“Oito horas durava o turno, oito duras horas até voltarem pelo mesmo caminho, mas agora mais arrastados, mais sujos, mais suados, com os corpos sovados por um gigante de aço, à noite ninguém precisaria de encolher as pernas para caber no colchão, encolhidas estavam elas, dobradas pelo peso da jorna, e mesmo assim houve quem preferisse o álcool ao descanso, muitos foram às tascas, a maioria não tinha ninguém a espera, só um quarto e uma cama vazia, é destas solidões que se faz a camaradagem, anda, Tirapicos, anda, disseram-lhe, mas ele recusou, não recusaria sempre, mas naquele primeiro dia sim, queria estar com a Dália, contar-lhe como tinha sido, explicar-lhe como se fazia a maior ponte suspensa da Europa e depois adormecer-lhe ao colo, sabê-la a entrelaçar os dedos no seu cabelo, a fazer-lhe festas como se fosse uma criança pequena, hon, no fundo é isso que todos os homens são, crianças pequenas, e as mulheres suas mães. Freud explica e Édipo também. Amanhã há mais.”
O livro de Nuno Duarte leva-nos ao início da década de 1960, a um tempo em que o regime ditatorial de Oliveira Salazar começava a mostrar-se um gigante com pés de barro. A capitulação de Goa, Damão e Diu rompia com o Império uno e indivisível, “do Minho a Timor”, e a Guerra do Ultramar, com início em Angola e que, “rapidamente e em força”, alastrou à Guiné e a Moçambique, abria brechas que já nenhuma cosmética permitia disfarçar. Orgulhosamente só, exaurido de recursos, o governo compensava um esforço de guerra que consumia quase 10% do PIB com mais carestia, mais intolerância e mais repressão. Neste contexto, era urgente encontrar um bom motivo para desviar as atenções da população e nada melhor do que a construção de uma ponte sobre o Tejo, um gigante de aço com 2277 metros de comprimento e um vão livre de 1013 metros, ainda hoje a maior ponte suspensa da Europa. Uma ponte que pretendia ser um símbolo do esforço para a modernização do país e de uma suposta maior abertura ao mundo, mas que não conseguia disfarçar o número crescente de bairros de lata à volta da capital, as elevadas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil, ou os muitos milhares de portugueses que saltavam diariamente a fronteira em busca de uma vida melhor. Hon.
Fazendo oscilar a acção entre o Pátio do Cabrinha, conjunto de habitações modestas na zona de Alcântara, e o estaleiro das obras da Ponte sobre o Tejo, Nuno Duarte oferece-nos um retrato intenso e vivo de um Portugal de dias sempre iguais, sempre cinzentos, cingido a Fátima, ao Fado e ao Futebol, com um Estado securitário, um aparelho de vigilância e repressão política cada vez mais feroz e os seus melhores filhos a serem dizimados aos milhares em África, em nome de uma visão imperialista cega e surda aos novos ventos da História. Ao longo das pouco mais de trezentas páginas do livro, vamos acompanhando um conjunto de personagens cuidadosamente desenhadas, tocantes de humanidade no seu viver resignado, sedentas de liberdade e de justiça. Com tanto de verdade como de ironia, Nuno Duarte pousa o braço sobre o nosso ombro, ao mesmo tempo que mantém uma animada conversa com o Lúcio da tasca que dizia as coisas duas vezes, o Ângelo que ensinava a ler ao mesmo tempo que aprendia a desler, a Cordália que estava sempre doente, ou era da cabeça ou era das pernas ou era das costas ou era do peito, a Helena das serenatas, a Adélia que cantava o fado na Cesária e tinha um rapaz em Angola, o Manel Cheirinho que tinha um filho desertor, o Quim que veio de Moçambique só com metade do corpo, o Fernando da guarda e até os bêbados, o Ti Zé Maria e o Tibúrcio, mais a Odete peixeira e a sua língua afiada. E, claro está, o Victor Tirapicos e a Dália, os grandes protagonistas do romance. Hon.
Há livros que valem todo o tempo que com eles despendemos, de tal forma abrem em nós o desejo de querermos saber rapidamente o final da história e, ao mesmo tempo, pretendermos que as páginas não cheguem ao fim. “Pés de Barro” é disso um bom exemplo, embrenhando o leitor num conjunto de narrativas sabiamente entretecidas e que, no seu conjunto, passam a pente fino a História de um país e mostram o que de bom e de mau há nesta espécie de sortilégio de ser português. No seu estilo peculiar de contar uma história, o autor vai extraindo do leitor a necessária cumplicidade com as principais figuras do romance, fazendo-o sentir a tristeza e as humilhações dos explorados e oprimidos, a sua impossibilidade de erguer a voz contra as injustiças, e o secreto desejo de uma revolução que acabe com tudo e um novo dia - inicial inteiro e limpo - possa erguer-se da mais escura noite. Saúde-se Nuno Duarte e a sua escrita, o seu gosto em dar um segundo sentido às palavras, a forma como replica as expressões de um alentejano ou de um americano, como incorpora o vernáculo nos diálogos, como faz uso de um extraordinário sentido de humor. Fortemente visual, a narrativa põe à prova os sentimentos e emoções do leitor, sendo capaz de o levar às lágrimas com a mesma facilidade com que lhe arranca uma saborosa gargalhada. Uma surpreendente primeira obra, muito justamente merecedora do Prémio LeYa 2024. Hon, hon.
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