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terça-feira, 8 de abril de 2025

CONCERTO: Efterklang



CONCERTO: Efterklang
Com | Casper Clausen (guitarra, voz), Mads Brauer (teclados), Rasmus Stolberg (baixo), Tatu Rönkkö (bateria) e Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho
Auditório de Espinho - Academia
06 Abr 2025 | dom | 18:00


Foi em 2004 que a banda de indie rock Efterklang (nome que vem do dinamarquês e significa “reverberação”) se deu a conhecer ao mundo com o álbum “Tripper”. Duas décadas depois desse trabalho inicial, e já com sete álbuns de estúdio gravados - o último dos quais, “Things We Have In Common”, lançado em finais de Setembro do ano passado -, a banda apresenta um currículo invejável, com várias colaborações com orquestras sinfónicas, documentários e centenas de concertos à volta do mundo. Mostrando uma frescura e uma vitalidade inabaláveis, os Efterklang continuam a dar cartas e ensaiaram, neste início de Abril, uma curta digressão pela Península Ibérica, pisando palcos em Barcelona, Madrid e Lisboa. No passado fim-de-semana foi a vez de Espinho abrir o seu Auditório para dois momentos aguardados com enorme interesse, como o comprova a procura dos bilhetes a fazer esgotar rapidamente as sessões. Mantendo o espirito aventureiro e a autenticidade das suas criações, o gosto por uma certa teatralidade e uma relação fortemente empática com o público, a banda não frustrou as expectativas e mostrou uma música calorosa e envolvente, densa e misteriosa, em harmonia perfeita com a natureza e o universo, a vida e a eternidade.

A abrir o concerto, os Efterklang recuaram a 2012 e ao álbum “Piramida”, revisitando os momentos marcantes de uma viagem à cidade-fantasma de Pyramiden, na ilha de Spitsbergen, apenas a mil quilómetros do Pólo Norte. Mais do que oferecer-nos a imensidão gelada, a força dos ventos glaciares ou o ruído abafado das passadas na neve, “Dreams Today” trouxe consigo uma proposta de viagem imersiva, convidando a escutarmos, na harmoniosa combinação de sons, aquilo que em nós há de mais íntimo. Num exercício de natural alienação, somos desarmados por uma música carregada de magnetismo, que chega até nós como uma dádiva: Catártica, fecunda, libertadora. Seguiram-se “Sentiment” e “Ambulance”, extraídos do álbum mais recente, e a veia interpretativa manteve-se, como se o fosso de doze anos entre ambos os trabalhos não existisse. Casper Clausen ensaiava a pose do menino que parece pedir desculpa por estar ali a mimosear o público com as suas “lamechices” analíticas e espirituais, mas o olhar travesso dizia o contrário. O público sabe que está a fazer “bluff”, ri-se e Clausen ri também. O público rende-se à banda, Clausen está rendido ao público.

Ao mergulhar nos primórdios, “Swarming” reforça a ideia de continuidade e complementaridade em temas como “Supertanker”, “Vi er Uendeling”, “Animated Heart” e o sublime “Sedna”. Está cumprida uma hora de concerto e os Efterklang despedem-se do palco, toda a gente de pé a aplaudir como se não houvesse amanhã. O público quer mais e vai ter mais, só que a nota seguinte é de absoluto desconcerto. A banda não regressa ao palco, vindo em seu lugar o Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho. Quinze frescas e bem cuidadas vozes, perfeitamente síncronas, começam por entoar o tradicional “Coro das Maçadeiras”, enriquecido com um invulgar exercício de percussão que embala o público e o deixa em êxtase absoluto. Já com a banda de novo em palco, o Ensemble Vocal acompanhará, de forma brilhante, “Hold Me Close When You Can” e “Cutting Ice to Snow”, dois dos temas mais emblemáticos da banda. Sempre em crescendo, ainda escutaremos “The Ghost”, “Living Other Lives” e “Modern Drift”. O grande momento chegará mesmo no fim, Clausen & companhia a subirem a escada lateral e a “estacionarem” na fila G para uma última canção, rodeados de um público completamente rendido, que não se cansa de cantar, dançar e bater palmas. A glória, enfim.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Blur" | Lara Jacinto



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Blur”,
de Lara Jacinto
Curadoria | Susana Lourenço Marques
(In)visibilidades e Derivas
MIRA Galerias | MIRA FORUM
08 Mar > 03 Mai 2025


A complexidade da vida quotidiana nos países em redor do Adriático - uma região que, ao longo da História, tem passado por profundas alterações, com um passado de beligerância que engloba as guerras mundiais do século XX e a última guerra a ter lugar na Europa antes do novo milénio - está no centro de “Blur”, exposição de fotografia de Lara Jacinto, patente no MIRA Galerias | MIRA FORUM. “Blur” pretende apreender e transmitir a realidade de uma linha de fronteira tornada difusa graças a repetidas mudanças, determinadas por acontecimentos políticos de magnitude variável e com um forte impacto no tecido social e humano. Aos olhos daqueles que não pertencem à região e são alheios a esse forte sentido de alteridade que a história recente inculcou nela, em ambos os lados da fronteira, as semelhanças herdadas pelas travessias ao longo dos anos, a miscelânea de destinos de cada povo daquele território. As diferenças são superficiais e artificiais. “Blur” aborda esta identidade partilhada inconscientemente (pelo menos no que diz respeito aos hábitos culturais), a confusão entre fronteiras políticas e semelhanças entre povos e a dificuldade de estabelecer uma identidade que não seja, de certa forma, comum a todos.

“Blur” também aborda a incerteza do futuro - entre a tentação de criar fronteiras mais rígidas, a resistência à diferença, a ênfase dada àquilo que separa os povos e tudo aquilo que contraria o ideal europeu de unidade, agora perdido. É uma viagem emocional num território partilhado vulnerável, onde se agrupam diferentes influências culturais, religiosas e políticas, combinando-se e criando um universo tão fascinante quanto contraditório - belo e repulsivo, emocional e racional, seguro e hostil. Não se pode olhar para este universo sem pensar duplamente: por um lado, as questões que perturbam a Europa, a situação dos refugiados, a ameaça terrorista e a instabilidade política; por outro lado, a dispersão das fronteiras, a reconfiguração do território, as questões identitárias, a guerra e a disputa geográfica e étnica que ocorreu nos Balcãs. Embora se trate de uma região onde algumas políticas se esforçam por resistir à contaminação cultural e por apoiar a ideia de identidade e de diferença, a paisagem humana está, no entanto, a misturar-se por todo o lado. Neste contexto, é premente questionarmo-nos sobre o que define, de facto, a proximidade entre as pessoas.

Num primeiro contacto com um espaço cultural e geograficamente estranho, há uma tendência natural para reparar nas diferenças. As imagens tornam-se mais nítidas e destacam uma geração mais jovem com diferentes origens, etnias e religiões, uma sociedade que prepara o seu futuro na Europa. Alguns estudam ou trabalham, outros não têm profissão, mas todos vivem um quotidiano idêntico e têm objectivos de vida semelhantes. Vestem as mesmas roupas, usam os mesmos modelos de smartphones, ouvem a mesma playlist, aspiram aos mesmos luxos e aos mesmos divertimentos e adoptam comportamentos sociais recorrentes. Quando observamos estes europeus, tendemos a desenvolver alguma identificação, e a nossa proximidade e empatia aumentam à medida que as semelhanças se revelam. Apesar da distância, percebe-se que é muito mais o que os une do que aquilo que os separa. É esta realidade que pode ser apreciada no simpático espaço de Campanhã, até 03 de Maio.

domingo, 6 de abril de 2025

LIVRO: “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos”



LIVRO: “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos”,
de Hélder Bruno Martins
Ed. Cordel D’ Prata, Maio de 2024


“Foi em Londres, numa noite em que Miles Davis, esse génio comercial, abria o concerto, e que o fechava era um tipo do free jazz, o Archie Shepp (…). Assisti à atuação do Shepp sentado na fila da frente, a levar com o free na cara. Pensava: ‘Só sais daqui quando gostares disto.’ Lutei muito contra mim mesmo, contra o meu organismo. Até que, de repente, me dei a entender esse jazz novo, com novas regras e novas sonoridades.”

“Um… dois… um, dois, três, quatro, Cinco Minutos de Jazz”. Se, numa roda de amigos, alguém se lembrar de dizer esta frase, com as pausas no devido lugar, é certo que logo um ou mais convivas trautearão os acordes de uma música que marcou gerações graças a um programa de rádio. A grande maioria não saberá que se trata de “Lou’s Blues”, um tema interpretado pelo sexteto de Lou Donaldson, da mesma forma que terão dificuldade em dizer que é do programa mais antigo de sempre da rádio portuguesa que se fala, no ar entre 21 de Fevereiro de 1966 e 2023. Mas estou certo que, independentemente do gosto que cada um possa nutrir por este género musical, todos associarão o nome de José Duarte a um extraordinário momento de rádio, a face mais visível de uma vida dedicada ao jazz e à sua mediação enquanto produtor de programas, concertos e edições discográficas (foi o responsável pela gravação do primeiro disco de jazz em Portugal), jornalista, escritor de livros, curador de exposições, conferencista e, mais recentemente, professor auxiliar convidado da Universidade de Aveiro, instituição à qual legou uma parte do seu arquivo pessoal e contribuiu para a criação do Centro de Estudos de Jazz.

“É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos” resulta de um exercício colaborativo de escrita biográfica, assente em oito horas de entrevistas transcritas e trabalhadas por Hélder Bruno Martins em parceria com José Duarte, e no trabalho de investigação do imenso acervo de um colecionador impulsivo. No livro avultam algumas facetas curiosas da sua vida, nomeadamente as superstições, a “mania” de Santo António, o amor às palavras, [Álvaro Cunhal] o maior em “swing”, um tio que lia Heráclito e esteve preso no Tarrafal, a viagem a Houston para acompanhar a queda da missão Apolo 13, uma decepcionante primeira ida ao Hot Club de Portugal, a declaração política de Charlie Haden contra o colonialismo, o convite do José Cardoso Pires para escrever no Diário de Lisboa, a importância de Raul Calado na sua vida, a recusa em assessorar Louis Armstrong, uma ida com o Dizzy Gillespie “ver o Eusébio”, um copo com Mário Soares, uma conversa com Betty Carter. Já no tocante aos Cinco Minutos de Jazz, as curiosidades começam logo com a edição inaugural do programa a ir para o ar no preciso momento em que pisava pela primeira vez as tábuas do mítico Village Vanguard de Nova Iorque e estendem-se a uma “gaffe” que mete John Coltrane e um Monsenhor ao barulho, à sua discografia particular que alimentou o programa na íntegra ou ao salário sempre baixíssimo na rádio.

A leitura pessoal deste trabalho de Hélder Bruno Martins não ficaria completa sem uma abordagem à segunda parte do livro, seu complemento e contextualização. “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos” nasce da tese de doutoramento que o autor apresentou em 2020, desenvolvida no âmbito da etnomusicologia, sob a orientação de Susana Sardo, Professora Catedrática da Universidade de Aveiro. Ao abordar questões e conceitos relacionados com identidade, emoções, história de vida, arquivos e colecções, Hélder Bruno Martins mergulhou a fundo na vida e obra de José Duarte, um dos divulgadores e mediadores de jazz mais influentes em Portugal desde a segunda metade do século XX e cuja acção foi especialmente importante durante o período do Estado Novo, quando o contexto social, cultural e político, relegava o jazz para um plano de marginalidade. Combinar a coloquialidade de um registo biográfico assente em conversas ou mensagens escritas, com o cânone académico foi o grande desafio que o autor se colocou a si próprio, daí resultando um livro de enorme valor e interesse, com uma escrita elegante e fluida, riquíssimo em informação nos domínios teórico e prático sobre a pessoa biografada e o universo do jazz no nosso país. Um livro que importa, muito em particular, aos fãs de José Duarte. Que, afinal, somos todos.

sábado, 5 de abril de 2025

CONCERTO: New York Tango Trio | Richard Galliano



CONCERTO: Richard Galliano
New York Tango Trio
Com | Richard Galliano (acordeão), Adrien Moignard (guitarra), Philippe Aerts (contrabaixo)
Casa da Música
02 Abr 2025 | qua | 21:30


Richard Galliano entrou sozinho em palco à hora marcada. Após o aplauso inicial, deixou que o silêncio caísse sobre si, enquanto ajeitava nos ombros o seu acordeão. Mal deu a escutar as primeiras notas, a sensação imediata foi a de que estaríamos perante uma daquelas raras noites que se guardam para sempre no baú das mais gratas recordações. A “chanson française” derramava-se em acordes elegantes, chamando ao palco Charles Trenet e “L’Âme des Poètes” numa melodia terna e nostálgica à vez. Bastaria este tema para percebermos o porquê de o “The Guardian” se referir a ele como “o maior acordeonista vivo da actualidade” e mestre Yasuhiro Kobayashi ter afirmado a sua influência na forma como mudou o curso da história do acordeão, ao falar de “um antes e um depois de Galliano”. Ao evocar as mais complexas paisagens sonoras, as notas do seu “Victoria” arrastavam consigo, ora os sons do mar ou um dobrar de sinos, ora o canto dos pássaros ou a chuva a cair, embalando o público numa toada doce e trazendo aos lábios de alguns, num murmúrio, as palavras “Parfois on change un mot, une phrase / Et quand on est à court d’idées / On fait la la la la la la”.

Já com o guitarrista francês Adrien Moignard e o contrabaixista belga Philippe Aerts em palco, o concerto prosseguiu com um conjunto de temas que, ora evidenciavam a sensibilidade e inspiração dos respectivos compositores, ora faziam recair a atenção no virtuosismo e cumplicidade do trio. Sob o olhar grave do contrabaixo de Aerts, Galliano e Moignard iam entretecendo um apaixonado encontro entre acordeão e guitarra, feito de diálogos animados, chamamentos atrevidos, insistentes súplicas e finais felizes. Num estilo único e inteiramente pessoal, as abordagens jazzísticas a temas icónicos como “Laurita”, “NY Tango”, “Feu-Rire”, “Ma Plus Belle Histoire d’Amour” ou “Vuelvo al Sur” foram propostas de viagem pela música dos quatro cantos do globo, servindo ao mesmo tempo para prestar homenagem a Nino Rota e Astor Piazzolla, mas também a outras importantes figuras do mundo da música que deram a mão a Galliano em início de carreira e o ajudaram a afirmar-se num meio de enorme exigência, casos dos acordeonistas Joss Baselli e Andre Astier, dos cantores Claude Nougaro, Serge Reggiani e Barbara e de grandes nomes do jazz como Chet Baker, Charlie Haden, Ron Carter e Michel Portal.

Os aplausos continuaram a pontuar cada uma das interpretações, até ao momento em que Richard Galliano tocou “Moon River”, de Henri Mancini, munido de uma original melódica, composta de botões em vez de teclas. Este foi um momento capital do concerto, ao encontro do maior desejo de sempre do artista, o de colocar o acordeão no lugar que merece, fazendo-o descolar do injusto epíteto de “piano dos pobres”. Hoje, com uma carreira de mais de cinquenta anos, Galliano continua a demonstrar um imenso prazer em fazer aquilo que melhor sabe, tocando na Casa da Música para uma plateia rendida ao seu charme e génio interpretativo de temas como “Oblivion”, “Tango pour Claude” ou “Caruso”, tornados clássicos graças à sua criatividade e virtuosismo. No final houve direito a bis (infelizmente apenas um), com o concerto a terminar da melhor forma com a música, ainda e sempre, de Charles Trenet. “Que reste‐t‐il de nos amours?” foi o final perfeito de uma noite perfeita, levando o público a sair da sala com o coração aconchegado, um sorriso largo no rosto, o som daquele acordeão a vibrar (para) sempre no ouvido.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Retratos" | Daryan Dornelles



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Retratos”,
de Daryan Dornelles
Curadoria | Magda Pinto
Leica Gallery Porto
22 Mar > 10 Mai 2025


“Retratar é como desvendar um segredo que ambos — fotógrafo e retratado — concordam em partilhar.”
Daryan Dornelles

Sensibilidade, criatividade e perspicácia, são requisitos indispensáveis a um fotógrafo de retratos. Daryan Dornelles possui todas essas características, o que facilmente se percebe ao apreciar a exposição “Retratos”, patente até 10 de Maio no bonito e elegante espaço da Leica Gallery, a Sá da Bandeira, no Porto. Entre os mais proeminentes artistas portugueses e brasileiros da atualidade, poucos devem ser os nomes que nunca estiveram à frente da sua câmara. Com uma simpatia única e um sorriso pronto, o seu à vontade é um vector único de descontração e desobstrução, sendo precisamente nesta forma de desconstrução que tudo tem o seu início. Os gestos, a luz, a sombra, o tempo vivido no estúdio, são um jogo quase hipnótico de conhecimento, desconhecimento e reconhecimento entre quem fotografa e quem é fotografado. Não é algo que se ensine ou se possa explicar, nem esta capacidade é para todos, mas a verdade é que conseguimos ver, nestes retratos, a conexão íntima que o fotógrafo estabelece com o sujeito que está diante da câmara.

Cidadão brasileiro a viver em Lisboa, Daryan Dornelles tem na sua paixão pela música as raízes de uma carreira fotográfica de enorme sucesso. A comprová-lo, desfilando ante o nosso olhar, Cee-Lo Green, Russo Passapusso, Luiz Melodia, Elza Soares, Carminho, Chico Buarque, Caetano Veloso, Dino d’Santiago ou Sérgio Godinho são apenas algumas das personalidades do mundo da música que figuram nesta exposição, em imagens que são, algumas delas, capas de discos ou de revistas como a GQ, a Vogue, a Esquire, a Bravo ou a Rolling Stone. Estudioso da fotografia, da sua evolução, do tipo de estética que se impõe a cada momento, o artista mostra-se particularmente atento aos detalhes e à forma como se vão alterando, procurando acompanhá-los. Ouvir música como forma de estimular a sua criatividade é outra das suas características, ele que é um coleccionador confesso de obras musicais nos mais variados formatos. Enfim, olhamos o conjunto de imagens e percebemos que aquilo que temos à nossa frente são retratos com assinatura, fruto de um olhar autoral, pessoal e intransmissível.

O retrato é quase como uma negociação entre presença e abstração. Enquanto que, por um lado, marca a identidade de alguém, é também uma construção, uma mediação do eu através dos olhos do outro, desafiando a noção de um eu fixo, que pode ser também uma identidade fluída, relacional e performática. Aquilo que Daryan Dornelles nos mostra é que fazer um retrato de alguém é estar diante desse alguém e ser-lhe permitido entrar. É como um encontro inquietante, cúmplice e único, em que se tensionam os limites entre intimidade e construção simbólica, entre o visível e o intangível. É aqui, neste encontro aparentemente simples, que nascem os retratos, entre a imagem que projectam e a verdade que guardam. “Retratos” convida o espectador a que veja para além da imagem, a que perceba a cumplicidade que é necessária entre fotógrafo e pessoa fotografada. Mas, acima de tudo, a que aprecie este diálogo entre o artista e o sujeito retratado, em que identidade e alteridade se misturam e confundem, sugerindo que ver o outro é inevitavelmente um acto de auto-descoberta.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

CONCERTO: Elida Almeida



CONCERTO: Elida Almeida
Com | Jerry Bidan (guitarra), Mayo (baixo), Kalu Ferreira (teclados), Kau Paris (bateria)
Kriol Jazz Festival 2025
Centro de Artes de Águeda
29 Mar 2025 | sab | 21:00


Regressemos atrás no tempo e fixemo-nos em 2008. Na cidade da Praia germinava a ideia de fazer um festival de Jazz em Cabo Verde, um evento que representasse uma certa crioulidade, acentuando as sonoridades africanas. Rosto maior da iniciativa, o produtor Djo da Silva dava forma à expressão de uma vontade que residia nos cabo-verdianos: a de outros palcos, outras músicas, mais artistas e novas experiências. A edição inaugural do Kriol Jazz Festival teve lugar no ano seguinte e juntou nomes como Tcheka, Ba Cissoko, Regis Gizavo ou Mário Lucio. Entretanto, o Festival cresceu e consolidou-se, vendo passar pelos seus palcos figuras maiores do jazz e da música de expressão africana, de Hermeto Pascoal a Mayra Andrade, de Os Tubarões a Dee Dee Bridgewater. Agora que treze edições são cumpridas e se anuncia, dentro de poucos dias, uma nova jornada de celebração da música de inspiração crioula, o Kriol Jazz Festival arrisca um novo salto, assentando arraiais pela primeira vez além fronteiras. A cidade de Águeda foi o local escolhido e o momento inaugural teve lugar na noite de sábado, com a cantora cabo-verdiana Elida Almeida.

Perante uma plateia repleta de um público entusiasta - entre os quais se encontrava o ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Augusto Veiga -, Elida Almeida cantou e encantou, graças à sua simpatia e energia, a uma extraordinária capacidade vocal e à forte presença em palco, estabelecendo pontes com o público de forma natural e convidando os presentes a bailar ao ritmo da tabanka, do batuco, da morna ou do funaná. “Dexam kontabu nha lamentu / ki ta fikau na pensamentu / mi tambi djam sunha tamanhu / dizatinadu sem tadju”. Os primeiros acordes fazem-se ouvir, as primeiras palavras fazem-se sentir. Num crioulo cerrado, “Mulata” é toda uma carta de intenções, num concerto pensado de e para as mulheres. A canção fala da vida fechada e pobre das mulheres da ilha, mas exalta a coragem de uma delas, Cesária Évora, bandeira de todo um povo. As dificuldades das meninas que se levantam cedo, com o cantar do galo, para poderem ir à escola é o tema de “Kaminhu Lonji”, o seu significado e simbolismo a tomar conta da sala, ao fio e à medida de uma batida intensa de ritmo e de energia e de uma voz quente e harmoniosa. “Sai Bu Bai” fala do fim de uma relação, “Nhu Santiago” é um hino de amor à ilha onde nasceu e “Mudjei” é o grito de resistência que a todas une.

Entre “uma aula gratuita de crioulo”, uma provocação ao presidente do Município de Águeda e a alegria de ver a plateia toda a cantar, Elida Almeida mostra uma energia inesgotável, saltando no palco, puxando pela voz e fazendo um constante apelo à participação do público. Este responde na mesma moeda, sobretudo os muitos cabo-verdianos que pontificam na sala, filhos e netos na diáspora, gargantas ao rubro, letras na ponta da língua, canções entoadas a uma só voz. A segunda metade do concerto segue o mesmo tom, afirmando a história da mulher que foi, um dia, a menina que se alimentava de canções quando não havia nada para comer. É Cabo Verde que a inspira e através da qual canta a emancipação da mulher. “Mo Ki Nta Fazi” denuncia as desigualdades sociais, “Dipalbesa” é despedida, “Lebam Ku Bo” é ambição de uma vida melhor e “Domingo Denxo” diz que abençoado seja o descanso. “Bersu d’Oro” fechou da melhor forma o alinhamento do concerto, com todo a sala levantada das cadeiras, a dançar e a fazer a festa. Num muito reclamado encore, a cantora trouxe consigo o primeiro êxito da sua carreira, “N Ta Consigui”, e “Mudjei” foi tema repetido a fechar a noite em ambiente de verdadeira apoteose. Grande começo de um grande festival.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

CINEMA: "On Falling" | Laura Carreira



CINEMA: “On Falling”
Realização | Laura Carreira
Argumento | Laura Carreira
Fotografia | Karl Kürten
Montagem | Helle le Fevre, Francisco Moreira
Interpretação | Joana Santos, Inês Vaz, Piotr Sikora, Neil Leiper, Jake McGarry, Itxaso Moreno, Leah MacRae, Billy Mack, Deborah Arnott, Paul Donnelly, Ola Forman, Ross Ian-Martin, Karyna Khymchuk, Lukasz Kornacki, Daniel McGuire, Liam Nelson, Helen Robinson
Produção | Mário Patrocínio, Jack Thomas-O’Brien
Reino Unido, Portugal | 2024 | Drama | 104 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 18
30 Mar 2025 | dom | 19:05


Aurora é uma portuguesa que vive e trabalha na Escócia como empregada num armazém de vendas pela internet. Deixou o nosso país na expectativa de “um futuro brilhante” - pelo menos é assim que rezam todos os anúncio de oferta de emprego para o Reino Unido -, mas rapidamente percebe que a realidade é bem diferente. Tal como os restantes empregados, na sua maioria imigrantes e sem grande formação académica, recebe um salário baixo por um trabalho rotineiro, sendo recompensada pela sua boa produtividade com uma barra de chocolate. Entre a raiva e a frustração, vê-se confrontada com uma vida muito abaixo dos padrões com que sempre sonhara, tendo de partilhar o apartamento com pessoas na mesma situação e vendo-se obrigada a levar um quotidiano de sobrevivência face a um conjunto de carências de toda a ordem. Mergulhada num abismo de privações, vítima do preconceito e das injustiças de uma sociedade rude e insensível, resiste como pode à solidão e alienação que ameaçam a sua integridade e o seu sentido de identidade.

“On Falling” pode ser visto como sendo sobre uma mulher em busca do seu lugar num meio frio e hostil. Embora a sua solidão esteja no centro das atenções, Aurora parece mais preocupada em encontrar formas de melhorar a sua existência do que em estabelecer ligações com os outros. Num trabalho marcado pela impessoalidade, não é a vontade de se agarrar emocionalmente às pessoas que a move, até descobrir da pior forma a importância de ser prestável com os outros e de ter alguém em quem confiar. Para pessoas na situação de Aurora esta é uma quase necessidade, já que viver num país estranho nunca é fácil e poder contar com um ombro amigo faz toda a diferença. Por outro lado, o filme parece dirigir-se àqueles que veem nos imigrantes o inimigo, esquecendo-se das condições deploráveis em que geralmente vivem, do trabalho que fazem e que mais ninguém faz e dos impostos que pagam como os demais. Eis uma forma inteligente de desmontar os discursos ignorantes daqueles que erguem como bandeira o facto de não haver mais espaço para mais pessoas.

Filmado de forma realista, com um forte cunho documental, “On Falling” tira o melhor partido das paletas de cores sombrias da cidade de Glasgow, combinando-as na perfeição com os cenários estéreis dos locais de trabalho e dos espaços que as pessoas habitam, em ambientes que são causa e efeito de estados de espírito que reflectem o abandono, a depressão e o desespero. Para quem conhece a obra de Laura Carreira, nomeadamente os excelentes “Red Hill” e “The Shift”, curtas-metragens multi-premiadas e que passaram no Shortcutz Ovar com a presença da realizadora, não é novidade um filme com esta carga emocional, capaz de gerar uma forte empatia com os mais desprotegidos e de pôr o espectador a olhar de lado a sociedade britânica (os recentes “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, e “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins, já produziam efeito semelhante). Estamos perante um drama bem real, representativo da situação de uma mole imensa de pessoas em todo o mundo e que é um grito de denuncia face à crueldade dos governos e das políticas anti-imigração cada vez mais restritivas.

terça-feira, 1 de abril de 2025

CONCERTO: "Radiohead Recomposed" | Orquestra de Jazz de Espinho & Mário Delgado



CONCERTO: “Radiohead Recomposed”
Orquestra de Jazz de Espinho & Mário Delgado
Direcção musical | Eduardo Cardinho e Paulo Perfeito
Auditório de Espinho - Academia
28 Mar 2025 | sex | 21:30


Radiohead. A Enciclopedia Britannica refere-os como sendo, “sem dúvida, a banda de art-rock mais bem-sucedida do início do século XXI”, acrescentando que o quinteto “produziu algumas das músicas mais majestosas - se bem que saturadas de angústia - da era pós-moderna”. Formado em 1985 em Abingdon, Oxford, o grupo era composto pelo cantor e guitarrista Thom Yorke, o baixista Colin Greenwood, o guitarrista Ed O'Brien, o baterista Phil Selway e o guitarrista e teclista Jonny Greenwood. Cultores de bandas de rock norte-americanas como os R.E.M., Nirvana, Sonic Youth ou Pixies, os Radiohead não resistiram a ir beber ao Jazz algumas das suas influências, nomeadamente a Miles Davis, Charles Mingus e Alice Coltrane. Virá daqui, pelo menos em parte, a poderosa sensação de alienação que as suas músicas provocam, as paisagens sonoras intrincadamente texturadas, os longos silêncios de alguns dos seus temas mais icónicos a trazerem com eles notas mágicas e impressivas capazes de nos alçarem no seu voo e de nos transportarem aos confins do universo.

Foram precisamente os Radiohead e a sua música a estarem na mira da Orquestra de Jazz de Espinho, fazendo deles o alvo central de um projecto diferenciador e estimulante a muitos títulos, tanto para os músicos como para o público que esgotou o Auditório de Espinho nas duas sessões agendadas. Encontrar a combinação perfeita entre o jazz e o rock alternativo terá sido o grande desafio colocado aos oito músicos a quem coube a tarefa de trabalhar os arranjos de outros tantos temas, recompondo sem nada omitir e fundindo géneros sem os desvirtuar. Nazaré Silva, José Pedro Coelho, Paulo Perfeito, Telmo Marques, Estela Alexandre, Johannes Krieger, Daniel Bernardes e Carlos Azevedo puseram mãos à obra com a mestria que se lhes reconhece, ousando desconstruir e reerguer temas de grande complexidade, num processo não isento de riscos (afinal, não é de ânimo leve que se mexe em verdadeiros ícones, como é o caso de “Just” ou “Paranoid Android”, sob pena de se ser acusado de profanação). O resultado exprime-se numa simples palavra: Notável!

Passados pelo crivo do jazz, os temas escolhidos mostraram a sua enorme plasticidade e deram-se a ver numa roupagem cheia de swing, ritmo e alegria. Ao encontro das sonoridades idiossincráticas da banda, a guitarra não poderia ficar esquecida, recaindo em Mário Delgado o convite para se juntar à Orquestra de Jazz de Espinho. Com uma carreira de quase quatro décadas, Delgado é um guitarrista com recursos e técnicas variadas na guitarra eléctrica, o que lhe vem dos diversos estilos provenientes das suas influências, nas quais o rock o jazz ocupam lugar de destaque. Isso ficou bem patente no conjunto de apontamentos solísticos de altíssimo nível, sendo muito bem secundado por uma secção rítmica fortíssima - a par de Mário Delgado, José Diogo Martins, nos teclados, revelou-se fundamental nessa fixação das sonoridades próprias dos Radiohead - e pelo trabalho contrapontístico dos metais, com destaque para o trombonista Hugo Caldeira e para o trompetista João Tavares. Mais um grande concerto com o selo OJE.

segunda-feira, 31 de março de 2025

TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”



TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”
Com | Rosa Bela Cruz, Ana Ferreira, Luís de Matos, Domingos Silva e Grupo Vocal Canto Décimo
Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense
29 Mar 2025 | sab | 16h00


“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
José Saramago, epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira

No trabalho artístico de Rosa Bela Cruz, são várias as particularidades que prendem a nossa atenção. Ainda despojado do ardor crítico, um primeiro olhar abarca a delicadeza do traço, a suavidade da cor, a harmonia do conjunto. Alvo preferencial da atenção da artista, as mulheres figuram nas suas obras em graça e beleza: Sedutoras, ousadas, irreverentes. Ao mesmo tempo frágeis, delicadas, inquietas, angustiadas. Para as mulheres de Rosa Bela Cruz, a certeza de si e do lugar que ocupam está longe de ser chão seguro. A pintura da artista desdobra-se. Como uma moeda, mostra as duas faces. Fosse ela pau e ameaçar-nos-ia com os seus dois bicos. Perante isto, o olhar apura-se. Percorre o quadro e encontra nele matéria de constante desassossego. Detém-se nos olhos das mulheres que, como um íman, o atraem. Olhos grandes e vivos, que se movem incessantemente. Olhos que nos seguem para onde quer que vamos. Nesse encontro de olhos que nos olham, somos invadidos pelo desconforto. Neles encontramos a urgência do muito que têm para contar.

Aproximamo-nos e a inquietação adensa-se. Reparamos que são delicadas as rendas que velam rostos e corpos, que sobre eles fazem pousar as marcas do charme discreto e do bom gosto. Rendas que não são suficientes para disfarçar essas outras marcas, mais fundas e terríveis, da adversidade, da mágoa, do desprazer. Marcas de uma bofetada seguida de um pedido de desculpa, de um murro na boca seguido de cem pedidos de desculpa, de uma facada no rosto seguida de mil pedidos de desculpa. Como se o mal pudesse ser apagado com palavras bonitas. Entre “espaços de pensar” e “teias de sentir”, abraçamos Rosa Bela Cruz neste seu “eterno retorno” a Ovar. Abraçamos igualmente as mulheres que nos trouxe, todas as mulheres. Mulheres como Ana Luísa Amaral, Sophia de Mello Breyner, Adília Lopes, Maria Teresa Horta ou Florbela Espanca que, na verdade da sua poesia, continuam a mostrar-se decisivas na luta contra o preconceito e a discriminação que enfermam uma sociedade conservadora e machista. Arautos da mudança, elevam-se à condição de sujeitos primordiais num contexto de afirmação de princípios e valores que as distingue como sublimes e únicas.

Pudemos olhar e vimos. Pudemos ver e reparámos. Sendo as mesmas, as mulheres de Rosa Bela são agora diferentes. Os tons sombrios quase desapareceram dos seus rostos, os véus são cada vez menos um resguardo, os queixos ergueram-se e as poses fizeram-se causa e razão, vigor e altivez. Não há dúvida de que estas mulheres mudaram. A sua atitude mudou. Também a sua vontade e a sua confiança. São mulheres mais conscientes dos seus direitos, mais fortes, mais audazes. Logo, mais elegantes e graciosas, mais harmoniosas, mais belas. Rosa Bela Cruz tem o dom de, com a sua arte, expressar as emoções mais vivas no que o “ser mulher” tem de íntimo e precioso. Lançamos um último olhar a cada trabalho. Lá encontramos, ainda, uns olhos enormes e penetrantes que parecem não nos querer largar. Eles dizem-nos que há ainda caminho a percorrer no que aos direitos das mulheres e à igualdade de género diz respeito. Mas o olhar destas mulheres é, hoje, o olhar que vê.

[Texto inserto no Catálogo do projecto de Rosa Bela Cruz, “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”]

domingo, 30 de março de 2025

EXPOSIÇÃO: “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno” | Paula Roush



EXPOSIÇÃO: “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno”,
de Paula Roush
(In)visibilidades e Derivas
MIRA Galerias | MIRA FORUM
08 Mar > 03 Mai 2025


“Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno” emerge do cenário mutável de Campanhã, onde infra-estruturas industriais abandonadas estão a ser apagadas e reaproveitadas para empreendimentos imobiliários de luxo. Através de uma abordagem experimental à criação de imagens, o projeto questiona quem e o que pode habitar estes espaços de transição. Vagueando pelas ruínas de antigas fábricas têxteis e pelos terrenos em redor da antiga central eléctrica, Paula Roush recolheu plantas com o intuito de criar um herbário do antropoceno, utilizando processos fotográficos baseados em energia solar, como cianotipias e fitogramas. A pesquisa estendeu-se ao Arquivo Histórico do Porto, ao encontro de plantas arquitectónicas de armazéns e centrais hidroeléctricas, a fontes digitais como blogues dedicados à arqueologia industrial e à memória urbana, bem como a pesquisas académicas encontradas nos portais da Universidade do Porto, onde materiais industriais obsoletos e documentos históricos circulam como vestígios da desindustrialização.

O recurso a um conjunto de agentes algorítmicos permitiu a geração de bio-imagens que funcionam como uma extensão especulativa desta pesquisa. As informações recolhidas foram codificadas em prompts para gerar novas imagens, ampliando a leitura do território através de processos de inteligência artificial. Estas imagens serviram também como base para o desenvolvimento de novos têxteis, produzidos em fábricas de impressão digital, acrescentando uma nova camada de materialidade e circulação aos vestígios de Campanhã. Estas imagens desafiam a contínua reinscrição do vazio industrial - através do abandono, da especulação imobiliária e da estetização da ruína - e expõem a abstração da paisagem como um processo activo de exclusão. A lógica do vazio não se limita à ausência material, mas à sua reconfiguração como mercadoria, potencial de lucro e superfície estética. No entanto, a ruína não é neutra. Estes espaços têm as marcas da exploração laboral, da degradação ambiental e da resistência.

Se a abstração apaga as histórias dos lugares para as reinscrever como imagens especulativas de um futuro lucrativo, este projecto procura devolver o corpo e a memória ao que foi silenciado. Ao recuperar as ruínas como locais de memória e persistência, “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno”' traz as histórias apagadas para o centro da narrativa, situando as transformações de Campanhã num contexto mais amplo de colonialismo, capitalismo e deslocação. Assim, talvez este projecto seja, também, sobre a escuta do visível, sobre a possibilidade de perceber o que já não soa, mas ainda vibra. Sobre um arquivo que não se fecha no silêncio, mas que continua a gerar novas frequências - como as ruínas, que nunca são vazias, mas habitadas por histórias, ecossistemas e resistências que se recusam a desaparecer. Contando com colaborações várias, nomeadamente ao nível da curadoria de conteúdos, agentes algorítmicos, cianotipias e instalação, entre outras, este é mais um projecto de enorme impacto visual e significado patente no MIRA, que pode ser visto até 03 de Maio.

[Texto baseado na Folha de Sala da Exposição e na página da artista, em https://www.msdm.org.uk/project/olho-verde-outro-azul-herbarium-for-the-anthropocene-installation]

sábado, 29 de março de 2025

CONCERTO: Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho



CONCERTO: Ensemble Vocal EPME
Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho
Direcção musical | Luís Castro, Miranda Sinani
Com | Luís Duarte (piano)
ReabilitaSons 2025
Centro de Reabilitação do Norte
27 Mar 2025 | qui | 17h30


Foi um final de tarde feliz, aquele vivido no Centro de Reabilitação do Norte na passada quinta feira. Perante um numeroso público, que encheu de alegria e sorrisos o espaço luminoso onde decorreu o evento, o Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho teve para oferecer um programa dedicado à voz e à expressão vocal, tanto numa vertente próxima do canto popular e, em particular, dos cânticos de trabalho, quanto numa vertente mais lírica, com abordagens a vários géneros musicais, em particular à música clássica. Integrando o ciclo “ReabilitaSons”, conjunto de cinco momentos musicais do qual este foi o segundo (depois do Combo de Jazz, no passado dia 06 de Março), o concerto juntou à vertente de saúde, pela importância das actividades deste âmbito no processo de reabilitação dos doentes, as componentes artística e educacional, reunindo um coro de quinze alunos da EPME, sob a direcção musical de Luís Castro e Miranda Sinani e com acompanhamento ao piano de Luís Duarte.

Os dois temas que abriram o concerto levaram os presentes numa viagem à Bulgária, ao encontro da sua tradição vocal e dos seus executantes, geralmente conhecidos por vozes búlgaras. “Bre Petrunko” e “Vecheryai, Rado” mostraram um conjunto de vozes de grande harmonia, capazes de transmitir as particularidades de uma música muito influenciada pela história trácia, otomana e bizantina da Bulgária, com os seus maravilhosos timbres inconfundíveis, escalas modais, ritmos irregulares e harmonias dissonantes. O momento teve o condão de conquistar o público e predispô-lo para os registos a solo ou em duo que se seguiram, com acompanhamento do piano. Numa bonita voz, Joana Pereira trouxe-nos “Heart of Stone”, um tema composto por Toby Marlow para o musical da Broadway, “Six”, viagem de cinco séculos entre a Inglaterra dos Tudor (o título remete para “As Seis Mulheres de Henrique VIII”) e os actuais ícones da pop.

Guilherme Oliveira mostrou-se convincente nas interpretações de “La Conocchia”, de Gaetano Donizetti, “Die Nacht”, de Richard Strauss e “Quero Cantar, Ser Alegre”, de Francisco de Lacerda, temas integrantes dos repertórios de alguns dos mais importantes cantores líricos do mundo e que, no Centro de Reabilitação do Norte, foram merecedores de vivos aplausos. Em crescendo, Polina Arkhanhelska interpretou, com grande segurança, “Mandoline”, de Fauré, para de seguida protagonizar, com Guilherme Oliveira, o mais aclamado momento do concerto, graças à apaixonada interpretação de “Love Unspoken”, da opereta “A Viúva Alegre”, de Franz Lehár. O coro voltou ao palco para novo tema do cancioneiro tradicional búlgaro, “Dilmano Dilbero”, as sonoridades arrebatadoras a tomarem de novo conta dos presentes. A fechar o concerto, a escolha recaiu sobre um tema da nossa tradição, o “Coro das Maçadeiras”, com a expressão corporal e a percussão a juntarem-se às vozes, num final enérgico e particularmente apelativo. Bravíssimo!

sexta-feira, 28 de março de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93
Com | Vicente Niró, Marta Morais Miranda, Benjamim Quadros e Costa
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Mar 2025 | qui | 21:30


Além de serem nomes maiores da sétima arte, o que têm em comum Lawrence Olivier, Elia Kazan, Orson Welles ou Akira Kurosawa? A resposta está na ligação entre Cinema e Teatro, assente no grande número de filmes que realizaram e que trouxeram o palco para o grande ecrã. No Dia Mundial do Teatro, o Shortcutz Ovar quis homenagear todos os cineastas que, mais ou menos livremente, transpuseram o teatro para os seus filmes, e em particular Manoel de Oliveira, numa altura em que se cumpre uma década sobre o seu desaparecimento. O momento, assinalado com a imagem projectada do realizador, deu a escutar algumas palavras proferidas durante a entrega da Palma de Ouro de Honra de Cannes, com Oliveira a arrancar risos na plateia ao dizer “finalmente” e a confessar: “Cresci ao longo de um século, mas hoje sei que foi o cinema que me fez crescer”. Viva o Teatro. Viva o Cinema. E viva o Shortcutz Ovar que voltou a chamar à belíssima Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios um numeroso público, numa sessão em que a casa foi o eixo à volta do qual se expandiram as três curtas do programa. Três propostas narrativas que, além de olharem a casa dos mais variados ângulos, tiveram em comum o facto de serem primeiras obras, dando a conhecer um leque de realizadores talentosos e criativos, de quem muito há a esperar no futuro.

Este segunda sessão da presente temporada teve o seu início com “T-Zero”, uma obra de imagem animada assinada por Vicente Niró. O filme acompanha o dia a dia de uma agente imobiliária que tenta persuadir os clientes a alugar apartamentos pouco maiores que caixas de sapatos, mesmo que isso signifique despejar os inquilinos que lá vivem. Em “T-Zero”, a casa é mera mercadoria, sujeita à especulação imobiliária e às leis do mercado. Aqui, a cidade é o Porto e o acelerado processo de transformação que sofre, com uma chamada de atenção para fenómenos como a gentrificação, a turistificação e a perda de identidade. Juntando a sua voz à daqueles que gritam “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, Vicente Niró trabalha uma ficção com um forte cunho documental, na qual insere um conjunto de marcas identitárias que vão dos sons da cidade e da pronúncia do norte aos edifícios emblemáticos, às ruas estreitas e às nesgas de rio que a espaços se avista. Também ele vítima da precariedade - “vivo numa casa má, mas com janelas boas” -, o realizador oferece-nos um trabalho de animação com uma forte carga simbólica, convidando o espectador a olhar uma cidade que melhora para os turistas, à custa de quem sempre lá viveu. E deixa uma interrogação: “Um destes dias, quem é que vai fazer o S. João?”

“A Casa Imaginada”, de Marta Morais Miranda, foi “o irmão do meio” da sessão. Partindo de uma ideia de confinamento, a realizadora oferece-nos a visão daquilo que a casa representa em matéria de segurança e conforto, através do que decidimos ou não guardar no seu interior. Afastando-se da casa enquanto estrutura física, o documentário faz recair a atenção sobre o quotidiano e as finas camadas que se vão acumulando nos objectos, olhando-os de um ponto de vista sentimental. Nos gestos, nos cheiros, na loiça espalhada sobre a banca, nas marcas de uma parede ou numa toalha estendida sobre a relva, as casas anteriores invadem as novas casas, tomam conta delas. Entre o interior e o exterior, o individual e o comunitário, o permanente e o transitório, “A Casa Imaginada” faz um apelo à memória no esforço de enumerar o que há de comum aos lugares onde vivemos, lembrando um passe-partout, um candeeiro, um bibelô, um ou outro livro, o lugar que ocupavam nas casas anteriores e porque razão estão aqui de novo, qual a sua dimensão emocional. Neste contexto, há uma pergunta que pode ser feita, como se de um desafio se tratasse: E se tivéssemos de abandonar rapidamente a nossa casa, apenas com uma mochila às costas, o que poríamos lá dentro?

Enfim, “Maria, Maria”, de Benjamim Quadros e Costa, o filme que encerrou a sessão, reforçou a dimensão humana do espaço da casa. Convidando-nos a viajar até Escalos de Baixo, no distrito de Castelo Branco, o realizador apresenta-nos a sua avó, Maria João Pires, e abre-nos as portas do Centro de Artes de Belgais, laboratório de experiência das artes e de aprendizagem musical, um lugar de liberdade e “um acto de rebeldia”, de acordo com a pianista. Do acto da criação à partilha de emoções e sensações que a música proporciona, tanto a quem a ouve como a quem a interpreta, “Maria, Maria” explora algumas das facetas menos visíveis de uma das mais notáveis pianistas do mundo e uma das figuras mais relevantes da cultura portuguesa. Mas se o documentário é sobre a artista e o seu espaço íntimo, há nele uma segunda camada, não menos relevante, que reside na relação entre um neto e a sua avó, nos vínculos de amizade e afecto que transcendem o tempo e conectam diferentes épocas e vivências, nos valores e princípios transmitidos, a par das histórias familiares, usos e costumes. Deste ponto de vista, o filme acaba por dizer mais sobre o neto do que sobre a avó, apesar das belas reflexões que nos deixa, uma das quais encerra o filme de forma muito bela. Não é uma interrogação, antes uma afirmação: “É preciso deixar que as coisas aconteçam”.

quinta-feira, 27 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: "Peregrinação" | Graça Morais



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Peregrinação”,
de Graça Morais
Curadoria | António Meireles
Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo
01 Mar > 01 Jun 2025


Graça Morais é uma pintora prodigiosa. Reconhece-se ao conjunto da sua obra o carácter universal e humanista dos grandes criadores, no percurso que iniciou há cinquenta anos. Este percurso cumpre-se como uma peregrinação, em que caminho e caminhante se fundem nos significados gerados e sobretudo, nas inquietações e questões desencadeadas, e nas quais, como cidadãos com espírito crítico e criativo, nos (re)conhecemos. Que exposição é esta que se abre a cada visitante que a percorra? A “Peregrinação” do título não é palavra vã e oferece-se como eixo que estrutura a selecção das obras e o desenho de uma exposição que percorre etapas significativas da vida e obra de Graça Morais. Aqui se encontram obras marcantes que se assumem como marca identitária da artista, pela visibilidade, destaque e materialização de séries temáticas ou áreas de intervenção, mas também obras com pouca exposição pública, porque seguiram outros rumos de menor visibilidade, mas que não deixam de ser, igualmente, marcantes. Umas e outras mostram a enorme capacidade de criação da pintora, rejeitando qualquer receituário de fácil produção e recepção, em favor da integridade do que encontra a ser pintado, como da própria pintura, e do que, ultrapassada a camada superficial, é mais profundo e verdadeiro.

Relacionando-se intimamente com o espaço de exposições da Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo, nas suas três salas e dois andares, abre-se um percurso que tem início na Sala Aureliano Lima. Com obras que se centram nas séries “A Caminhada do Medo” e “As Sombras do Medo”, fortes nos temas que abordam, assim como na expressão do pastel seco com cores saturadas, tem destaque a obra “A Guerra”, de 2003. Graça Morais pinta os inevitáveis resultados de conflitos e guerras, que, independentemente dos campos beligerantes nos muitos espaços e tempos em que têm ocorrido, infligem os maiores danos nas franjas mais frágeis das populações, invariavelmente mulheres, crianças e idosos. Através da estreita escada, acede cada visitante com moderado esforço físico ao piso superior, à Sala Branca. Esta ascensão acompanha um percurso das obras, que dos conflitos e guerras de âmbito mundial e suas consequências das obras do piso inferior, nos traz para o contexto de território de montanha e para a construção das comunidades, sempre em diálogo com o mundo global, que parecendo-nos exterior e distante, tem na obra de Graça Morais importante reflexão sobre as conexões estabelecidas com os mundos locais. É desta conexão exemplo a pintura que abre este espaço, intitulada “20 de Janeiro de 2017”, data da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América no que foi o seu primeiro mandato.

A Sala Branca compreende importantes etapas da peregrinação-percurso que a artista nos oferece. As paisagens transmontanas, que nas obras de Graça Morais tantas vezes se materializam nos rostos e corpos de quem as trabalha numa atividade rural que ainda é centro da vida deste território, surgem fortes, maciças e assumindo a sua condição de personagens em histórias que constroem o património e identidade das comunidades. A Sala Negra, que sendo escura de luz e cor, é noite profunda no interior do nosso ser, oferece um olhar perscrutante para o interior de cada visitante. As obras expostas nesta sala são sobretudo desenhos, de construção e expressão directas, com uma crueza que não é chocante, mas tocante, porque removendo metaforicamente a camada da carne, entre fundo na estrutura do ser. A obra “Jorge III”, belíssima pintura de técnica mista com tratamento formal e cromático tão sumário quanto completo e expressivo, aborda uma situação de bullying que se verificava na aldeia da pintora, que condoendo-se da situação, agiu, tanto no sentido do seu fim, como assegurando-se da saúde e bem-estar de quem não tinha possibilidade de os ter. São obras fortes as expostas. Não hesitando abordar temas que são difíceis, partilham inquietações e questões fundas que (co)movem Graça Morais e que tocam o nosso mais íntimo, fazendo, através desta exposição, na nossa própria peregrinação, abrirem-se campos de significação e de acção que conferem uma maior importância a cada novo dia.

[Escrito a partir da Folha de Sala da exposição]

quarta-feira, 26 de março de 2025

LIVRO: "Kairos" | Jenny Erpenbeck



LIVRO: “Kairos”, de Jenny Erpenbeck
Texto original | “Kairos”, 2021
Tradução | António Sousa Ribeiro
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2024


“A ordem é o medo da desordem. Quer dizer que é medo. Também o seu medo. Será que, porventura, criou simplesmente para si uma imagem de espelho mais bela na carne jovem dela? Alguém que, na sua solidão, pode responder-lhe? Ou foi realmente por amor que partilhou tudo aquilo com ela? De todo o modo, fora ela a razão do seu banimento. Amor, amor, amor, diz ele de si para si, de súbito, a palavra parece-lhe absolutamente oca”.

Na estrutura semântica, temporal e simbólica das civilizações modernas, empregamos geralmente uma só palavra para definir a noção de tempo. Na antiga Grécia, porém, eram duas as palavras para o tempo: “chronos” e “kairos”. Enquanto a primeira se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede), Kairos possuía uma natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. A mitologia mostra-nos Kairos, “o deus do momento oportuno”, com uma madeixa de cabelo na testa, que é a única forma de ser agarrado. Vemos que a parte de trás da sua cabeça é lisa e sem cabelo, e não há onde o agarrar. Quando passa perto de nós, deslizando sobre as suas pernas aladas, percebemos que se abrem três possibilidades. Ou não o vemos, o que simplifica as coisas. Ou vemo-lo, mas não fazemos nada, o que acaba por ir dar ao mesmo. Ou então, ao passar, estendemos a mão e “agarramos a ocasião pelos cabelos”, arcando com as consequências.

“Kairos”, romance de Jenny Erpenbeck que acaba de ser galardoado com o International Booker Prize 2024, conta a história de Katharina e de como, casualmente, conheceu Hans. Ela tem 19 anos e é estudante, ele é escritor, tem 53 anos e é casado. O encontro tem lugar num dia de chuva copiosa, a 11 de Julho de 1986, num autocarro na parte de Berlim ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Passarão os anos seguintes juntos, vivendo de início uma relação apaixonada, mas que muito rapidamente irá decair a ponto de se tornar doentia. Uma relação na fronteira entre a verdade e a mentira, a obsessão e a violência, o ódio e a esperança, à semelhança dessa Estação Friedrichstrasse de onde partem os comboios com destino ao Ocidente, que Katharina vê da janela do seu apartamento e sobre a qual se interroga se não será, no rigor com que faz a ponte entre dois blocos antagónicos, capaz de conter dois tempos diferentes, dois presentes concorrentes, duas realidades quotidianas, uma servindo de inferno para a outra.

O espaço onde a acção decorre e o ambiente social e político não são puras metáforas. O declínio do regime, impulsionado pela Perestroika, era então uma realidade palpável e levantava as maiores dúvidas no Bloco de Leste. Jenny Erpenbeck socorre-se dessa verdade histórica para estabelecer um paralelismo com a vida amorosa e descrever os diferentes aspectos da felicidade através do percurso dos dois amantes. Em poucas palavras, esta é a história de um grande amor e da sua queda, mas é também a história da dissolução de todo um sistema político, o que conduz a uma questão muito simples: Como é que algo que se afigura certo e firme de início, pode vir a revelar-se tão errado? Dona de uma escrita original, extraordinariamente precisa e atenta ao detalhe, a autora mergulha o leitor na intimidade do casal, obrigando-o a seguir uma linha turtuosa de fortes emoções, sem lhe exigir que tome partidos. Nas constantes interrogações que cada um se coloca reside o fascínio do livro, ele próprio um modelo de grande literatura cuja oportunidade importa agarrar. Ainda que pelo cabelo.

terça-feira, 25 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: "Riscos Calculados" | Zé Maia



EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: “Riscos Calculados”,
de Zé Maia
Biblioteca Municipal de Ovar
28 Fev > 26 Abr 2025


Podemos falar de uma actividade em expansão ao abordar o assunto “Desenho Urbano”, essa prática artística que vem chamando às ruas de cidades e vilas um número crescente de praticantes. Focados na arquitectura ou em cenas do quotidiano, nas pessoas que tomam o seu café numa esplanada ou num gato que dormita num beiral, os “urban sketchers”, como são universalmente conhecidos, mostram-se particularmente atentos, metódicos e expeditos na construção dos seus trabalhos, conectando mundos interiores e exteriores com engenho e arte, assim construindo narrativas de inegável valor educativo e artístico. Individualmente ou em conjunto, no respeito pelo seu próprio estilo e pelos materiais escolhidos para levar a cabo a sua actividade, replicam com minúcia as cenas que testemunham, fazendo de cada obra o registo muito especial de um tempo e de um lugar específicos. Depois, tirando o melhor partido das redes sociais, partilham os desenhos produzidos, dando a ver ao mundo verdadeiras pérolas.

José António Maia de Almeida, conhecido como Zé Maia, não será o único desenhador urbano da cidade de Ovar, mas é, seguramente, o mais carismático. Ao talento inato, alia a paixão pela sua Ovar natal, olhando com renovada dedicação a forma como a cidade cresce e se transforma. Mas o seu olhar vai mais longe, ultrapassa as fronteiras do concelho, poisa na fachada de uma igreja em Cacela Velha ou nos muros de uma fortaleza em Sesimbra, no edifício que acolhe a Biblioteca Municipal de Vouzela ou numa vista de S. Jacinto. Deixemos que a imaginação voe ao encontro do artista, sentado no seu banquinho desdobrável ali na Rua Dr. Manuel Arala, na frontaria daquele que foi o Café Paraíso e, mais tarde, a Relojoaria Ovarense. Sentemo-nos também e vejamos como poisa no colo o caderno de desenho e dispõe à mão o lápis, a borracha e a caneta com tinta indelével. O estojo com tintas de aguarela e os pincéis aguardarão a sua hora, bem como o carimbo com a efígie do seu pai, a partir de um desenho que dele fez em 1982 e que é a sua forma simples de o homenagear. Para já, vemos como nasce o esboço dos edifícios, com o desenho a lápis e os primeiros contornos a tinta carbono (indelével); de seguida, intensificam-se os contornos e o desenho ganha detalhe, cresce. Com as primeiras “aguareladas” entra-se na fase da cor e a magia acontece.

Se conseguiu imaginar Zé Maia a sós com os seus rabiscos, agora tem a possibilidade de apreciar este trecho particularmente belo de uma das ruas centrais de Ovar na exposição intitulada “Riscos Calculados” e que ocupa a galeria de exposições temporárias da Biblioteca Municipal de Ovar. Lá encontrará um conjunto de olhares sobre a nossa frente citadina, mas também de um Ovar rural, do interior da Igreja Matriz a um largo de Sande. Particularmente belos são três trabalhos que retratam outras tantas Alminhas, assim como um pormenor do final da Rua Castilho, muito próximo das traseiras da Capela dos Campos. Zé Maia manifestou desde sempre interesse pelas diversas formas de Arte, muito por influência paterna - o pai, José Augusto de Almeida, foi fundador e primeiro director do Museu de Ovar. Por essa razão, nunca descarta a possibilidade de levar à prática a sua veia criativa, nomeadamente o “urban sketching”, tendo no seu caderno, lápis, tintas e pincéis, uma companhia constante. Regressa agora à Biblioteca com este novo conjunto de trabalhos, alguns deles inéditos, e outros que, pertencendo a colecções particulares, só tinham sido divulgados através das redes sociais. Para ver até 26 de Abril.