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sábado, 13 de dezembro de 2025

CINEMA: "Justa" | Teresa Villaverde





CINEMA: “Justa”
Realização | Teresa Villaverde
Argumento | Teresa Villaverde
Fotografia | Acácio de Almeida
Montagem | Clara Jost, Teresa Villaverde
Interpretação | Betty Faria, Madalena Cunha, Filomena Cautela, Alexandre Batista, Ricardo Vidal, Robinson Stévenin, Aurora do Lago, Luísa Cruz, Anabela Moreira, Francisco Nascimento, João Pedro Vaz, Daisy Eltenton, Mariana Pedro, Mariana Vilela, Angela Cerveira
Produção | Daniel Chabannes de Sais, Corentin Dong-Jin Sénéchal, Teresa Villaverde
Portugal, França | 2025 | Drama | 108 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 8
10 Dez 2025 | qua | 16:00


17 de Junho de 2017. Ao final da noite, o país recebia a notícia da morte de 19 pessoas em consequência do incêndio florestal que eclodiu em Pedrógão Grande. O número viria a ser actualizado durante as horas e dias seguintes, culminando em 66 vítimas mortais, 253 feridos, sete dos quais graves, o que faz dele o mais mortífero incêndio de sempre em Portugal. É nas feridas abertas como um orgão exposto que Teresa Villaverde mergulha em “Justa”, olhando o recomeço impossível, a vida que tenta brotar entre ruínas, mas que permanece à beira do sobressalto, como se o fogo tivesse queimado também o futuro e deixado apenas um presente suspenso, feito de sobrevivência e culpa. As causas da catástrofe — a negligência prolongada, o abandono das terras, a ilusão de que o país podia adiar eternamente o cuidado com a floresta — regressam como espectros que ninguém pode exorcizar. Antes viva, a paisagem é agora um mapa de ausências: troncos carbonizados que parecem ossos, ramos retorcidos como membros que ficaram presos à dor, espaços desérticos onde antes havia sombra, vida, respiração. Nas aldeias, já quase nenhumas crianças; quem sobreviveu viu-se forçado a partir. Não se criam futuros no inferno.

“Justa” inscreve-se no território autoral que Teresa Villaverde vem escavando desde 1991, altura em que nos ofereceu o belíssimo “A Idade Maior”. O seu é um cinema que resiste ao espectáculo, que recusa o argumento fácil, que se interessa mais pelo gesto do que pela consequência. “Três Irmãos”, “Os Mutantes”ou “Colo” são exemplos do seu olhar único, da sua intuição para filmar o invisível, o que não tem linguagem, que não cabe em explicações. Um cinema feito de rostos parados, de silêncios que dizem mais do que qualquer diálogo, de corpos em suspensão no limiar entre o desamparo e a revelação. Não há trama no sentido clássico, não há moral, não há soluções: há uma verdade emocional absoluta, irrebatível, nascida dessa capacidade rara de escutar o que está para lá de campo. Em “Justa”, esta poética atinge um grau de depuração extremo. A realizadora rejeita a cronologia e a causalidade, aproximando-se antes de um gesto meditativo, quase táctil, onde cada plano funciona como um eco interior. É cinema que observa, que acolhe, que se recusa a transformar a dor em narrativa, preferindo deixá-la pulsar como um animal que respira agónico no centro da imagem.

“Justa” oferece-se como uma pergunta que ninguém quer formular: O que sobra quando o fogo já passou e só restam cinzas, memória, uma espécie de silêncio mineral? Teresa Villaverde filma a ferida invisível que cada personagem transporta — a casa perdida, o marido que não regressou, o filho que ficou na estrada, a árvore que deixou de dar sombra. O filme não é sobre os mortos, mas sobre os sobreviventes, sobre a matéria frágil de que é feita a continuidade da vida. E é nesse território que emergem, em pleno, as interpretações extraordinárias de Betty Faria e da pequena Madalena Cunha. Betty, aos 84 anos, não representa: habita. A sua personagem, cega, carrega uma dor que vai além de si própria; a cegueira é metáfora de um país que não quis ver o que estava a arder. O marido morreu no carro, derretido pelo calor, e ela ficou para testemunhar o horror — e, sobretudo, para lembrar. A actriz transforma o silêncio numa forma de respiração, numa vibração que ocupa o ecrã como a força da sua verdade. Ao seu lado, Madalena Cunha oferece uma presença quase inaugural, luminosa e vulnerável, capaz de romper as camadas de dor que envolvem o mundo adulto. Juntas, elas tornam “Justa” numa elegia sem grito, num cinema que não moraliza nem explica. Existe apenas, como a dor, que se nos cola à pele e nos acompanha muito depois de a última imagem se extinguir.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

CINEMA: "Love" | Dag Johan Haugerud



CINEMA: “Love” / “Kjærlighet”
Realização | Dag Johan Haugerud
Argumento | Dag Johan Haugerud
Fotografia | Cecilie Semec
Montagem | Jens Christian Fodstad
Interpretação | Andrea Bræin Hovig, Tayo Cittadella Jacobsen, Marte Engebrigtsen, Lars Jacob Holm, Thomas Gullestad, Sanna Getz, Marian Saastad Ottesen, Morten Svartveit, Khalid Mahamoud, Brynjar Åbel Bandlien, Anna Berg, Tov Sletta, Numa Edema Norderhaug
Produção | Hege Hauff Hvattum, Yngve Sæther
Noruega | 2024 | Drama, Comédia, Romance | 119 Minutos | Maiores de 14 Anos
Vida Ovar - Castello Lopes 
07 Dez 2025 | dom | 15:10


Com o filme “Love”, do norueguês Dag Johan Haugerud, chega ao fim a “Trilogia de Oslo” que, em boa hora, os distribuidores fizeram chegar aos ecrãs das nossas salas de cinema. Aqui, o cineasta retoma a notação dialógica que atravessava os dois filmes anteriores, olhando a forma como se negoceia a própria intimidade num presente em que ser autêntico parece ter tanto de desejável como de ameaçador. Assente num argumento exímio na forma como escrutina as relações humanas, Haugerud faz do diálogo o motor da narrativa e do quotidiano um laboratório emocional das (in)certezas amorosas contemporâneas. Marianne, urologista pragmática e desencantada, e Tor, enfermeiro homossexual habituado ao engate nos ferries nocturnos, encarnam duas formas de errância afectiva que, mais do que convergirem, se iluminam mutuamente. A travessia entre ilha e cidade - público e privado, rotina e desejo - torna-se metáfora insistente deste pêndulo identitário. Não há julgamentos, apenas a curiosidade de perceber como é vivida a vulnerabilidade quando a busca do “certo” deixou de fazer sentido e o instinto não chega para organizar a vida.

Haugerud estende essa curiosidade aos territórios menos fotogénicos das relações: a doença, o corpo intervencionado, o medo de envelhecer. A entrada de Bjørn, psicoterapeuta e futuro paciente de Tor, desloca discretamente o filme para uma reflexão sobre o encontro entre o cuidado físico e o afectivo, sobre o que significa desejar alguém cuja fragilidade se torna subitamente visível. O filme e, de um modo mais lato, a trilogia, atinge o auge da melancolia, evocando a consciência da finitude. Ao mesmo tempo, o filme expõe a dificuldade de conciliar os ideais com o gesto do quotidiano e enquanto Marianne testa a promessa libertadora da intimidade casual, mas tropeça na própria hesitação, Tor procura apenas os gestos simples sombra de um beijo ou de uma carícia, capazes de suspender por instantes a solidão. Ambos ensaiam modos de relação que desmontam a lógica romântica tradicional, mas nunca a substituem por novas certezas. O que Haugerud parece querer mostrar é que a vida emocional se escreve tanto nos impulsos quanto nos recuos, nas escolhas e nos seus remendos, nessa permanente coreografia entre o desejo intenso de liberdade e o medo de ser livre.

Que a ambição temática de “Love” é ampla, disso não restam dúvidas. Há no filme uma depuração radical do drama, uma aposta na palavra como ferramenta de desnudamento moral, os diálogos como a expressão das dúvidas e certezas de personagens apostadas em olhar para o mais fundo de si. Num ou noutro momento, o fluxo verbal parece aproximar-se do ensaio ilustrado, em que os planos fixos surgem demasiado higiénicos, retirando alguma textura emocional às situações. Mas a autenticidade mostra-se espelhada nessa contenção quase puritana tão característica do cinema nórdico, fazendo lembrar nomes como Dreyer, Bergman ou, mais recente, Lars von Trier. Acima de tudo, “Love” consegue, de forma singular, cartografar com honestidade e sem cinismo um presente afectivo desorientado, onde cada gesto de aproximação, por muito precário que seja, se revela necessário. Entre falhas e epifanias, Haugerud capta a humanidade de duas pessoas que, apesar de todas as palavras, só se entendem verdadeiramente quando aceitam que o amor - ou o que quer que possa substitui-lo ou sublimá-lo - raramente se mostra capaz de ganhar raízes.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

TEATRO: "Uma Brancura Luminosa" | Sandra Barata Belo



TEATRO: “Uma Brancura Luminosa”
Texto | Jon Fosse
Adaptação e encenação | Sandra Barata Belo
Cenografia | Rui Francisco
Música | Filho da Mãe
Movimento | Cláudia Nóvoa
Figurinos e adereços | Pilar Peres
Interpretação | Ricardo Pereira e Sandra Barata Belo
Produção | Beladona
80 Minutos | Maiores de 12 Anos
Centro de Artes e Espectáculos de Vale de Cambra
06 Dez 2025 | sab | 21:30


Começo com uma referência ao Centro de Artes e Espectáculos de Vale de Cambra, um equipamento muito recente, de linhas modernas e harmoniosas, uma sala pequena mas muito confortável e uma equipa de colaboradores particularmente simpática e disponível. Parabéns, Vale de Cambra, por este magnífico lugar de cultura. Mas vamos à peça. Em “Uma Brancura Luminosa”, Sandra Barata Belo enfrenta com coragem o desafio de transpor para cena o universo rarefeito e quase litúrgico de Jon Fosse, um território onde o silêncio pesa tanto quanto a palavra. A encenação aposta num dispositivo cénico versátil, com assinatura de Rui Francisco, assente na presença de volumes maleáveis, tecidos e superfícies que se desdobram em sombras, véus e falsas profundidades. Esta ambição visual pretende replicar o labirinto interior do protagonista, no seu caminhar hesitante pela floresta, mas nem sempre resulta com a clareza desejada. Há momentos em que o aparato cénico, em vez de amplificar o desconcerto existencial do texto, parece acrescentar ruído, como se baralhasse mais do que iluminasse. Apesar de um bom número de momentos de fulgor visual, o potencial do dispositivo nem sempre encontra um equilíbrio entre poesia e funcionalidade, desviando o olhar do público do essencial: A tensão íntima do homem que se perde para se reencontrar.

A interpretação de Ricardo Pereira, que sustenta a maior parte da peça, é decisiva para aceder ao centro emocional desta narrativa de desvio e transcendência. No entanto, a dicção irregular e uma colocação de voz frequentemente deficiente comprometeram a fruição de um texto que exige precisamente o contrário: precisão, subtileza e a capacidade de fazer das palavras um gesto interior. Num espetáculo em que a fronteira entre pensamento e fala é tão ténue, perder trechos do discurso é particularmente frustrante. Por várias vezes, o timbre afundado ou o fraseado pouco articulado impediram o público de acompanhar o fio existencial que Jon Fosse tão habilmente constrói, esse fluxo contínuo onde passado, presente e futuro se entrelaçam. A encenação de Sandra Barata Belo aposta na proximidade emocional, mas essa intimidade depende de um verbo nítido, capaz de guiar o espectador pelo labirinto mental da personagem. A fragilidade vocal do actor criou uma distância involuntária, quebrando a imersão que a peça tanto procura. E é uma pena, porque quando o actor encontra o tom certo - sobretudo nos momentos de maior exaustão ou perplexidade - a personagem adquire densidade, revelando na respiração pesada e na pausa prolongada a vertigem de quem caminha à beira do fim.

Apesar dos embaraços cénicos e interpretativos, “Uma Brancura Luminosa” evidencia a sensibilidade de Sandra Barata Belo ao captar o espírito ambíguo da obra de Fosse, onde o real se dissolve em espectro e onde cada gesto parece existir num limiar entre presença e ausência. A “brancura luminosa” que o protagonista vislumbra, essa figura ou energia que o acolhe num momento de cansaço extremo, surge aqui como metáfora de entrega, transição e possível renascimento. A encenação procura dar corpo a essa dimensão quase espiritual através de elementos visuais mutáveis, embora nem sempre alcance a simplicidade que o texto sugere. Ainda assim, há coerência na intenção: A peça quer que o público circule entre a dúvida e a revelação, entre a opacidade e a claridade, entre o medo e uma espécie de serenidade oculta. E é precisamente nestas zonas intermédias que o espectáculo encontra a sua força, sobretudo quando a música, a luz e o ritmo abrandado se conjugam na criação de um espaço contemplativo. Mesmo com falhas, a peça oferece momentos de genuína beleza, convocando questões sobre o abandono, a solidão e a esperança que ressoam para lá da sala. No final, aquilo que permanece não é a densidade dos adereços nem a falha circunstancial da palavra, mas a sensação de um caminho aberto, misterioso, inquietante e, tal como a escrita de Fosse, capaz de tocar o que há de mais silencioso em nós.

[Foto: Manuel Vitoriano | Ovar/Cultura https://www.facebook.com/ovarcultura]

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

INSTALAÇÃO: “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo” | Lisa Barbosa



INSTALAÇÃO: “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo”,
de Lisa Barbosa
Curadoria | Lisa Barbosa, Patrícia Sarrico
XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025
Estação de Aveiro
18 Out 2025 > 18 Jan 2026

Vestido de branco e pintado de azulejos, o edifício da antiga Estação dos Caminhos de Ferro de Aveiro acolhe, por estes dias, “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo”, instalação de Lisa Barbosa que se integra na XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025. Numa sala envolta em penumbra, um conjunto de girassóis atrai o olhar e a reflexão do visitante. A artista parte das memórias de infância, dos lugares campestres, do barro, para reconstruir um território onde gesto e emoção se fixam e desmultiplicam. Aqui, cada pétala endurecida pelo fogo guarda a vulnerabilidade daquilo que nasce para desaparecer, lembrando-nos que a beleza é sempre, tal como a flor, uma aparição fugaz, uma forma de luz ancorada na experiência humana. Nesse encontro entre tradição e escultura contemporânea, a flor não é ornamento, antes veículo: Condensa afectos, traduz ausências, transporta o peso simbólico de celebrações, lutos e renascimentos. Como quem reaviva um vocabulário esquecido, Lisa Barbosa convoca a flor como testemunho da nossa busca insistente pelo belo, uma busca que, longe de ser superficial, é a forma mais honesta de manter vivo aquilo que em nós insiste em florescer.

Núcleo visceral da instalação, o campo de girassóis negros prolonga esta reflexão e desloca-a para o território da comunidade e do cuidado. A cor do carvão, onde tudo termina e tudo recomeça, acolhe hastes firmes que perseguem a luz sabendo que só o confronto da sombra lhes permite erguer-se e perseverar. A artista reinscreve o heliotropismo como metáfora ética, dizendo-nos que crescer é procurar a claridade, mas também reconhecer o lado oculto que sustenta o movimento. Na rigidez suspensa das flores, há um eco de brisa que perpassa, fricção que desinquieta e se oferece ao olhar para desmontar certezas e guiar o espectador aos lugares da sua própria interioridade. O amarelo vibrante que vemos com a imaginação no topo de cada uma das flores ressoa como promessa de alegria, de partilha, de pertença, enquanto o negro que se impõe ao nosso olhar devolve à obra a sua dimensão cíclica e trágica. Aqui, cada caule é uma biografia em construção no amparo das raízes entrelaçadas, prova de que a flor só se cumpre plenamente quando é, também, comunidade.

A instalação avança então para o terreno íntimo da semente, esse lugar onde origem, aposta e risco coabitam. Em cada girassol, Lisa Barbosa expõe a fragilidade das relações humanas, o semear no outro o que temos a mais, mas também o que nos falta. Ali, as sementes repousam sobre um solo incapaz de nutrir, espelhando a tentação de investir afectos em terras inférteis, num gesto de devoção cega que desfaz o equilíbrio do dar e receber. A cerâmica, ao fixar esse instante de falha e de esperança, afirma a semente como território ético. Germinar implica humildade, aceitar a espera, resistir com coragem. A artista utiliza a cerâmica para materializar esse instante crítico, tornando visível o que normalmente permanece abstracto: A escolha dos solos afectivos onde investimos, a linha ténue entre generosidade e devoção cega, a exaustão de quem se oferece de forma desmedida. As sementes pousam sobre um solo de carvão estéril, imagem que sintetiza o perigo de esquecer o próprio centro e de ignorar as necessidades internas. Ao reencenar este ciclo com precisão escultórica, Lisa Barbosa amplia o alcance ético da instalação: O crescimento emocional não depende apenas da luz que procuramos, mas da lucidez com que escolhemos onde semear e da coragem de reconhecer terrenos estéreis.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

CINEMA: “As Meninas Exemplares” | João Botelho



CINEMA: “As Meninas Exemplares”
Realização | João Botelho
Argumento | João Botelho, Leonor Pinhão
Fotografia | João Ribeiro
Montagem | João Braz
Interpretação | Rita Durão, Catarina Wallenstein, Crista Alfaiate, Joana Botelho, Victoria Guerra, Rita Blanco, Leonor Silveira, João Pedro Vaz, Margarida Marinho, António Durães, Ana Bustorff, Rita Rocha Silva, Marcello Urgeghe, Cláudio da Silva, Rui Morisson
Produção | Alexandre Oliveira
Portugal | 2025 | Comédia, Fantasia | 86 Minutos | Maiores de 12 Anos
Cinema Batalha
05 Dez 2025 | sex | 21:15


“Sabemos tudo, desde o momento em que nascemos. Violência. Raiva. Desespero. É por isso que os bebés gritam.”
Paula Rego

Os indefectíveis de João Botelho sabem reconhecer no seu cinema um anti-naturalismo radical que transforma cada filme num dispositivo de artifício assumido, onde a teatralidade, a pintura e a ópera se tornam motores de sentido. Sobretudo em obras mais recentes, como “Filme do Desassossego”, “Os Maias”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ou “Um Filme em Forma de Assim”, Botelho apoia-se fortemente em cenários pintados, criando “tableaux” geométricos que desconstroem a ilusão referencial e expõem o espectáculo social como construção performativa. A sua realização, recheada de re-enquadramentos, naturezas-mortas, imagens suspensas e jogos de representação dentro da representação, funciona como comentário crítico ao próprio acto de ver, aproximando o cinema de um manifesto contra o naturalismo, pela afirmação da ficção como verdade emocional. Ao mesmo tempo, o realizador articula essa estilização com a vitalidade literária das adaptações, preservando tensões históricas e morais, equilibrando sátira e paixão, distância e fervor, e projectando o passado como espelho da contemporaneidade. O resultado é um cinema simultaneamente austero e exuberante, erudito e sensorial, capaz de subverter o drama de costumes através de um artifício tão evidente quanto paradoxalmente imersivo.

Esta sessão no Batalha contou com a presença do realizador e teve vários momentos a todos os títulos interessantes. Desde logo a vontade expressa de abandonar os circuitos comerciais, as salas cada vez mais devotadas à fruição de pipocas e coca-colas e que fazem da sétima arte um pretexto para o consumismo. Depois a grande verdade do cinema que são os espectadores: “As suas reacções”, e cito de cor as palavras de João Botelho, “a sua emoção, o seu tédio, as suas gargalhadas, o adormecer durante a sessão, isso é que é verdadeiro. Tudo o mais é falso, e isto as pessoas ainda não perceberam”. Enfim - e sobretudo - “As Meninas Exemplares”, esse exercício exuberante de cinema que tem numa conversa em Veneza com Paula Rego um dos seus momentos mais significativos, a convergência de pontos de vista em relação à obra da Condessa de Ségur a afirmar uma colaboração da pintora com o realizador ao nível dos quadros, o que só em parte se cumpriu graças à itinerância de uma exposição de desenhos de Paula Rego que acompanha as projecções do filme, já que entretanto a pintora faleceu. Ficam, enfim, as imagens sublimes de um exercício onde a imaginação nunca se impõe à realidade do texto, antes o enriquece com a “verdade” única do cinema de João Botelho.

Em “As Meninas Exemplares”, o realizador reinscreve a pedagogia moral da Condessa de Ségur numa gramática visual altamente composta, mas é precisamente essa estilização que torna visível o núcleo disciplinar da narrativa e que permite aproximar o filme do universo de Paula Rego. Tal como a artista desmonta a doçura aparente dos contos infantis para revelar o seu reverso autoritário, também o filme expõe a rigidez do modelo educativo de oitocentos. A coreografia exacta, a teatralidade dos quadros, a contenção afectiva das personagens, deixam entrever a violência subtil que acompanha a formação das meninas “virtuosas”. Se João Botelho tende por vezes a admirar demasiado o artifício, correndo o risco de suavizar o impacto crítico da história, a leitura em paralelo com Paula Rego permite recuperar a dimensão iminentemente política do seu cinema: o que em Ségur se apresenta como lição edificante, no olhar do realizador - e potencialmente no do espectador - transforma-se num território de tensão, resistência e desejo reprimido. Assim, o filme beneficia quando visto como peça que, ainda que timidamente, abre fendas no edifício moralizante original, oferecendo matéria para uma apreciação mais objectiva. Ele é menos a celebração de uma infância exemplar e mais um exercício de observação crítica sobre as estruturas de poder que moldam, domesticam e silenciam tudo à sua volta.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

CERTAME: MIRA Pinhole Photography - 11.ª edição



CERTAME: MIRA Pinhole Photography - 11.ª edição
Vários Artistas
Curadoria | Adelino Marques, António M. Teixeira, Augusto Lemos e Rui Apolinário
Ciclo de Fotografia LESTA e LENTA
MIRA Galerias | MIRA artes performativas
08 Nov > 20 Dez 2025


Ao entrar no espaço acolhedor do MIRA artes performativas para a 11.ª edição do MIRA Pinhole Photography, a sensação dominante é a de atravessar um portal temporal onde a fotografia se despede dos automatismos e recupera o seu grau zero, feita de luz, matéria e tempo. O texto inaugural de Rui Apolinário funciona como uma bússola crítica, lembrando que esta prática - tão primitiva quanto actual - remonta a Brewster e aos experimentalistas do século XIX, mas repousa sobre um saber ainda mais antigo, conhecido pelo menos desde o século V a.C. Essa arqueologia do olhar não é evocada como exercício nostálgico, antes opera como consciência histórica num espaço que aposta, entre o lesto e o lento, na fricção entre velocidades. A inauguração simultânea da mostra pinhole e da fotografia mobile no MIRA Galerias reforça essa tensão produtiva: uma celebra a volatilidade tecnológica, outra resiste-lhe através da lentidão que devolve ao gesto fotográfico a espessura do tempo. O visitante percebe que este diálogo não é forçado, tratando-se apenas de colocar em confronto dois modos distintos de captura para pensar o significado de fixar o mundo nos dias de hoje.

Diante das imagens, a imprevisibilidade evocada por Apolinário revela-se como princípio estético estruturante. Cada fotografia parece carregar o silêncio de uma operação sem visores, sem lentes, sem pré-visualização — uma espécie de pacto com o desconhecido que, ao materializar-se, convoca o imaginário do visitante. Esta suspensão entre intenção e acaso produz um regime visual distinto do habitual consumo digital de imagens: aqui há falhas, derivas, difusões, zonas onde a luz hesitou e deixou marcas que são tanto ópticas quanto emocionais. No contexto do Ciclo LESTA e LENTA, a pinhole apresenta-se quase como um antídoto contra a aceleração permanente, não como rejeição do presente, mas como contraponto crítico. O que surpreende, no entanto, é perceber que essa lentidão não significa menos intensidade. Pelo contrário, há uma vibração particular nestas imagens, como se cada uma trouxesse consigo a memória da sua própria formação. A experiência de visita é, por isso, também uma experiência de reeducação do olhar: aprende-se a demorar, a observar a respiração da luz, a aceitar que ver pode ser um acto radicalmente lento.

No seu conjunto, o certame reafirma o papel do MIRA como espaço de experimentação e de confronto crítico entre práticas fotográficas. Este “funcionamento em espelho” entre duas open calls internacionais é revelador do espectro expandido da fotografia contemporânea. Se a fotografia mobile responde ao mundo com a rapidez que as sociedades actuais lhe imprimem, a fotografia estenopeica devolve a esse mesmo mundo uma imagem que parece emergir de um sonho, como bem refere Apolinário. O visitante sente essa dimensão onírica não como fuga, mas como outra forma de verdade: a verdade do tempo dilatado, da imagem que se forma devagar e que, por isso, resiste melhor ao esquecimento. Ao circular pela sala, ou vendo as imagens que vão sendo projectadas, percebe-se que cada fotografia é também um gesto de resistência a uma cultura visual saturada. Ao expor lado a lado duas formas extremas de produzir imagens, o MIRA não escolhe um caminho: convida-nos a pensar o intervalo entre ambos. E é nesse intervalo, onde a urgência e a contemplação convivem, que esta 11.ª edição encontra a sua força crítica e a sua relevância cultural.

domingo, 7 de dezembro de 2025

DANÇA: "F*ucking Future" | Marco da Silva Ferreira



DANÇA: “F*cking Future”
Direcção artística e coreografia | Marco da Silva Ferreira
Apoio artístico, apoio à dramaturgia | Catarina Miranda, Cristina Planas Leitão
Música | Rui Lima, Sérgio Martins
Desenho de luz | Teresa Antunes, Rui Monteiro
Interpretação | Catarina Casqueiro, Eríc Amorim dos Santos, Fábio Kraye, Doisy Bryan, Marco da Silva Ferreira, Matias Rocha Moura, Max Makowski, Nala Revlon
Direção de produção | Mafalda Bastos
60 Minutos | Maiores de 6 Anos
Teatro Rivoli - Caixa de Palco
05 Dez 2025 | sex | 19:30

“F*cking Future coreografa a fricção entre militância e militarização, explorando e desafiando os sistemas que moldam corpos e comportamentos. Num palco quadrifrontal, servindo-se desses mesmos sistemas, um colectivo marcha entre rigidez e diluição, disciplina e desejo, convocando novas formas de união e insurgência — permanecemos aqui, resistindo em movimento.”
Marco da Silva Ferreira

Depois da sua estreia na Bienal de Dança de Lyon, no passado mês de Setembro, “F*cking Future”, de Marco da Silva Ferreira, subiu ao palco do Teatro Rivoli ao final da tarde de sexta-feira, trazendo consigo um exercício de intensa e vibrante fisicalidade, a convocar territórios onde o corpo é matéria de urgência. Disposto num quadrado vivo, aberto em todas as direcções como se a proximidade do público fosse condição para que o manifesto respirasse, o espectáculo coloca em cena oito presenças pulsantes, como que à beira do colapso, numa coreografia feita de quedas, rotações, pausas e acelerações, que dão a ver o desassossego de um tempo hoje. Há na peça uma energia quase violenta, sem ser agressiva, antes uma vibração que arrasta para um transe partilhado. A música, a começar num batimento que mal se nota e que cresce até ao limite, opera como força centrífuga que organiza e desorganiza, que empurra os corpos para a exaustão e, ao mesmo tempo, para uma espécie de aliança inevitável. O que emerge é uma comunidade posta à prova em permanência, onde os códigos herdados - da marcha militar ao pulsar do “clubbing” - se desfazem e refazem num gesto insurgente, que questiona o futuro ao mesmo tempo que o acelera.

Se a coreografia incide sobre o excesso e a urgência, é na relação entre os corpos que a peça encontra a sua vibração mais íntima. O toque, o apoio fugaz, a oscilação entre segurança e ameaça, fazem do palco um laboratório emocional que não se esgota no elemento físico. Cada aproximação dos intérpretes ao público, cada olhar que se cruza, cada respiração audível na penumbra desenhada pela luz, produz um chamamento silencioso que nos vem dizer que o futuro se constrói na força de estarmos unidos. O desenho de luz, a recortar apenas fragmentos - um braço, um tronco arqueado, um salto que se desfaz na sombra - amplifica essa tensão entre o visível e o invisível, como se a humanidade do gesto estivesse sempre à beira de se perder. Há instantes em que a massa em movimento parece um organismo único, vibrátil, a vertigem do ritmo techno de mãos dadas com raízes mais antigas, quase tribais, evocando tradições que sobreviveram graças à adaptação e à mudança. No cruzamento entre resistência, desejo e fragilidade, revela a peça a sua força: a reivindicação de um coletivo que não teme afirmar que os afectos, também eles, são motores de transformação.

Quando os bailarinos invadem a plateia e avançam por entre os espectadores, o gesto é tudo menos intimidatório: É convite. Há algo de fantasmagórico, quase cerimonial, nesse movimento que aproxima intérpretes e público ao ponto de dissolver fronteiras. E é nesse instante que “F*cking Future” atinge o seu coração político — não o da militância como confronto, mas o da militância como desejo, como vontade partilhada. O espetáculo propõe um futuro que se escreve no agora, na aceleração dos corpos que recusam a apatia e afirmam o direito ao sonho, mesmo quando o mundo insiste em endurecer. A música e a coreografia, em permanente mutação, lembram que cada passo contém a memória de outros passos e que cada corpo é arquivo vivo de comunidades que lutam para existir. No final, resta a sensação de termos testemunhado um ritual de resistência sensível: uma celebração da diferença, um apelo à coragem de imaginar, um manifesto que nos devolve a crença de que os futuros, mesmo os mais improváveis, começam onde alguém decide tocar, olhar ou avançar sem medo.

[Foto: Ferreira Danse @ Blandine Soulage | https://www.ccb.pt/evento/fcking-future/]

sábado, 6 de dezembro de 2025

CERTAME: XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025



CERTAME: XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025
Vários locais
18 Out 2025 > 18 Jan 2026


Com um percurso iniciado em 1989, a Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro tem sabido afirmar-se como uma referência mundial na criação contemporânea, ao mesmo tempo que demonstra a sua vocação enquanto pilar estratégico da política cultural da cidade. A presente edição confirma a projecção global do evento, traduzida na recepção de 488 candidaturas e 782 obras provenientes de 62 países, implicando um processo de escolha que se pautou pelo rigor e diversidade. Composto por especialistas nacionais e internacionais, o júri desta edição da Bienal seleccionou 110 peças de 96 artistas e atribuiu três prémios e seis menções honrosas, reflectindo a amplitude estética e geográfica dos participantes. Como corolário deste processo, entre outubro de 2025 e janeiro de 2026 Aveiro transforma-se num palco internacional da cerâmica contemporânea, com doze exposições distribuídas por museus, galerias e espaços urbanos, onde propostas conceptuais, experimentações vanguardistas e revisitações técnicas enraizadas na tradição dialogam entre si. Esta dimensão é sustentada por uma vasta rede de parceiros institucionais, bem como pelo trabalho especializado das equipas municipais, que muito têm contribuído para revitalizar um certame que, há pouco mais de uma década, se encontrava deveras fragilizado.

As obras seleccionadas para esta edição da Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro dão prova da sua qualidade, mas são também reveladoras da maturidade institucional do processo, marcado por debates intensos e por uma dinâmica de diálogo que reflectiu a pluralidade cultural dos jurados. O debate aberto entre os jurados reforçou a legitimidade das decisões e espelhou o carácter democrático do concurso, sublinhando o nível de profissionalismo que hoje distingue a Bienal. Para organizadores e participantes, o evento já não é apenas uma competição, mas um espaço de encontro global que promove inovação, capacitação e partilha de conhecimento, afirmando Aveiro como plataforma internacional de criação contemporânea. O consenso alcançado pelo júri permitiu apurar os resultados com confiança, consolidando uma edição considerada exemplar pela diversidade e pelo rigor técnico apresentados. Com o reconhecimento crescente e com uma estratégia cultural que encara a cerâmica como motor de desenvolvimento territorial, a Bienal prepara-se para continuar a fortalecer redes, atrair artistas de todos os continentes e afirmar, ano após ano, o seu contributo para a celebração da arte cerâmica e da diversidade cultural.

É no Museu de Aveiro Santa Joana que o visitante pode encontrar a Exposição do Concurso Internacional desta edição da Bienal, mostra incontornável das tendências da cerâmica artística contemporânea. Cor, forma, textura, conceito e expressão são o mote para uma exposição que reúne os trabalhos escolhidos pelo júri, com destaque para os premiados “Rainy Day”, da polaca Hanna Miadzvedzeva, “White Flowers Still Life”, do espanhol Fernando Garcés, e “Hybrid #9”, do chinês Shiyuan Xu. O Museu de Aveiro Santa Joana acolhe ainda “Curandeiros e Feiticeiros do Fogo, do ceramista peruano Carlos Olivera, trazendo-nos um vislumbre das culturas peruanas pré-incas. Paula Bastiaansen, a grande vencedora da anterior edição da Bienal, mostra-nos a sua “Fragilidade” no espaço superior do Museu Arte Nova. Quase paredes meias com este espaço, o Museu da Cidade acolhe outra exposição imperdível, na qual os membros da Academia Internacional de Cerâmica, sediados na Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, mostram à sua arte. É lá que podemos reencontrar Ellen van der Woude, grande vencedora do Concurso Internacional em 2021 e que na anterior edição da Bienal nos brindou com o seu “Paraíso Frágil”, contendo peças de rara beleza que estiveram patentes ao público no Museu Arte Nova.

“Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo”, magnífica instalação de Lisa Barbosa, justifica bem a subida da Lourenço Peixinho, ao encontro da Estação de Aveiro e desse “campo negro” como ideia de comunidade e pertença através de um grupo de girassóis que coabitam. Outra exposição que merece observação cuidada e atenta, porquanto mergulha o visitante numa autêntica “casa das estórias” tem a assinatura de Heitor Figueiredo, intitula-se “Do Vermelho ao Vermelho” e está patente na Galeria da Antiga Capitânia. A participação activa das escolas dos Municípios da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro traduziu-se no trabalho “Poesia da Forma. Sonhos”, de Núria Figueiredo, e que pode ser vista no espaço Atlas. O périplo pela Bienal deste ano termina em beleza na Praça do Rossio com a exposição “Múltiplos”, que reúne os trabalhos de alunos da Escola de Arquitectura, Arte e Design da Universidade do Minho, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e do Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Mas a Bienal não de fica por aqui. Da colecção Bienal nos Hotéis de Aveiro, com o título “Atmosfera Distinta!” aos objectos chineses em barro da colecção Carlos Xavier Reis, patente no Instituto Confúcio da Universidade de Aveiro, muito há ainda para ver. Uma última nota para a programação cultural, rica e variada - performances, concertos, visitas guiadas, poesia e dança - e que culminará com o concerto de encerramento da Bienal pela Orquestra das Beiras no próximo 18 de Janeiro.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

LIVRO: "O Filho de Mil Homens" | Valter Hugo Mãe



LIVRO: “O Filho de Mil Homens”,
de Valter Hugo Mãe
Ed. Porto Editora, Setembro de 2011 (14.ª edição, Abril de 2018)


“Ele sentia como se procurasse uma criança que lhe pertencesse, e como se a tivesse perdido algures num passeio por distracção e faltasse apenas reencontrá-la. Era como se essa criança o pudesse quase prever, ansioso na busca, ansiosos no amor. Sentia-se mal com a demora, porque o seu filho poderia estar com fome, poderia estar com medo ou cansado, a precisar de ajuda para o rio ou para o escuro da noite. O Crisóstomo pensava que o seu filho também só poderia ser inteiro quando estivessem juntos os dois. Perguntava-se que pai seria, assim a perder-se de uma criança tanto tempo. Que pai seria se chegasse tarde de mais. Cada segundo a menos no tempo de um filho era para um pai uma trágica perda, e nada haveria de o compensar.”

Romance de Valter Hugo Mãe publicado em 2011, “O Filho de Mil Homens” nasce de uma falta. Crisóstomo, pescador de quarenta anos, vive como quem perdeu metade de si e procura intuir, no rumor do mar, a explicação para um vazio que o perpassa como vento através de uma casa sem portas nem janelas. O homem sabe que é da queda que nasce a busca e a aparição de Camilo, menino órfão do avô, responderá às suas preces. Luminosa e ferida, a escrita do autor acompanha Crisóstomo, esse homem que decidiu afrontar o ridículo e declarar ao mundo que buscava um filho, não para o salvar, mas para se completar através do gesto de proteger, transmitir, perpetuar. À medida que o romance avança, porém, a tessitura poética transforma o que poderia ser miséria num campo fértil onde germina a esperança mais improvável. Metáfora da solidão contemporânea, a história mais não é do que a constatação de que a vida, acumulada sem partilha, é apenas peso. Crisóstomo passa de personagem a fábula, de homem partido a início de comunidade, caminhando entre o sonho e a realidade como figura bíblica que carrega sobre os ombros a urgência de inventar um destino novo.

Regressemos à história de Camilo e Crisóstomo, ao filho tão desejado e ao pai enfim inteiro. Os dois reconhecem-se como se o acaso tivesse resolvido um teorema antigo. A partir daqui, o romance torna-se num laboratório de afectos: a família deixa de ser fatalidade biológica para se tornar construção artesanal, dilatada por camadas sucessivas de escolha e risco. A mulher que amará ambos não tardará em chegar, uma mulher cansada do amor possível, mas disponível para o amor verdadeiro, esse que aceita a fatalidade da dor como parte do ofício quotidiano. Valter Hugo Mãe abandona aqui qualquer tentação de doçura ingénua. Mesmo se terna, a sua escrita nunca cede ao fácil: o amor exige trabalho e persistência, remodelação constante, a coragem de enfrentar o que fere. O autor dá-nos personagens marcadas por cicatrizes que não pedem piedade, mas tempo para respirar. São seres que transportam fragilidades e grandezas em igual medida, e é essa densidade humana, tão concreta e tão lírica, que impede o romance de deslizar para a fábula moralista. Em vez disso, compõe uma cartografia da coragem íntima, onde cada gesto de cuidado expande a família como círculos sobre a água.

No seu todo, “O Filho de Mil Homens” funciona como uma celebração indócil da possibilidade de reconfigurar o mundo pela ternura. Há no livro algo de epopeia doméstica, de fábula luminosa erguida sobre ruínas. Um texto assombroso, capaz de unir o orgânico ao fantástico, o quotidiano ao onírico. Precisa, rendilhada, visceral, a linguagem conduz o leitor com a delicadeza de quem segura uma vida frágil na palma da mão. Estamos aqui perante um romance que aborda a filiação não como destino, mas como acto de liberdade. A paternidade não como herança, mas como ofício. O amor não como epifania, mas como decisão. O milagre literário de Valter Hugo Mãe está na forma como transforma essas ideias em matéria palpável, quase pictórica, como se cada personagem emergisse de um quadro de Schiele, as suas linhas cruas, directas e honestas como evidência da sua enorme fragilidade, desejo, angústia, humanidade. É por isso que o livro se lê de um fôlego: não pela leveza, mas pela força que dele irradia. Ao terminar, percebe-se que este é menos um romance sobre um homem que deseja um filho e mais um tratado sobre a construção do humano, esse trabalho lento, imperfeito e infinito onde, apesar da sombra, a esperança aprende sempre a voltar.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE ARQUITECTURA: "Aalto" | Alvar Aalto



EXPOSIÇÃO DE ARQUITECTURA: “Aalto”,
de Alvar Aalto
Curadoria | António Choupina
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
18 Jul 2025 > 04 Jan 2026


Antecipando o cinquentenário da morte de Alvar Aalto, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresenta uma exposição monográfica que vai muito além da celebração de um nome consagrado. “Aalto” oferece uma leitura emocional e crítica da arquitectura moderna através de uma das suas vozes mais sensíveis. O texto curatorial de António Choupina, que guia o visitante, sublinha o carácter colectivo da criação - a tríade formada por Alvar e pelas suas duas esposas, Aino e Elissa Aalto - e o modo como o seu trabalho redefiniu a vertente humanista do modernismo. O percurso, estruturado cronologicamente e impregnado de simbolismo, revela uma obra que nasce do diálogo com a natureza e com o corpo humano. O gesto inaugural - atravessar a “medalha” de Aalto, reinterpretada como portal expositivo - traduz essa dimensão íntima e táctil, evocando a Casa Experimental de Muuratsalo, onde o arquitecto deixou a sua impressão digital. Esta abertura é mais do que um dispositivo cénico: é a metáfora perfeita para um criador que via na Arquitectura não um estilo, mas uma forma de vida.

Entre as décadas de 1920 e 1960, a narrativa expositiva acompanha a transformação da Finlândia em nação moderna, uma epopeia cultural em que a arquitectura se tornou instrumento de identidade. Aalto foi influenciado pelo funcionalismo e pelo diálogo com os modernistas europeus e o círculo da Bauhaus, mas a sua obra transcendeu rótulos. Onde outros viam uniformidade, ele via complexidade e emoção; onde o racionalismo impunha rigidez, ele introduziu organicidade. Obras como a Biblioteca de Viipuri, hoje na Rússia, a Villa Mairea, na Finlândia, a Baker House, nos Estados Unidos, a Maison Carré, em França, ou o Sanatório de Paimio, testemunham essa fusão entre técnica e poesia — edifícios que respiram, acolhem e curam. Este último, projectado no advento da antibioterapia, é exemplar na forma como o espaço se converte em cuidado: a luz, o ar, o som e até o silêncio constituem matéria de projecto. É por isso que o Sanatório figura entre os treze edifícios de Aalto nomeados a Património Mundial da UNESCO, e que o seu nome continua a definir a ideia de “arquitectura humanizada” que hoje tanto se reivindica.

A exposição culmina com Elissa Aalto, encerrando um ciclo criativo e biográfico, mas também lançando um olhar sobre o futuro da Arquitectura enquanto arte de cuidado e crença. A organização em torno de referências bíblicas - um gesto invulgar no contexto moderno - reforça a leitura espiritual de uma obra que dialoga com a fé luterana e, mais amplamente, com a fé no humano. Ao mesmo tempo, estabelecem-se pontes com a contemporaneidade, recordando a influência de Alvar Aalto em arquitectos como Álvaro Siza, laureado com a Medalha Alvar Aalto em 1988. A relação entre ambos - o mestre distante e o discípulo que transforma o legado em nova sensibilidade - confere à mostra uma densidade rara: não é apenas um arquivo, mas uma meditação sobre a continuidade da modernidade. “Aalto”, em Serralves, é menos uma retrospectiva e mais uma revelação: a de que, entre o concreto e a luz, ainda pulsa a possibilidade de uma arquitectura que respira como um ser vivo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "(d) A Espantosa Realidade das Coisas" | Adelino Marques



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “(d) A Espantosa Realidade das Coisas”,
de Adelino Marques
Textos | Maria Afonso
Casa dos Livros - Faculdade de Letras Universidade do Porto
17 Out > 16 Dez 2025


“ (…) Do janelão continuam a assomar as longínquas torres. Na penumbra sente uma remota oração descer do alto, uma melopeia ensurdecida a deslizar pela sobriedade do silêncio. Ninguém repara nos arbustos hábeis onde deus se oculta. Já não se ouvem as trindades. Também elas debandaram temerosas do triste toque dos sinos e dos lilases não há vestígios. Na incisão que cobre o muro alguém deporá uma flor. Ensaia a profunda respiração, mas já não chega ao alto. Senta-se por instantes junto a um túmulo. Aguarda que algum prodígio se erga e salve os ramos secos onde o vento atrai o sossego.”
Maria Afonso

Patente na Casa dos Livros, depois uma estadia no Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança, a nova e muito aguardada exposição de Adelino Marques, “(d) A Espantosa Realidade das Coisas”, aprofunda a sua investigação da paisagem como acto de visão e espaço de revelação. Nas imagens que são as suas, a paisagem nunca é mero cenário, antes construção sensível, dependente de um olhar atento que selecciona, interpreta e devolve ao mundo o que nele se esconde. A fotografia funciona aqui como mediação: não pretende duplicar o real, mas iluminá-lo, expondo tensões, texturas e pequenas vibrações que o olhar apressado não apreende. O artista move-se nesse território onde o instante se abre à possibilidade de eternidade e onde o erro convive com a tentativa. Ao deter e reorganizar o olhar, Adelino Marques devolve à paisagem a sua força inaugural, essa capacidade de nos tocar profundamente e de insinuar que nunca vemos tudo, que algo permanece sempre à espera de ser revelado. Assim, horizontes parecem inclinar-se, o movimento fixa-se e a matéria fragmenta-se, criando paradoxos visuais que suspendem o mundo e incitam o visitante a interrogar o visível.

A experiência da exposição intensifica-se no interior da Casa dos Livros, onde a arquitectura e o silêncio do espaço preparam o visitante para uma relação mais íntima com a fotografia. Envoltas numa névoa deliberada, as imagens convocam um gesto de recolhimento, aproximando-se daquele respeito antigo que se tinha diante das pequenas alminhas à beira dos caminhos. Nelas vemos sombras de ermidas, fragmentos de flores campestres, vitrais que filtram uma luz pálida, aves que se erguem num voo decidido. Esses elementos não apelam à memória como arquivo, mas como respiração, algo que persiste no corpo antes de ganhar nome. Distribuída por cinco núcleos, a exposição apresenta variações de um mesmo impulso: transformar a paisagem em pensamento visual, em matéria sensível que une técnica e intuição. As pequenas derivas de densidade, contraste ou velocidade de obturação revelam não só o que está diante da câmara, mas também o que vibra por detrás: a nascente escondida entre pedras, o silêncio líquido de uma ponte antiga, o labor discreto das mãos que moldam casas e destinos. É nesse território íntimo que as imagens sugerem a sobrevivência de um sagrado difuso, mais respirado do que declarado.

No conjunto, a exposição oferece ao visitante a sensação de participar num exercício que entende a fotografia como montagem mental: cada imagem dialoga com a anterior e prepara a seguinte, gerando um fluxo de percepções mais do que uma narrativa linear. A amplitude desta mostra permite reconhecer a coerência profunda do trabalho de Adelino Marques, fundada numa vontade persistente de pensar a paisagem como experiência de consciência. Há, em muitas das séries, um movimento interior que conduz o olhar para zonas de suspensão, momentos em que a própria realidade parece hesitar entre aparecer e ocultar-se. Essa oscilação, trabalhada com rigor técnico e sensibilidade poética, afirma o gesto do artista: devolver ao mundo a capacidade de surpreender, relembrando-nos que o visível não é uma superfície estável, mas matéria em permanente metamorfose. As imagens exigem um tempo lento, quase meditativo. Pedem para ser lidas como quem lê um poema, acolhendo aquilo que tremeluz no intervalo entre o que sabemos e o que ainda não sabíamos ver. No fim, permanece a sensação de que a fotografia, ao invés de fixar o real, o reimagina, desse movimento nascendo a sua força.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

CONCERTO: "Casa Guilhermina" | Ana Moura



CONCERTO: “Casa Guilhermina”,
de Ana Moura
Com | Rui Poço (guitarra portuguesa), André Moreira (baixo eléctrico), Ricardo Danin (bateria)
Cineteatro António Lamoso, Santa Maria da Feira
29 Nov 2025 | sab | 21:30


Dona de uma voz única e de um apurado sentido da elegância e sofisticação, Ana Moura editou em 2022 o seu sétimo álbum de estúdio, “Casa Guilhermina”, trabalho que persiste em afirmar-se como o capítulo mais livre e luminoso da sua trajetória artística. Através dele, a artista reafirmou a sua capacidade de abrir diálogos com o soul e o semba, a pop e os ritmos urbanos, num gesto de identidade e pertença que ignora convenções e transcende fronteiras. Foi isso que provou à saciedade na noite do passado sábado, perante o público do António Lamoso, trazendo para um plano central a figura da avó Guilhermina e construindo, a partir dela, um território afectivo onde memória, modernidade e experimentação se abraçam de forma intensa e livre. Essa pluralidade sonora - tão íntima quanto expansiva - ganhou forma perante uma sala lotada de um público que, desde os primeiros acordes, se deixou conduzir através de um universo em que tradição e futuro se abraçam, catalisados pela sedução e magia do fado. Entre cadências africanas, fados reinventados e momentos de pura comunhão emocional, Ana Moura confirmou o poder transformador do seu projecto, cuja força está não apenas no refinamento musical, mas na autenticidade de quem canta a sua própria história.

Assistir a “Casa Guilhermina” foi como aceitar um convite à viagem, fazendo nosso o sonho das andorinhas que reclamam asas para inaugurar um desejo antigo de partir. Entre golpes malévolos de faca e promessas por cumprir, Ana Moura ergue o fado impregnado de “loucura” como quem reclama os valores da própria ancestralidade e, debruçada em janela escancarada, deixa entrar a tempestade e o rio dos seus olhos. Depois, os jacarandás fazem renascer ausências que se mantêm vivas e o corpo entrega-se à roda quente das “primázias”, onde Angola curva a cintura e a avó Guilhermina, sentada na sua cadeirinha, acende a memória. Calunga aprofunda essa raiz, liturgia de lamento e resistência, antes de a leveza malandra de uma “corridinha” devolver o sorriso ao quotidiano. Há ternura adolescente em “classe” e um balanço suspenso em “arraial triste”, a marcha e o mar unidos num mesmo fôlego. Entre mães que coroam cores, medos de ficar “sozinha lá fora”, trigais que pedem ceifa e colheitas que ruborizam, o concerto desemboca na devoção de Nossa Senhora das Dores, a quem a fadista oferece o peito e recebe, em troca, a divina sorte do fado, essa casa mestiça que junta, inteira e incandescente, a batida angolana e o fandango do Ribatejo, o corridinho do Algarve e o fado de Lisboa.

Mais de um ano separou a compra dos bilhetes da noite em que, finalmente, Ana Moura trouxe a Santa Maria da Feira o pulsar de “Casa Guilhermina”, e ainda assim nada me preparou verdadeiramente para a forma como o disco, tantas vezes escutado ao longo de milhares de quilómetros de estrada, se reinventou diante de mim, como se cada canção respirasse pela primeira vez. Rui Poço, André Moreira e Ricardo Danin, os músicos que acompanharam Ana Moura em palco, elevaram a fasquia com interpretações de rigor brilhante, tecendo uma base luminosa à voz da fadista que assim pôde ergue-la em toda a sua intensidade. As coreografias dos quatro bailarinos, embora visualmente elegantes, pouco acrescentaram à narrativa emocional que vinha, sobretudo, da artista, capaz de transformar cada tema num território íntimo de memória e revelação. E quando “Desfado” entrou, vindo de outra morada mas perfeitamente enquadrado numa casa que é como se fosse sua, cumpriu-se a ponte entre o passado e o presente, lembrando-nos essa ironia tão humana da “certeza de não estar certa de nada”. No final, as palmas - incessantes, ritmadas, absolutamente cúmplices - selaram uma noite em que “Casa Guilhermina” se afirmou não apenas como álbum, mas como lugar vivo, erguido por Ana Moura em cada gesto, em cada sílaba, em cada respiração.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

CINEMA: "Dreams" | Dag Johan Haugerud



CINEMA: “Dreams” / “Drømmer”
Realização | Dag Johan Haugerud
Argumento | Dag Johan Haugerud
Fotografia | Cecilie Semec
Montagem | Jens Christian Fodstad
Interpretação | Ella Øverbye, Selome Emnetu, Ane Dahl Torp, Anne Marit Jacobsen, Andrine Sæther, Ingrid Giæver, Lars Jacob Holm, Nadia Bonnevie, Ella Bothner-By, Brynjar Åbel Bandlien, Valdemar Dørmænen Irgens, Silje Breivik, Anne-Karen Hytten, Eija Saraneva
Produção | Hege Hauff Hvattum, Yngve Sæther
Noruega | 2025 | Drama, Comédia, Romance | 110 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar – Castello Lopes
29 Nov 2025 | sab | 15:10


Uma semana após a estreia de “Sex”, chega às salas de cinema “Dreams”, novo capítulo da “trilogia de Oslo”, da autoria do realizador norueguês Dah Johan Haugerud. Se no filme anterior o cineasta investigava o desejo adulto e as tensões das relações maduras, aqui desce à zona mais frágil do sentimento humano: o primeiro amor. A protagonista é Johanne, uma adolescente que, ao apaixonar-se pela nova professora de francês, deixa que a imaginação enrede ficção e realidade, num diário onde o verbo antecede sempre a acção. Esse dispositivo literário, eco da formação de Haugerud como escritor, concede ao filme uma interioridade rara, permitindo que as dúvidas e devaneios da jovem habitem o ecrã com a mesma naturalidade com que atravessam a sua consciência. Longe do melodrama que outro realizador poderia explorar, o autor opta por um cinema que observa sem escândalo, que interroga em vez de sentenciar, e que percebe na escrita uma forma de ordenar o caos emocional. É nesse registo desarmante, guiado por diálogos de precisão cirúrgica, que “Dreams” afirma a singularidade de uma trilogia cujos títulos se desvanecem nos genéricos, mas permanecem como mapa emocional de uma cidade e das vidas que a percorrem.

A conquista do Urso de Ouro na Berlinale deste ano — um feito inédito para o cinema norueguês — premeia “Dreams” pela sua coragem e ousadia. Piscando o olho ao cinema de Éric Rohmer, Haugerud convoca o espectador para o lugar da fantasia na formação amorosa, dando a ver a permeabilidade entre gerações e a forma como cada mulher de uma mesma família responde ao que foi, ao que é e ao que poderia ter sido. A leitura do diário de Johanne por mãe e avó desencadeia um movimento de espelhos, onde as projecções da jovem iluminam as frustrações adormecidas e os sonhos perdidos das progenitoras. Haugerud mostra-se capaz de converter conceitos abstractos como o amor, o desejo ou a esperança, em estados sensoriais que moldam o quotidiano. Oslo emerge, assim, como palco emocional partilhado, onde cada recanto acolhe memórias e onde a intimidade é também um território urbano. Ainda que, tal como em “Sex”, possamos apontar ao filme algum excesso de conversação e uma certa contenção visual, é precisamente na palavra, volátil como uma nuvem, concreta como uma confissão, que o filme encontra a sua força, tornando sensível aquilo que tantas vezes permanece por dizer.

Se “Sex” se debruçava sobre a atracção, “Dreams” ocupa o interstício inaugural, a centelha que antecede a queda, o sobressalto que forma, tanto quanto fere. Haugerud filma esse limiar com maturidade invulgar, conferindo ao amor inaugural a dignidade que muitas narrativas lhe recusam. Em vez de inocência cristalizada, mostra um processo de descoberta em que a fantasia se torna mecanismo de sobrevivência, uma forma de os adolescentes traduzirem o mundo antes de nele se inscreverem plenamente. Longe do ornamento, a “voz off” actua como extensão do corpo e da hesitação, revelando um talento literário que a própria família tenta apropriar, numa cadeia de leituras, equívocos e projecções que toca simultaneamente o íntimo e o político. Há momentos em que a trama se afasta da delicadeza inicial para insinuar repercussões sociais, mas esse desvio não anula a autenticidade do percurso emocional. No fim, “Dreams” assume-se como atualização contemporânea dos velhos rituais de passagem, reconhecendo a repetição dos esquemas amorosos e a persistência do deslumbramento, mesmo quando as ilusões se desmoronam. Um belíssimo momento de cinema, terno e sensível, que vale a pena saborear.

domingo, 30 de novembro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida
Com | Ana Castro e Rosalina Macieira de Castro
Apresentação | Tiago Alves
120 Minutos | Maiores de 12 Anos
Escola de Artes e Ofícios
28 Nov 2025 | sex | 21:30


Em tempo de festa e de celebração da sua sessão n.º 100, o Shortcutz Ovar quis expandir o momento a um conjunto de novos filmes, reafirmando o compromisso que, desde 2017, sustenta a relação entre o certame e o seu público. Menos participada do que o habitual, esta edição especial construiu-se em torno do tema “Corpo & Memória”, fazendo dessa promessa um gesto concreto ao colocar em diálogo duas obras que investem na forma como o tempo se inscreve em nós e nos transforma. Em “Salto”, de Ana Castro, e “Kora”, de Cláudia Varejão, o corpo surge como arquivo vivo, território onde a memória se movimenta, resiste e se reinventa. Juntas, as duas curtas foram um convite ao espectador a pensar no que permanece e no que se perde, no que se recorda através do gesto ou da palavra, mas também no que a imagem cinematográfica guarda quando tudo o resto ameaça desaparecer. Uma escolha que sublinha a maturidade do projecto e a sua capacidade de continuar a interrogar o presente, e cujas reflexões partilhadas com um público particularmente interveniente fizeram do serão um dos mais gratificantes momentos de cinema na vida do Shortcutz Ovar.

“Salto”, da realizadora Ana Castro, abriu a sessão, levando os espectadores a acompanhar o processo de revisitação das memórias da avó da cineasta, Rosalina Macieira de Castro, uma das primeiras paraquedistas civis portuguesas. Investigação íntima transformada em gesto político, o filme constrói-se como uma ponte entre gerações, cruzando imagens de arquivo pessoal, testemunhos directos e filmagens contemporâneas, que recuperam a determinação daquelas que ousaram desafiar os céus de um país marcado por uma visão redutora e retrógrada do papel da mulher. No cuidado balanço entre o peso da história e a leveza da lembrança, “Salto” afirma-se não apenas como retrato de uma época, mas como reflexão sobre o legado feminino, as ausências que persistem e o que continua por dizer. Na sessão expandida do “centenário” do Shortcutz Ovar, a presença da avó Rosalina reforçou a dimensão viva desse legado, alimentando um diálogo vibrante sobre coragem, determinação e a força de ser mulher, mas também sobre a experiência nas antigas colónias portuguesas, onde, paradoxalmente, se respirava um ar mais livre. “Salto” revela-se, assim, como o próprio gesto da realizadora: Um mergulho nas raízes e na identidade, um movimento de busca que prova que certas memórias, mesmo herdadas, continuam a pulsar no presente.

No segundo filme da noite, a curta-metragem “Kora”, Cláudia Varejão parte do gesto ancestral de fixar uma sombra na parede para iluminar a vida de mulheres refugiadas que reconstroem o presente em Portugal, trazendo no bolso o retrato de quem amam e no corpo as marcas do que deixaram para trás. Produzido pela Terratreme Filmes, o documentário convoca a mitologia grega para sublinhar a origem íntima da imagem: guardar alguém para que não desapareça. É a partir dessas fotografias, frágeis âncoras de identidade, que o filme desenha a silhueta de mulheres vindas de territórios em conflito - a Ucrânia e o Afeganistão, o Sudão, a Rússia e a Síria -, muitas delas instaladas em contextos precários, em trânsito, tentando integrar-se num país que ainda lhes oferece escasso amparo. Para quem enfrentou a travessia em condições extremas ou viu a família destruída, revisitar memórias pode ser insuportável, mas o que dizem, as ideias que partilham, continuam a ressoar em nós como um verdadeiro manifesto político. Abandonar o próprio país é “ser um jogador de futebol sem pernas”, enquanto continuar significa carregar o passado, não apagá-lo. No subtexto, impõe-se a pergunta que o filme não resolve, mas devolve ao espectador: E aqueles que não têm como fugir e acabam por sucumbir ao genocídio — como em Gaza?

sábado, 29 de novembro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100
Com | Sara Naves Sousa, Daniel Soares e Gonçalo Almeida
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Nov 2025 | qui | 21:30


O Shortcutz Ovar assinalou na noite da passada quinta-feira a sua centésima sessão. Trata-se de um marco simbólico para um certame que, nascido a 26 de Janeiro de 2017, tem dado um importante contributo para a afirmação da vitalidade do cinema português em formato curto. Primeiro no Museu Júlio Dinis e, desde Junho de 2020, na Escola de Artes e Ofícios, o projecto soube conquistar e fidelizar um público a rondar os vinte mil espectadores, transformando cada sessão num momento lúdico e didáctico, onde ver bom cinema e discutir a sua relevância são as duas pedras de toques. Ao longo destas cem sessões, o Shortcutz Ovar tornou-se ponto de passagem obrigatório para realizadores emergentes e para amantes de cinema que souberam reconhecer aqui uma programação consistente, feita de risco, experimentação e espírito crítico. “Make Movies Great Again”, apetece dizer, no momento de celebrar cem oportunidades de contacto directo com a criação cinematográfica, cem possibilidades de formar público, de abrir horizontes e estimular o pensamento. A vitalidade do projecto, sustentada por uma comunidade que cresce a cada edição, sugere que as próximas cem sessões têm todas as condições para continuar a surpreender pela positiva e a provar que, em Ovar, o cinema curto é uma causa duradoura e uma festa contínua.

Passando aos filmes propriamente ditos, a sessão abriu com “O Estado de Alma”, uma curta-metragem de imagem animada com assinatura de Sara Naves Sousa, professora da Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve. Nela, o desconforto assume forma física e brutal numa narrativa que acompanha Alma, uma jovem que acorda diariamente transformada, espelho das suas inseguranças e da dificuldade em corresponder a um ideal de normalidade. Em Ovar pela primeira vez, a realizadora mostrou um filme que se destaca pela ousadia estética e emocional com que traduz a ansiedade social, os medos de encarar ou de se relacionar com o outro, a sensação de inadequação que corrói a personagem por dentro e por fora. Até a casa, tradicional refúgio e porto de abrigo, surge aqui como espaço caótico, incapaz de oferecer segurança a um processo de crescente apatia que culmina no colapso. Só no fundo desse abismo Alma encontrará a possibilidade de renascer, reconhecendo nas diferenças dos outros a prova de que ninguém está realmente só.

“Bad For a Moment”, de Daniel Soares, foi o filme que preencheu o período intermédio da sessão, impondo-se como espelho incómodo sobre a função social da arquitectura e o preço oculto do “progresso”. Filmada no Bairro da Alfazina, esplêndido miradouro natural sobre Lisboa e o Tejo, o filme expõe as tensões latentes da gentrificação e a dureza das vidas que ela empurra para fora do mapa. Há, no centro da narrativa, o desconforto e o dilema moral do arquitecto de contribuir para um mundo melhor o que, na prática, acarreta o desmoronar do mundo de muitos, vítimas que são da voracidade imobiliária. Rebelar-se contra o sistema parece ser um “não assunto”, sabendo que uma eventual escusa  não é sinónimo de travão a tudo o que está em marcha, porquanto haverá sempre alguém pronto a ocupar o lugar. Distinguida com o Prémio Especial do Júri do Festival de Cannes, a obra confirma, à semelhança dos anteriores “Please Make It Work” e “O Que Resta”, já exibidos no Shortcitz Ovar, o rigor estético e a sensibilidade para as causas sociais do realizador luso-alemão e questiona até quando é possível resistir num cenário onde o idealismo cede, quase sempre, ao peso das consequências.

A encerrar a sessão - e a 9.ª temporada -, “Atom & Void”, de Gonçalo Almeida, seguiu as pisadas das curtas anteriores e voltou a instalar o espectador no lugar do desconforto. Filmado no interior de uma garagem alentejana, o filme transforma uma aranha na protagonista silenciosa de uma fábula pós-apocalíptica. Desafiando o poder e sedução da alta tecnologia, a obra devolve à artesania a sua capacidade expressiva, convertendo-se num lúcido tratado sobre a condição humana - mesmo sem humanos em cena - e numa reflexão inquietante sobre o rumo civilizacional num antropoceno onde os efeitos da acção do homem sobre o planeta são evidências que os líderes das grandes potências teimam em negar. Enquanto se mascaram os danos do progresso sob a bandeira do avanço científico, a corrida pelo domínio geopolítico permanece a fonte de todos os conflitos. Não por acaso, “Atom & Void” abre com uma advertência de Yuri Gagarin: “There never has been a bloodless victory over nature”. Ela lembra-nos que cada conquista exige um preço, e que a imaginação, quando alimentada por meios mínimos e uma lente comprada à custa de todo o orçamento de um filme, é capaz de revelar abismos que preferimos não enfrentar.