CINEMA: “Justa”
Realização | Teresa Villaverde
Argumento | Teresa Villaverde
Fotografia | Acácio de Almeida
Montagem | Clara Jost, Teresa Villaverde
Interpretação | Betty Faria, Madalena Cunha, Filomena Cautela, Alexandre Batista, Ricardo Vidal, Robinson Stévenin, Aurora do Lago, Luísa Cruz, Anabela Moreira, Francisco Nascimento, João Pedro Vaz, Daisy Eltenton, Mariana Pedro, Mariana Vilela, Angela Cerveira
Produção | Daniel Chabannes de Sais, Corentin Dong-Jin Sénéchal, Teresa Villaverde
Portugal, França | 2025 | Drama | 108 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 8
10 Dez 2025 | qua | 16:00
17 de Junho de 2017. Ao final da noite, o país recebia a notícia da morte de 19 pessoas em consequência do incêndio florestal que eclodiu em Pedrógão Grande. O número viria a ser actualizado durante as horas e dias seguintes, culminando em 66 vítimas mortais, 253 feridos, sete dos quais graves, o que faz dele o mais mortífero incêndio de sempre em Portugal. É nas feridas abertas como um orgão exposto que Teresa Villaverde mergulha em “Justa”, olhando o recomeço impossível, a vida que tenta brotar entre ruínas, mas que permanece à beira do sobressalto, como se o fogo tivesse queimado também o futuro e deixado apenas um presente suspenso, feito de sobrevivência e culpa. As causas da catástrofe — a negligência prolongada, o abandono das terras, a ilusão de que o país podia adiar eternamente o cuidado com a floresta — regressam como espectros que ninguém pode exorcizar. Antes viva, a paisagem é agora um mapa de ausências: troncos carbonizados que parecem ossos, ramos retorcidos como membros que ficaram presos à dor, espaços desérticos onde antes havia sombra, vida, respiração. Nas aldeias, já quase nenhumas crianças; quem sobreviveu viu-se forçado a partir. Não se criam futuros no inferno.
“Justa” inscreve-se no território autoral que Teresa Villaverde vem escavando desde 1991, altura em que nos ofereceu o belíssimo “A Idade Maior”. O seu é um cinema que resiste ao espectáculo, que recusa o argumento fácil, que se interessa mais pelo gesto do que pela consequência. “Três Irmãos”, “Os Mutantes”ou “Colo” são exemplos do seu olhar único, da sua intuição para filmar o invisível, o que não tem linguagem, que não cabe em explicações. Um cinema feito de rostos parados, de silêncios que dizem mais do que qualquer diálogo, de corpos em suspensão no limiar entre o desamparo e a revelação. Não há trama no sentido clássico, não há moral, não há soluções: há uma verdade emocional absoluta, irrebatível, nascida dessa capacidade rara de escutar o que está para lá de campo. Em “Justa”, esta poética atinge um grau de depuração extremo. A realizadora rejeita a cronologia e a causalidade, aproximando-se antes de um gesto meditativo, quase táctil, onde cada plano funciona como um eco interior. É cinema que observa, que acolhe, que se recusa a transformar a dor em narrativa, preferindo deixá-la pulsar como um animal que respira agónico no centro da imagem.
“Justa” oferece-se como uma pergunta que ninguém quer formular: O que sobra quando o fogo já passou e só restam cinzas, memória, uma espécie de silêncio mineral? Teresa Villaverde filma a ferida invisível que cada personagem transporta — a casa perdida, o marido que não regressou, o filho que ficou na estrada, a árvore que deixou de dar sombra. O filme não é sobre os mortos, mas sobre os sobreviventes, sobre a matéria frágil de que é feita a continuidade da vida. E é nesse território que emergem, em pleno, as interpretações extraordinárias de Betty Faria e da pequena Madalena Cunha. Betty, aos 84 anos, não representa: habita. A sua personagem, cega, carrega uma dor que vai além de si própria; a cegueira é metáfora de um país que não quis ver o que estava a arder. O marido morreu no carro, derretido pelo calor, e ela ficou para testemunhar o horror — e, sobretudo, para lembrar. A actriz transforma o silêncio numa forma de respiração, numa vibração que ocupa o ecrã como a força da sua verdade. Ao seu lado, Madalena Cunha oferece uma presença quase inaugural, luminosa e vulnerável, capaz de romper as camadas de dor que envolvem o mundo adulto. Juntas, elas tornam “Justa” numa elegia sem grito, num cinema que não moraliza nem explica. Existe apenas, como a dor, que se nos cola à pele e nos acompanha muito depois de a última imagem se extinguir.