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terça-feira, 1 de julho de 2025

CINEMA: "Mississipis" | António-Pedro



CINEMA: “Mississipis”
Realização | António-Pedro
Fotografia | António-Pedro, Miguel Canaverde, Vasco Saltão
Montagem | António-Pedro, Cláudia Rita Oliveira
Interpretação | Filipa Francisco, Susana Gaspar, António Torres, Ricardo Freitas, Pietro Romani
Produção | António-Pedro, Caroline Bergeron, João Matos, João Moreira, Leonor Noivo, Luísa Homem, Pedro Pinho, Susana Nobre, Tiago Hespanha
Portugal | 2024 | Documentário | 88 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar - Castello Lopes
27 Jun 2025 | sex | 13:05


Antes de falarmos de “Mississipis”, o documentário, falemos de “A Viagem”, espectáculo de dança. “A Viagem” começou com uma viagem que a coreógrafa e artista transdisciplinar Filipa Francisco fez a Ramallah, na Palestina, para trabalhar com Carlos Pez e com a El-Funoun, companhia de dança tradicional e contemporânea desta cidade. Trabalhar sobre as danças tradicionais, para esta companhia, é uma questão de afirmação de identidade e de sobrevivência a uma colonização brutal, um acto de resistência, de reconstrução e de sobrevivência deste país. Quando Filipa Francisco regressou a Portugal, quis perceber as danças tradicionais, o que tinham de identidade e de resistência. E, com o impulso de um desafio do cineasta Tiago Guedes, iniciou um projecto de investigação e criação que mistura a dança tradicional com a contemporânea, ao qual decidiu chamar “A Viagem”. Daí em diante, quase podemos intuir o convite a outros artistas para integrarem o projecto, o trabalho em residência artística com os grupos folclóricos, o envolvimento de todos os participantes em matéria de co-criação, o desenho das partituras coreográficas e musicais, enfim, a apresentação do trabalho num tão aguardado espectáculo final.

Neste cruzamento de grupos de desconhecidos que, no interior de Portugal, embarcam numa viagem artística e existencial, vamos encontrar António-Pedro, artista multidisciplinar e autor da música da peça, alguém cuja sensibilidade o levou a fixar a viagem humana que foi acontecendo em cada uma das residências, desde o início do projecto, em 2011. Durante cerca de dez anos, o realizador foi registando estes processos em vinte e cinco locais diferentes, em Portugal, no Brasil e no País de Gales. Fazendo incidir o seu olhar sobre o ponto de junção dos que chegam da cidade e do “contemporâneo”, com os que são do campo e da “cultura popular”, o realizador conta histórias, convoca memórias e dialoga com a vida, ao mesmo tempo que espreita o insondável de si próprio e de cada personagem. As imagens são a prova de que “A Viagem” só se conquista no espaço não formal, no encontro entre o que pessoas tão diferentes podem ter de comum. Entre outras coisas e sintetizando: ter um corpo. Um corpo que dança, que consegue e não consegue, que se cansa, que envelhece, que trabalha, que se diverte, que deseja, que quer, que se transforma. E que, ocasionalmente, consegue ligar-se e formar um corpo comum.

Tentando segurar o tempo, “Mississipis” é, nesse desígnio do prolongar “A Viagem”, um manifesto sobre a importância vital do encontro, das relações de confiança que cada um estabelece com os outros, mas também consigo próprio. Atento às várias fases de um processo intensificado pela necessidade de levantar um espetáculo num período demasiado curto, António-Pedro mostra-nos de que forma o espaço e o tempo são explicados e partilhados. Trabalha-se a liberdade de fazer com o corpo. Improvisa-se. Num chão que é palco, as quedas são tudo menos acidentes. Propõem-se imagens que possam ajudar a criar quadros na dança. Descobrem-se coisas novas. Soltam-se emoções, risos, sussurros e histórias contadas baixinho. Ensaia-se em casa e no campo, na farmácia, no posto médico, no corredor da fábrica. Há sempre medo, mas quando as máscaras caem, sente-se uma liberdade enorme e uma vibração comum a todos. “Mississipis” é um documentário muito belo, que nos vem falar de uma espécie de utopia, a possibilidade de uma verdadeira união entre um grupo de indivíduos, capazes de criar, em conjunto, novos passos, novas relações entre si, novos futuros.

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