vívidas ou desfocadas, leves ou impuras, tornam-se presente sem pedir licença e instalam-se com a certeza de quem possui esse poder único de mudar tempos e vontades. Num passeio à chuva, na doçura de um figo, no cheiro a terra molhada, num poema de Ruy Belo ou numa cantiga do Zeca, surgem num repelão, inescapáveis, prontas a despentear-nos a alma com a força de um ciclone ou, como leve brisa, a envolverem-nos numa carícia. Erguê-las num corpo de trabalho rico de significados e guardá-las na forma de objecto artístico foi rito catártico de quem deixou para trás a “casa mãe e as suas raízes” e, com elas, uma vida em cujo arco temporal cabem o choro e o riso, o sonho e as mais duras realidades. Num trabalho metódico dominado pela colagem, o traço do pincel ou da esferográfica vê-se em desenhos que corporizam a memória, sóbrios, imoderados, inocentes ou cáusticos à vez. O resultado é fascinante, as obras a disputarem entre si a primazia de nos tomarem pelo braço e nos dizerem, num sussurro, que aquelas memórias também são nossas.

Eloquente no delicado exercício de mostrar que a verdade é mais uma opção do que uma obrigação, Carmo Diogo faz do seu resgatar de imagens, corpos e histórias, um exercício contínuo de criação de novas imagens, espécie de ficção baseada no real. Tópicos como os privilégios inerentes ao homem no seio familiar, os códigos baseados na ocultação da violência exercida sobre a mulher, a maldade a pesar sobre aquelas que ousam desafiar a ordem patriarcal ou a exigência de padrões de conduta castradores, são abordados nos trabalhos da artista com intenção e acutilância, acentuando a multiplicidade e complexidade do ser mulher. Mas há também o lado político das questões levantadas neste conjunto de trabalhos, conectando as esferas pessoal e social e traçando um retrato de época onde se revela a natureza sistemática da opressão de grupos inferiorizados que viram apagadas as suas vozes. Este “dar voz a quem não a tem” mostra a intencionalidade da artista e, ao mesmo tempo, a sua inteligência, na forma como desenvolve os seus trabalhos: Aqui uma piscadela de olho a Alberto Caeiro, ali um abraço a Mário Cesariny, mais além um passeio de braço dado com o Senhor Hulot. Há momentos felizes!

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Paisagens Construídas"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Paisagens Construídas”,
de Inês d’Orey
A partir do livro de Valdemar Cruz
Encontros da Imagem de Braga 2024
Zet Gallery, Braga
28 Set > 19 Out 2024

No início de Fevereiro, o Auditório de Serralves acolheu o lançamento oficial do livro “Paisagens Construídas – O Passado e o Presente da Arquitetura Portuguesa em 16+1 Obras”, de Valdemar Cruz. Alguns dias mais tarde, o autor foi o convidado da primeira sessão de 2024 das Tertúlias Literárias “Conversas às 5”, iniciativa do Centro de Reabilitação do Norte. De ambos os momentos deixei nota no blogue, bem como a minha apreciação ao livro, na qual destaco a habilidade do escritor em levar-nos por caminhos de “paisagens construídas”, ao encontro das histórias que se abrigam em cada uma das obras abordadas. Há, no entanto, um outro aspecto que merece o devido aplauso, e esse tem a ver com Inês d’Orey, autora das imagens que ilustram o livro e que, na subtileza e vivacidade do seu olhar, acrescenta valor e distinção a uma obra incontornável sobre o muito de bom que a arquitectura portuguesa tem para oferecer. Do livro, além dos rasgados elogios, aquilo que mais se ouve é o lamento por se encontrar esgotadíssimo. Quanto à fotografia, uma selecção de dezasseis imagens de grande formato pode ser vista por estes dias na Zet Gallery, em Braga, no âmbito dos Encontros da Imagem.

“Construída sobre rochedos, num dos extremos da marginal de Matosinhos, em local à época de escassa presença e actividade humana, Álvaro Siza Vieira, a partir do que parecia uma impossibilidade, transformou-a numa das grandes obras da arquitectura portuguesa contemporânea, com uma incomum projecção na cultura arquitectónica internacional”. Este e outros textos têm o condão de chamar a atenção do visitante para um pormenor ou uma curiosidade, mas é a poderosa envolvente artística contida no olhar de Inês d’Orey que se destaca numa exposição que é uma viagem singular através de múltiplas propostas arquitetónicas desenvolvidas ao longo dos séculos XX e XXI. Mais do que simples registos formais, a artista leva a cabo um audacioso trabalho de investigação sobre os edifícios e os seus contextos, ao ponto de construir ela própria um discurso sobre as obras fotografadas, exterior ou independente dos textos que lhes estão associados. Não os contraria, antes os complementa com um olhar outro, responsável pela abertura de novas possibilidades de leitura. Resta dizer que a exposição ficará patente na Zet Gallery só até ao próximo sábado, pelo que o tempo escasseia e importa não perder a oportunidade.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Orixe"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Orixe”,
de Glorianna Ximendaz
Curadoria | Vítor Nieves
Encontros da Imagem de Braga 2024
Palácio do Raio
06 Set > 03 Nov 2024


Nascida em San José, Costa Rica, em 1992, Glorianna Ximendaz destaca-se como uma fotógrafa e poliactivista cujo trabalho reflecte “uma busca pela justiça social e uma profunda conexão com as histórias pessoais e coletivas de resistência e superação”. O projecto “Orixe” – vencedor do XI Prémio Galiza de Fotografia Contemporânea, o reconhecimento mais prestigioso na sua área no vizinho país do Norte – enquadra-se perfeitamente neste contexto, acrescentando-lhe um cunho profundamente pessoal, ao encontro das histórias de abuso e violência sofridas pelas mulheres, incluindo as da família da própria artista. Para a autora, a série “Orixe” não é apenas uma narrativa visual, mas também um acto de resistência e uma declaração de existência. Ximendaz utiliza a fotografia como uma ferramenta para desafiar as normas sociais, derrubar estruturas opressoras, fomentar a cura e o empoderamento, e celebrar a força e a resiliência das mulheres. O projecto visa iniciar diálogos, consciencializar para o problema e ajudar a desmantelar os sistemas que perpetuam a violência machista.

Com uma aprendizagem de luta pelos direitos das pessoas que lhe transmitiram os seus avós, Ximendaz usa a sua câmarа como instrumento de luta. Em paralelo à produção artística, o seu desempenho como fotojornalista é um trabalho comprometido, marcado por um esforço constante para dar voz a quem constantemente é negligenciada(o). A artista iniciou este projecto de uma maneira algo inconsciente, estabelecendo ligações entre as experiências de abuso que sofreu e as narrativas encriptadas presentes no seio familiar e que, de certa forma, a marcaram desde a nascença. Este entrelaçar de histórias pessoais e colectivas proporcionou um terreno fértil para a criação artística. Através do “collage”, a autora ressignifica as imagens, recupera a memória e (re)conta a história das suas ancestrais, tornando públicas e universais as experiências pessoais e familiares. As suas imagens não procuram a excepcionalidade, mas sim a repetição, a proliferação, a multiplicidade e a expansão, em que fragmentos dispersos são reunidos para criar novas imagens e significados.

No trabalho de Glorianna Ximendaz, materiais vernáculos de álbuns de família, da grande internet e do seu próprio arquivo são manipulados, fragmentados e intervencionados como forma de distorcer a cronologia e unificar as histórias de cinco vozes distintas numa narrativa só. Este método enfatiza a universalidade do discurso, transcendendo o âmbito individual para atingir uma dimensão coletiva. Ximendaz interliga habilmente as histórias das cinco mulheres, cada uma delas representando uma dimensão diferente relacionada com as distintas lutas dos feminismos. Bisavó, mãe, trisavó, avó e a própria autora corporizam as trajetórias percorridas pelos movimentos feministas nas últimas décadas. Tópicos como o poder patriarcal, os privilégios inerentes à masculinidade normativa e de classe, a ocultação e transmissão de violências no âmbito familiar e social, as penalizações impostas às mulheres que desafiam a ordem patriarcal, a exigência de padrões de beleza opressivos, a violência obstétrica e a sexualidade forçada, são abordados nas imagens de Ximendaz, acentuando a multiplicidade e complexidade das experiências femininas.

Entre os muitos aspectos significativos desta exposição, reveladores do poder da sua mensagem, encontramos uma abordagem do desretrato, no qual a artista opta por mutilar as fotografias em vez de as descartar directamente, como uma forma catártica de transformar a raiva e a dor em expressão material. Ximendaz emprega técnicas digitais e manuais, como pintura e queima de imagens, para intervir nas fotografias. Estas intervenções, que podem ser percebidas como destrutivas, desempenham um papel duplo: são um meio para a artista se aproximar do desmantelamento do sistema patriarcal, curando a dor e a memória; e servem para criar imagens iconoclastas que desafiam, desestabilizam, e até ridicularizam, o poder. Isto é evidente no retrato de um conhecido fotógrafo argentino, implicado em inúmeros casos de abuso das suas assistentes e alunas; e na representação do ditador Tinoco, cujo discurso contribuiu significativamente para o elevado índice de feminicídios na Costa Rica e para quem uma das antepassadas da autora trabalhou. Esta critica estende-se facilmente ao atual presidente do pais caribenho, Rodrigo Chaves Robles, conhecido pelas denúncias de assédio sexual.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "As Veias Abertas"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “As Veias Abertas”,
de Aaryan Sinha, Amina Kadous e Olga Sokal
Curadoria | Vítor Nieves
Encontros da Imagem de Braga 2024
SOMA — Plataforma Cultural, Braga
20 Set > 03 Nov 2024


Os projetos de Aaryan Sinha, Amina Kadous e Olga Sokal, finalistas do Emergentes 2023, são reunidos nesta exposição por se alinharem perfeitamente com o tema central da presente edição dos Encontros da Imagem. Do conjunto de imagens apresentadas no extraordinário espaço SOMA, uma novidade nesta edição dos Encontros, emergem histórias pessoais e familiares que nos convidam a refletir sobre as continuidades e rupturas das dinâmicas de poder e exploração, tanto em escala global quanto local. O caso português tem, nesta matéria, um bom exemplo na prospeção de minas de lítio em regiões afastadas dos centros de poder, o que evidencia como estas dinâmicas de exploração também se desenrolam em contextos locais. Recorde-se que este fenómeno foi abordado por Silvy Crespo na sua exposição “The Land of Elephants”, apresentada no Edifício do Castelo durante os Encontros da Imagem em 2021. Crespo evidenciou como estas áreas, frequentemente distantes das grandes cidades e dos centros de decisão, são escolhidas para a extração de recursos, perpetuando uma espécie de colonialismo interno que se reflete nas disparidades regionais e na marginalização das populações locais.

A obra de Aaryan Sinha, “This Isn’t Divide and Conquer” posiciona-se no seio do pensamento pós-colonial, explorando um dos conflitos mais persistentes e dolorosos da história contemporânea da Índia e do Paquistão. O projeto emerge das raízes familiares de Sinha, desenvolvendo-se ao longo de uma viagem pelos cinco estados indianos que fazem fronteira com o Paquistão. Através da fotografia, o autor busca compreender como os eventos históricos, particularmente a Partição de 1947, moldaram a paisagem e a identidade em constante transformação do povo indiano. O título da obra faz referência à estratégia colonial britânica de “dividir para conquistar”, que fomentou divisões religiosas para enfraquecer a resistência ao domínio imperial. No entanto, Sinha vai além de uma mera denúncia histórica, ao sugerir que estas táticas de divisão estão longe de serem factos do passado. Lembrando a polarização de vastas comunidades religiosas pelo actual governo de direita na Índia, o artista oferece uma poderosa contra-narrativa ao reviver de forma inquietante as mesmas dinâmicas de poder que promovem a fragmentação social e reforçam os mecanismos de controlo de uma vasta nação.

O trabalho de Amina Kadous, “White Gold”, deambula na intersecção entre as histórias pessoais e a vasta teia de dinâmicas económicas e políticas que moldaram e continuam a moldar o Egipto. O algodão egípcio, muitas vezes referido como “ouro branco”, simboliza a riqueza natural do país, mas também as complexas relações de poder que o cercam. Durante o período colonial, o extrativismo foi imposto como uma ferramenta de dominação e exploração, e, após a independência, essa lógica de controle não desapareceu; foi antes apropriada e perpetuada por oligarcas nacionais, que passaram a responder aos interesses de um capitalismo globalizado. Kadous utiliza a história do algodão como uma metáfora para explorar a identidade egípcia, tanto no plano pessoal quanto no coletivo. A história da sua família, enraizada na indústria têxtil de El Mehalla Al Kobra, reflete as transformações que o Egito sofreu ao longo do tempo. O algodão, tal como a própria Kadous, foi arrancado das suas raízes, processado, transformado e inserido numa dinâmica global que frequentemente ignora as implicações humanas e culturais dessa extração. Em “White Gold”, a artista questiona o que resta dessa “semente humana”, refletindo sobre o que foi perdido, o que ainda persiste e o que poderia ter sido.

“Black Stone Burns”,  de Olga Sokal, é uma investigação sobre as dinâmicas pós-coloniais no contexto local que reflete o impacto da extracção de carvão em comunidades ao redor do mundo. Este trabalho, que parte da história familiar e da vila natal da artista em Belchatow, na Polónia, estende-se por cinco países em três continentes, revelando como a exploração do carvão, longe de ser uma prática antiga, continua a ser uma força motriz do capitalismo global, com consequências devastadoras para as pessoas e o ambiente. Em Belchatow, onde as minas de carvão atravessaram a história da família da artista, a dinâmica de recolonização interna é evidente. A exploração do carvão, inicialmente uma fonte de sustento e orgulho, tornou-se um símbolo de degradação ambiental e social, deixando cicatrizes profundas na terra e na comunidade. Quando as pedras pretas são extraídas e o trabalho árduo é retirado, o que resta é mais do que terras devastadas; são comunidades fragmentadas e identidades esvaziadas. Através das lentes de Sokal, o carvão deixa de ser apenas uma “pedra preta” e torna-se um símbolo da luta contínua contra as dinâmicas de poder que persistem na era pós-colonial.


domingo, 13 de outubro de 2024

TEATRO: “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”



TEATRO: “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”
Textos | Joana Bértholo, Joana Craveiro, Jorge Louraço Figueira, Jorge Palinhos, Lígia Soares, Pedro Goulão, Rui Pina Coelho, Sérgio de Carvalho
Encenação | Gonçalo Amorim
Coordenação dramatúrgica | Rui Pina Coelho
Cenografia | Catarina Barros
Figurinos | Cátia Barros
Interpretação | João Miguel Mota, Eduardo Breda, Pedro Galiza, Teresa Arcanjo, Catarina Chora, Tomé Pinto, Inês Afonso, Pedro Quiroga Cardoso, Daniel Silva, Telma Cardoso, Maria Inês Peixoto
Produção | Teatro Experimental do Porto, ASSéDIO, Teatro Nacional São João
180 Minutos (com intervalo) | Maiores de 12 anos
Teatro Carlos Alberto
06 Out 2024 | dom | 16:00


“Na manhã de 25 de abril, quem ligasse a rádio ouviria imediatamente que algo extraordinário estava a acontecer, mas era-lhe igualmente solicitado (ou ordenado) que permanecesse em casa, a aguardar tranquilamente o desenrolar dos acontecimentos. É sabido que a revolução começou aí, quando tantos e tantas desafiaram essas instruções e encheram as ruas. Uma citação, provavelmente apócrifa, atribuída a Rosa Luxemburgo, sustenta que nada parece mais improvável do que uma revolução cinco minutos antes de começar e nada parece mais inevitável do que uma revolução cinco minutos depois de ter começado. O nosso olhar póstumo tende a debruçar-se sobre os acontecimentos de há cinquenta anos com um sentimento de incredulidade. A generalidade dos trabalhos historiográficos reforça esse sentimento, abordando o passado revolucionário não apenas como um país estrangeiro, mas como um local exótico, de contornos quase mitológicos. E, no entanto, para aqueles e aquelas que protagonizaram as greves, ocupações, mobilizações e conflitos do PREC, os mais extraordinários gestos foram quase sempre encarados como uma condição necessária a qualquer processo de democratização efectiva. Sem a liberdade de mudar e decidir, a democracia teria permanecido um ritual desprovido de significado. A revolução foi, pelo contrário, o tempo breve em que a democracia se exerceu e é precisamente isso que, cinquenta anos depois, lhe confere uma marca de profunda e irredutível alteridade face ao tempo morno que vivemos.”
Excerto do texto “Como parar um comboio prestes a descarrilar?”, de Ricardo Noronha
Investigador do Instituto de História Contemporânea (NOVA FCSH)

Extraordinária peça de teatro aquela a que assisti no Carlos Alberto, ao encontro do mais problemático e contraditório momento da história da democracia em Portugal, aquele que mais posições extremou, que mais fileiras cerrou, que mais esperanças matou. Extraordinária, pela força dos textos, desenhados em onze quadros escritos com os nervos à flor da pele, dados a ver em memória ou fado, em manifesto ou mensagem. Extraordinária, ainda, pela qualidade das interpretações, ousadas, irreverentes, à imagem e semelhança do momento que se ousou recriar. Extraordinária, enfim, pela mensagem que faz passar para estes tempos estranhos que vivemos, tempos acomodados, de espera, enquanto os inimigos da democracia, como vampiros, nos vão chupando o sangue pela calada. Alerta, povo, alerta. Às armas, se preciso for. Não adiantarei mais, abrindo caminho à Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro para que vertam, nos próximos parágrafos, “Enquanto houver força”, espécie de “manifesto” que integra o Programa de Sala da peça e que expõe, na perfeição, os princípios e valores desta peça, repito, extraordinária. [Pergunto-me como é que estas “Grandes Comemorações” nem uma semana estiveram em cena].

“O fim do PREC a 25 de Novembro de 1975 (se arriscarmos fazer uma datação precisa de um movimento tão fluido e tão complexo) não foi propriamente uma surpresa. Até certo ponto, tendo em conta a bipolarização geopolítica que emergiu da Conferência de Ialta (1945), o fim do PREC era inevitável - e até - muito provavelmente - desejado por todas as forças políticas organizadas, na altura activas em Portugal. Então, o Ocidente e o Leste olharam para a revolução portuguesa como um possível laboratório para a experimentação política. Simplificando (muito), para a esquerda - mais próxima ideologicamente do Bloco de Leste - o 25 de Abril seria uma espécie de Maio de 1968 tardio; e para a direita - mais próxima do capitalismo ocidental, a revolução portuguesa seria a primeira das transições democráticas que viriam a desembocar na queda do Muro de Berlim. Esquerda e direita usavam a história como um campo de batalha para a reconquista de uma narrativa sobre a sua própria cronografia.
 
Todavia, este espectáculo não é sobre o 25 de Novembro de 1975 e a previsível inevitabilidade da morte do Processo Revolucionário em Curso. Este é, sobretudo, um espectáculo sobre o fantasismo utópico e alegre que animou muitas cabeças, corações e mãos em Portugal durante os cerca de dezoito meses do PREC. É um espectáculo sobre o país que arriscou “assaltar o céu”. Mas é, também, um espectáculo assombrado pelas muitas derrotas e pelas muitas figuras trágicas que pairaram, espectrais, sobre todos os acontecimentos, durante esse período. Daí a nossa melancolia (de esquerda).

Neste espectáculo, contraria-se a tese de que, em 1974, após o 25 de Abril, se descambou num caos desordenado e excessivo. Ao invés, descobre-se no “dia inicial inteiro e limpo” e no processo revolucionário que se lhe sucedeu a eclosão de uma força popular sem epicentros coordenadores (um “abalo telúrico”, na feliz expressão de Fernando Rosas). No discurso político, o PREC rapidamente se transforma em confusão e desordem e a sua liquidação em sinónimo da institucionalização da democracia. Por seu lado, o 25 de Novembro tornou-se sinónimo da correcção dos perigosos excessos de uma imberbe democracia. Contudo, é a dimensão descentrada, libertária, espontânea, vitalista, popular, socialista e luxemburguista do PREC que mais nos fascina, ainda! Assim, entendemos, aqui, o PREC como mais uma das muitas batalhas travadas pela esquerda, alimentada pelo desejo de utopia, mas que, todavia, acabou derrotada... e que, por isso, é assombrada por revoluções passadas e, inevitavelmente, assombrará as revoluções futuras. Sim, as revoluções futuras, porque isto ainda não acabou. Este espectáculo desconfia da narrativa dos brandos costumes e de como em Portugal se fez uma revolução (quase) sem sangue.

Este espectáculo desconfia da narrativa de que houve um bando de brutos analfabetos que não souberam o que fazer com a liberdade que os soldados do MFA lhes atiraram para o colo. Este espectáculo duvida, também, da narrativa de que os dias do PREC foram loucos, excessivos, desorientados, a reboque de um bando de perigosos esquerdistas que tiveram de ser postos na ordem. Este espectáculo duvida da narrativa de que os portugueses não estavam preparados para a democracia. Este é um espectáculo que celebra a passagem dos cinquenta anos sobre o PREC. Este é um espectáculo dedicado a todas e a todos os que ainda conseguem estar motivados. Sim, motivados, porque isto ainda não acabou.”

sábado, 12 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: "Os Lugares de Nadir"



EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Os Lugares de Nadir”,
de Nadir Afonso
Curadoria | Óscar Faria
Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso
11 Ago 2023 > 15 Fev 2025


“Os lugares de Nadir” é uma exposição que tem a intenção de dar a ver os lugares visitados e imaginados por Nadir Afonso (1920-2013) através de seis dezenas de pinturas, uma centena de estudos, bem como material documental, algum do qual inédito, nomeadamente fotografias. As viagens do artista levaram-no a viajar e a conhecer uma grande parte do mundo, muitas vezes levado pelo impulso de uma conversa, outras por necessidades de trabalho e de aprendizagem. Brasil, ex-União Soviética, Egipto, Grécia, países escandinavos ou Líbano - neste caso após ter lido um texto do escritor romeno Panait Istrati - foram lugares que serviram para o pintor continuar as suas investigações acerca de problemas relacionados com a composição dos trabalhos por si assinados, que queria exactos na sua dimensão geométrica. Nadir Afonso apropria-se assim das cidades para expandir a vocação universal da sua obra, uma escolha a que não será certamente alheio o facto de ser também arquitecto, tendo trabalhado nos ateliês de Le Corbusier e Óscar Niemeyer.

O percurso expositivo de “Os lugares de Nadir” é cronológico, começando nos anos de 1950, com obras do período perspéctico, até ao início deste século, com trabalhos da fase fractal. Com esta mostra, defende-se a tese de que apesar de Nadir Afonso ser uma figura maior quer do surrealismo, quer do abstraccionismo geométrico, a sua obra é também relevante do ponto de vista conceptual, tendo mesmo aberto caminhos para uma nova “figuração geométrica”, plena de cores e ritmos, a qual the permitiu dar conta da vida das cidades. Ao olhar para os estudos, gouaches e pinturas do artista, sente-se um ritmo, uma vibração quase musical. Essa dimensão vai-se tornando cada vez mais complexa, num movimento que curiosamente aproxima Nadir Afonso quer de Wassily Kandinsky, quer de lannis Xenakis, com quem chegou a conviver em Paris. O trabalho de Nadir Afonso pode ser assim lido, quer a partir das teses marxistas, quer da “teoria do reflexo”, elaborada por Lenine nos seus “Cadernos Filosóficos”, segundo a qual o psíquico, a consciência, o espírito é “a função do cérebro, a reflexão do mundo exterior”.

A obra do artista flaviense, que abandona a prática da arquitectura em 1965, para se dedicar exclusivamente à pintura, é devedora quer da matemática, quer do materialismo dialéctico, na sua versão estética. Vemos então, sobretudo a partir dos anos de 1970, Nadir Afonso a expandir a sua gramática pictórica para territórios que se afastam paulatinamente do abstraccionismo geométrico, embora a presença de elementos abstractos seja uma constante até ao fim da vida do artista. Nadir Afonso começou por desenhar cidades verdadeiras, mas acabou por prescindir das mesmas, recorrendo à sua habilidade manual e apreendendo a essência plástica do “genius loci”. É esse espírito do lugar, das cidades, das paisagens urbanas, que se dá a ver na actual exposição do Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso. O próprio edifício desenhado por Siza Vieira participa dessa ancorarem de Nadir Afonso a uma realidade que lhe foi sempre próxima: a da cidade de Chaves, com as histórias que se acumularam, ao longo dos séculos, nas duas margens do rio Tâmega.

[Texto baseado na Folha de Sala que da exposição]

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

LIVRO: "Cimo de Vila"



LIVRO: “Cimo de Vila”,
de Carlos Tê (textos) e Manuela Bacelar (ilustrações)
Ed. Edições Afrontamento, Setembro de 2010 (2ª edição, Outubro de 2016)


“A furgoneta ancorou no largo e abriu a porta de trás. Passaram dois miúdos e espreitaram-lhe para o bojo. Esperavam ver brindes, bolas, rebuçados, mas só havia livros. Ruminavam sobre tanta lombada quando chegou a Josefa, a mulher do tipógrafo do Comércio do Porto. Vinha trocar o Alexandre Dumas pela Odete Saint Maurice. Depois apareceu a Júlia, a aprendiza de modista. Demorou-se em negociações com o bibliotecário, queria arriscar uma leitura mais audaz, folheava um Aquilino como se aferisse a penugem dum veludo. Torcia o nariz a um Eça, pedia opinião sobre um Camilo. Acabou por levar um Júlio Dinis - à experiência. E um Corin Tellado - por segurança.”

É um Porto sentido, o Porto deste “Cimo de Vila”. Dado a ver nos textos de Carlos Tê e nas ilustrações de Manuela Bacelar, este é o Porto de Miguel Bombarda à Rua das Flores, de Aldoar a Campanhã, de Massarelos às Fontaínhas, da Ribeira até à Foz. O Porto da gente apressada e dos polidores de esquinas, das vizinhas entregues à lamúria e à má língua, dos empregados de balcão a congeminar subversões, dos rapazes que atiram piropos à porta dos cafés. Das vielas assoreadas pelo silêncio da tarde, das mulheres vazando tinas de água nas sarjetas, do linguarejar cerrado e fresco que deita foguetes e apanha canas. O Porto do cimbalino e dos azeiteiros, dos coradouros e das sameiras, do Zorro da Sandeman, dos bilhares do Imperial, dos bailes dos Fenianos. O Porto do cheiro a galinheiros do Bolhão, dos magalas e meretrizes da Viela do Anjo, do Carlinhos da Sé a vender pensos com voz de dama despeitada. Dos turistas com ar de basbaque em frente à Livraria Lello, do Setenta e Oito apinhado na Galiza, dos estudantes no Piolho, da madame chique que sai do sério, desce do vison e arreia a giga.

“Cimo de Vila” é um livro para ser saboreado. Página a página, no muito que descreve e no outro tanto que sugere, Carlos Tê oferece-nos um retrato vívido e sentido desse Porto do qual todos temos um pouco: Nos estados de alma votados à imprecisão como na genuinidade do modo de ousar, na espontaneidade de um carago (ou coisa pior) como na altivez de milhafre ferido na asa. Retrato que é sujeito e complemento do desenho de Manuela Bacelar, com o seu traço limpo e leve ou em lente distorcida, ora expressivo, ora caricatural, em cujos apontamentos subtis podemos deparar com Picasso ou Miró, Chagall ou Toulouse-Lautrec. Um Porto que até podia ser Paris, de tão visitado que foi pelo senhor Eiffel, que de torre tem a dos Clérigos, de armazéns a Marques Soares ou os Cunhas e de rio o Douro. É dele que sobe o cheiro da maresia, que no ar se mistura com o das castanhas assadas, quentes e boas, num tempo que é o de agora, outonal e húmido. Um tempo inspirador para um poema feito de abandonos e pardacentos, fechados e sentimentos, envolto numa música que é um verdadeiro Hino Nacional, que se canta com os olhos marejados de lágrimas no momento de carregar e estender a penúltima sílaba dos versos do refrão.

Que mais dizer? “Cimo de Vila” é um livro recheado de visões nostálgicas, que desperta histórias e recupera memórias. Que nos traz de volta os (agora) “requalificados” espaços do Águia Douro ou da Casa Africana e nos faz de novo temer os concílios de estorninhos que transformavam o Passeio das Cardosas num mar de caca. Nos leva ao encontro dos velhos a bater uma sueca no Jardim da Cordoaria, a vibrar com o Boavista campeão ou a sofrer as agruras desse mito urbano que dá pelo nome de Salgueiros. A comprar um cartucho de amendoins na Pérola do Carvalhido. A não perder uma só das noites do Fantas. A ir ao Sá da Bandeira ver a Sylvia Kristel, a atravessar a ponte em noite de S. João e a espreitar a rapariguinha do shopping do fundo da escada rolante. A sentir o nevoeiro que se levanta do mar e já só deixa ver uma parte do tabuleiro da Arrábida. A deixar-se intimidar pelas mulheres lânguidas que te chamam filho à porta das pensões e a sorrir com aquele crocodilo pendurado do tecto numa casa que vende carteiras e cintos em couro genuíno. Já ali, quem desce da Batalha, na Rua de Cimo de Vila.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

TEATRO: "O Meu Amigo H."



TEATRO: “O Meu Amigo H.”
A partir de “My Friend Hitler”, de Yukio Mishima
Adaptação | Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu, Ricardo Braun
Dramaturgia | Ricardo Braun
Encenação | Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu
Espaço cénico | Albano Jerónimo
Figurinos | Nuno Esteves (Blue), Albano Jerónimo
Interpretação | Albano Jerónimo, Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes
Produção | Teatro Nacional 21
95 Minutos | Maiores de 16 Anos
FESTOVAR - Festival de Teatro de Ovar
Centro de Arte de Ovar
05 Out 2024 | sab | 21:30


“O que pode um Regime fazer quando aqueles de quem precisou, aqueles que manipularam as massas em seu favor, se tornam incómodos? O Regime não sobrevive sem a multidão, é certo, mas tem lugar para intermediários ou precisa de ser ele, no fim de contas, a controlá-la?” Estas e outras questões servem de base a “O Meu Amigo H.”, peça encenada por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu e levada à cena no Centro de Arte de Ovar, no âmbito da 31ª edição do FESTOVAR - Festival de Teatro de Ovar. Partindo de “My Friend Hitler”, um texto para teatro do japonês Yukio Mishima, escrito em 1968, a peça retrata as figuras históricas de Adolf Hitler, Gustav Krupp, Gregor Strasser e Ernst Röhm, usadas como porta-vozes para expressar as próprias opiniões do romancista e dramaturgo sobre os mecanismos do poder. De forma calculista, o enredo acaba por se converter numa parábola da própria História, estabelecendo o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações. Faz-se tábua rasa das amizades, sentimentalismos são cartas fora do baralho, todos os meios justificam os fins. No final, só o mais forte triunfará.

Fazendo uso da escrita como meio de repensar o Japão do pós-guerra à luz da sua cultura e tradições milenares, Mishima mostra nesta peça a subversão dos princípios éticos quando só a vontade do líder conta. Palavras como pátria, vitória, glória ou imortalidade ecoam em discursos alucinados, animados pelo mais vincado populismo, estudados para erguer as massas em delírio. Lá estão os inimigos do povo, com os imigrantes à cabeça, alvos de todas as censuras e ameaças, bodes expiatórios perfeitos do mal que empurra para baixo sociedades constituídas por “gente de bem”, impedindo-as de recuperar o valor e a influência dos tempos de outrora. Não nos esqueçamos, porém, que crimes de ódio são precedidos por discursos de ódio e, nas palavras do “grande ditador”, aquilo que escutamos são os pequenos discursos dos “pequenos ditadores” que se vão instalando à nossa volta e ganhando espaço dia após dia. Foi assim com os tutsis no Ruanda, o povo rohingya em Myanmar ou as câmaras de gás em Dachau e Majdanek, Sachsenhausen e Auschwitz. É assim hoje, com os massacres em Gaza, perpetrados pelo exército de Israel.

Fadada para prender o espectador ao longo dos seus pouco mais de noventa minutos, a peça leva-nos até à noite das facas longas (uma de tantas), em que H. deixa de ter como amigos o militar e o intelectual sindicalista, assassinados juntamente com centenas de outros membros do Partido. Ao seu lado ficará o industrial do ferro, a quem a guerra enriquece (e não poderia estar em melhor companhia). Construída sobre um conjunto de diálogos densos, a mensagem é expressiva e acutilante, convidando o espectador a questionar os próprios silêncios, numa altura em que as voltas da História mergulham de novo em vãos por demais sombrios. Rigorosa e contida, a encenação destaca a força e intensidade do texto, trazendo os actores para mais perto do espectador ao mostrá-los numa dimensão fantasmagórica, quase caricatural, recorrendo aos grandes planos filmados em video e projectados em tempo real. Albano Jerónimo, Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes formam um naipe de actores competentes, segurando com firmeza a complexidade dos seus papéis. Uma peça que inquieta, interroga e clama por acção.

[Foto: Teatro Nacional 21 | https://www.facebook.com/teatronacional21]

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

CONCERTO: Maria João & Carlos Bica Quarteto



CONCERTO: Maria João & Carlos Bica Quarteto
Dia Mundial da Música
Cineteatro Louletano
01 Out 2024 | ter | 21:00


Figuras incontornáveis do jazz português, Maria João e Carlos Bica cruzaram caminhos musicais nos idos de 1980, desenvolvendo uma frutífera relação que ficaria assinalada com a edição dos álbuns “Conversa” (1986) e “Sol” (1991). Depois de partilharem o palco ao longo de dez anos, com muita estrada percorrida e muitos concertos por esse mundo fora, os seus caminhos separaram-se. Voltam a encontrar-se agora com “Close to You”, projecto com um forte cunho revivalista, que recua quatro décadas e recupera alguns temas icónicos de vários géneros musicais, vestindo-os com as roupagens do jazz. Fundamentais neste processo, João Farinha e Gonçalo Neto, dois dos mais talentosos músicos de uma nova geração na cena portuguesa, asseguram o necessário suporte musical, completando um quarteto onde se percebe, para além do enorme talento de cada um dos seus elementos, um bom gosto inexcedível, uma verdadeira paixão pela música e o desejo desmedido de a partilhar.

De partilha, justamente, se fez o momento do concerto que Maria João & Carlos Bica Quarteto ofereceram ao público de Loulé, a assinalar o Dia Mundial da Música. Um momento harmonioso e muito belo, profundamente intimista, inspirador, arrebatador. Abordando temas como “Woodstock”, “Close to You” ou “Norwegian Wood”, Maria João soube garantir o mais absoluto respeito pelas melodias originais, sem com isso deixar de lhes acrescentar um saudável (e saudado) toque experimentalista, o seu improviso em scat absolutamente único e inconfundível. Com uma voz que parece agarrar todos os sons, a cantora fez gala de fundir a modernidade com a tradição, contando para tal com a cumplicidade dos músicos. Perfeito de rigor e contenção, Carlos Bica conduziu o concerto de forma a brilhar e a fazer brilhar. De um lado, a conversa a dois entre o contrabaixo de Bica e a guitarra de Gonçalo Neto. Do outro, o diálogo (apaixonado) de Maria João com o piano de João Farinha. Enfim, um quarteto afinado que fez com que a magia acontecesse.

Falo de felicidade quando falo do concerto a que assisti no Cine-Teatro Louletano. Houve, claro, Joni Mitchell e John Lennon, Carsten Daerr e Burt Bacharach, compositores e cantores que inspiraram músicos de todos os quadrantes e deixaram as suas melodias inscritas nos genes de sucessivas gerações de amantes da música. Há momentos históricos (e da história pessoal de cada um) que têm estas músicas agarradas à pele. Mas houve, sobretudo, Maria João e o seu vestido leve e primaveril, o olhar e os gestos graciosos, aqueles braços que não param nunca de mexer, as provocações ao Bica, “um senhor encorpado que vinha lá da Alemanha e já tocava e já tirava um curso e já fazia concertos”. E houve Carlos Bica a encolher-se atrás do contrabaixo, a esquivar-se ao baton da Maria João, com Neto e Farinha a rir. E houve, ainda, o público, a rir também e a aplaudir, a pedir mais, rendido àquela voz e àqueles músicos. “What a Wonderful World” chegaria no encore, carregado de nostalgia, mas também de mágoa, como se já ninguém acreditasse neste mundo. Acredite-se, ao menos, no jazz, que esse (quase) nunca nos deixa ficar mal.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Não Estar Nem Aí"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Não Estar Nem Aí”,
de Elisa Mariotti, Francesca Faulin e Katerina Kouzmitcheva
Curadoria | Vítor Nieves
Encontros da Imagem de Braga 2024
Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Braga
20 Set > 03 Nov 2024


“Não Estar Nem Aí” reúne as obras de Elisa Mariotti, Francesca Faulin e Katerina Kouzmitcheva, três das artistas finalistas do Emergentes 2023, que, através de abordagens distintas, investigam temas que a sociedade moderna tende a ignorar ou evitar. O título da exposição, inspirado na obra de Kouzmitcheva, remete-nos para uma atitude de indiferença ou distanciamento face a questões que, embora presentes no quotidiano, são frequentemente evitadas ou silenciadas. Esta postura de “não estar nem aí” funciona como uma metáfora que convida à reflexão sobre a forma como lidamos — ou, mais precisamente, como não lidamos — com problemas que afetam profundamente a nossa sociedade, tais como a doença mental e a toxicodependência. A decisão curatorial de reunir estes três projetos, à primeira vista tão distintos, constitui uma chamada de atenção, na medida em que estabelece uma ligação entre preocupações que, apesar de diferentes na sua manifestação, partilham um denominador comum: a recusa ou a fuga face a realidades incómodas. Este diálogo entre as obras evidencia como a sociedade frequentemente prefere ignorar ou evitar confrontar questões que desafiam o seu conforto e estabilidade.

Janela íntima para o mundo fechado das comunidades terapêuticas, onde a toxicodependência é abordada através de um processo rigoroso de reabilitação e reintegração, “A Letter from Home”, de Elisa Mariotti, é o resultado de uma investigação na comunidade de San Patrignano, em Itália, uma das maiores e mais conhecidas do mundo. Este conjunto de imagens desafia-nos a confrontar uma das realidades mais incómodas e frequentemente ignoradas da sociedade contemporânea: o ciclo vicioso da adição e o esforço contínuo para superá-la. Mariotti força-nos a encarar de frente as realidades da toxicodependência, que tantas vezes nos fazem “não estar nem aí”. Ao explorar as rotinas diárias, os desafios emocionais e as relações humanas dentro da comunidade, a artista subverte a narrativa típica de marginalização associada às pessoas toxicodependentes. Em vez disso, evidencia a complexidade de um processo que exige a superação de uma dependência física e a reconstrução de identidades fragmentadas, muitas vezes através de interacções cuidadosamente mediadas e de um retorno gradual a uma vida estruturada.

Francesca Faulin, com “L’originale, l’ombra e la ripetizione”, mergulha nas sombras de uma história familiar silenciada, oferecendo uma reflexão sobre a complexidade da doença mental e a construção da identidade. Inspirada na descoberta de um diário do seu avô, onde este documentou os últimos anos de vida do seu tio Francesco, que sofreu de esquizofrenia, Faulin explora a delicada linha entre a sanidade e a psicose, questionando os limites entre a normalidade e a doença. Utilizando técnicas fotográficas antigas, a artista não só revive memórias do passado, mas também enfatiza a natureza fragmentada e repetitiva da experiência de quem vive com esquizofrenia. A escolha destas técnicas confere às imagens uma qualidade etérea, quase fantasmagórica, que ecoa a citação com que a artista inicia a sua obra: “À medida que a sombra cresce, cresce também a distância entre o original e a cópia.” Neste trabalho, a sombra — a esquizofrenia — distancia progressivamente o indivíduo da sua identidade original, criando múltiplas camadas de existência que se sobrepõem e se repetem, como num ciclo interminável.

Katerina Kouzmitcheva, com a obra “My Hut Is On The Edge”, leva-nos a explorar as subtilezas do distanciamento e da indiferença através de uma investigação sobre expressões idiomáticas que refletem atitudes de desapego e desinteresse em relação ao mundo que nos rodeia. Através de uma combinação de ditados tradicionais ou expressões populares e cenários fictícios, a artista utiliza o humor negro para retratar a ignorância e a apatia, reflectindo, em última análise, a modernidade líquida perante questões que exigem uma postura activa e consciente. As obras de Katerina Kouzmitcheva, além disso, desempenham um papel fundamental na arquitectura conceptual desta exposição, operando simultaneamente como enlaces e separadores entre as demais obras apresentadas. Assim, tecem uma rede de significados que, ao mesmo tempo que unifica as diferentes abordagens temáticas, sublinha as distinções que as caracterizam, actuando como pontos de intersecção, onde o discurso da indiferença se articula com a complexidade dos temas abordados pelas outras artistas, criando uma coesão interpretativa com tanto de orgânico quanto de provocador.