Dobrada a primeira metade da 9.ª temporada do Shortcutz Ovar, o cinema em versão curta voltou, antes da pausa estival, a preencher o serão da última quinta-feira do mês na Escola de Artes e Ofícios. Apesar das evidentes diferenças entre si, o público pôde encontrar aspectos comuns às três propostas de programação, em narrativas abertas ao mar e à praia, às férias, ainda que centradas na imagem que projectamos nos outros, no sentido de auto-afirmação e nos conflitos interiores que daí possam advir. “Francisco Perdido”, de Frederico Mesquita, terá sido o filme que melhor ilustra o carácter da sessão, com o seu tom de comédia dramática a seguir os passos do pequeno Francisco e a sua tentativa de conquistar o coração de Rita. Com Tiago “ao barulho” na equação, a jornada amorosa revela-se um fracasso, ao qual outros se seguirão. Eleito pelo público como o melhor filme da sessão, este olhar agudo sobre os primórdios da adolescência tem como ponto de partida as memórias de infância do realizador, desdobrando um manancial de peripécias onde se cruzam desejo e embaraço, inocência e rebeldia, ousadia e frustração. Um filme onde não faltam as referências musicais que marcaram o início do novo milénio, um garrafão de Coca-Cola, Ronaldo com a camisola 17 da selecção, a “tragédia grega” da final do Euro 2004 e toda uma eloquente cartilha de insultos e palavrões.
“Uma Mãe Vai à Praia” foi o filme de abertura da sessão e nele o realizador libanês Pedro Hasrouny dá nota de uma ida à praia de Teresa, na companhia do pequeno Benji, o seu filho, e da irmã Marga. Mãe solteira, obesa mórbida, Teresa parece ser uma mulher bem resolvida consigo mesma, mas as comparações que Marga estabelece entre Julian, o filho, e Benji, levam Teresa a vacilar nas suas convicções. Exercício de final de curso, “Uma Mãe Vai à Praia” denuncia, com humor e ironia, os estereótipos sociais e as pressões sobre tudo aquilo que configura uma fuga aparente aos padrões de normalidade, seja lá o que isso for. Em camadas que se adensam à medida que a acção progride, o filme faz pender para o lado do espectador o ónus da moralidade ou legitimidade em julgar o outro, convidando-o a abraçá-lo na sua diferença. Piscadela de olho a filmes como “As Férias do Sr. Hulot”, “Pauline à la Plage” ou “Um Anjo à Minha Mesa”, “Uma Mãe Vai à Praia” tem na sua componente estética um enorme trunfo, já que o formato do filme parece reforçar o ambiente concentracionário que condiciona esta mulher refém das normas. O outro grande trunfo é Cláudia Jardim, fabulosa na sua grandeza e eloquência, no que se mostra capaz de dizer sem dizer praticamente nada.
Enfim, de Alexander David assistimos, no fecho da sessão, a “À Tona d’Água”, um filme que rompe com o tom de comédia comum aos dois anteriores e que aborda as férias de Verão em família de uma criança pré-adolescente. Primeira curta-metragem do realizador de “A Primeira Idade”, o filme aborda as questões de género no início da adolescência, um tempo de estranheza, transformações, dúvidas e conflitos, de construção da identidade nos seus mais variados contextos. Com enorme sensibilidade e de forma contida, Alexander David poisa um olhar terno e sensível na figura de Mónica (extraordinária Ada Costa), acompanhando-a nos seus muitos silêncios que mais não são do que o reflexo da forma incerta e sinuosa como a pessoa se constrói, muitas vezes por caminhos desconhecidos feitos de tentativas e erros. Rejeitando paternalismos, condescendências ou falsos moralismos, o filme é um retrato sóbrio desta criança que sabe que é o que não parece e cujas perguntas permanecem sem resposta (eloquente a quase ausência dos pais ao longo do filme). Será a descoberta de um outro desconhecido a proporcionar a descoberta do eu desconhecido e a mostrar todo um novo e longo caminho que agora se abre em mistério e certeza.
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