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quarta-feira, 20 de novembro de 2024

CONCERTO: Brandee Younger



CONCERTO: Brandee Younger
Com Rashaan Carter, Allan Mednard
Misty Fest 2024
Auditório de Espinho – Academia
16 Nov 2024 | sab | 21:30


Evento de referência no panorama nacional de festivais de Outono, o Misty Fest continua a ter em Espinho um dos seus polos anuais de programação. Nesta 15ª edição, a aposta recaiu na norte-americana Brandee Younger, jovem artista conhecida por ampliar as fronteiras do som da harpa rumo a géneros tão diversos como o jazz, a soul ou o funk. Acompanhada pelo baixista e contrabaixista Rashaan Carter e pelo baterista Allan Mednard, Younger apresentou-se perante um Auditório com lotação esgotada, correspondendo às expectativas pela espontaneidade e presença fortemente empática e pela qualidade da sua música. O público foi brindado com uma selecção de temas do seu mais recente álbum de originais, “Brand New Life”, mas também com um conjunto de releituras de composições de ídolos confessos, casos de Stevie Wonder e Marvin Gaye, mas sobretudo de Alice Coltrane e Dorothy Ashby, dois nomes consensuais no topo da curta lista de harpistas de jazz.

A harpa está longe de ser um instrumento comum neste género musical e a prova é que esta foi a primeira vez que assisti ao concerto de um agrupamento de jazz liderado por uma harpista. Revelando um conhecimento profundo do instrumento e sabendo tirar partido das suas múltiplas potencialidades, Brandee Younger trouxe-nos uma música envolta em sonoridades melódicas e contidas, nisso sendo particularmente bem acompanhada por Carter e Mednard. “Brand New Life”, o tema que dá nome ao álbum, deu o mote para uma viagem feita de serenidade e harmonia, que se prolongaria por uma hora e um quarto de boa música. Seguiu-se “Unrest”, um tema original em dois movimentos, com a artista a explicar ter sido a música escrita durante a pandemia e inspirada por eventos muito próximos, passados do lado de fora da sua janela. Uma música que vive de um longo e inspiradíssimo solo de harpa e que abre espaço, na sua segunda metade, ao frenesim e virtuosismo da bateria.

As músicas foram-se sucedendo e a boa disposição também - a quase loucura ao falar da comida portuguesa ou a busca de um título para uma música sem título arrancaram saborosas gargalhadas à plateia. O tributo a Alice Coltrane veio com uma balada intitulada “Turiya e Ramakrishna”, um momento profundamente meditativo e espiritual transportado na sonoridade etérea da harpa de Younger. A batida ritmada de “Spirit U Will” ofereceu um delicioso momento de jazz, ao qual se seguiu “Untitled Song” (sugestão de um assistente na plateia), um novíssimo tema pleno de ressonâncias andinas. “If It's Magic”, de Stevie Wonder, homenageou não apenas o seu autor mas também Dorothy Ashby, já que foi ela a responsável pelos momentos de harpa na gravação original de Wonder, do álbum “Songs in the Key of Life”. O concerto terminou com “I Want You”, desse ícone da soul que é Marvin Gaye, em mais um momento revelador da magia que o dedilhar ondulante das cordas de uma harpa pode espalhar.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

CONCERTO: Eduardo Cardinho | “Not Far From Paradise”



CONCERTO: Eduardo Cardinho | “Not Far From Paradise”
Com José Diogo Martins, João Mortágua, Francisco Santos, Diogo Alexandre, Iuri Oliveira
Novembro Jazz 2024
Casa da Criatividade
15 Nov 2024 | sex | 21:30


Quase a fechar o ano, o Auditório da Casa da Criatividade volta a ser palco do Novembro Jazz, festival cuja programação abarca, em seis dias de intensa actividade, oito concertos que dão prova do que de melhor se faz no panorama do mais jovem e fresco jazz português. À aposta no talento nacional, o Novembro Jazz acrescenta a vertente da ligação à comunidade, oferecendo a oportunidade de descobrir a beleza da liberdade sofisticada que existe no Jazz, nas suas mais variadas dimensões. Complementarmente, assistimos ao cruzamento de parcerias de elevado potencial que se traduzem noutro tipo de iniciativas: feiras de vinil e djsets, apresentações de jovens músicos locais em combinação com jovens ilustradores que mostrarão o seu trabalho em palcos inovadores, e ainda uma distinta exposição de fotografia de Márcia Lessa, focada no talento feminino no jazz, num conjunto de belíssimas imagens que podem ser vistas em dois espaços distintos de S. João da Madeira [o programa desta sexta edição do festival pode ser consultado AQUI].

Na noite da passada sexta-feira, as atenções centraram-se em Eduardo Cardinho e no seu mais recente álbum de originais, “Not Far From Paradise”, naquela que foi a última etapa da digressão que, desde Julho passado, levou o músico e os seus companheiros de estrada a percorrer o país de Norte a Sul. No palco da Casa da Criatividade o vibrafonista não esteve sozinho, apresentando-se ao lado de José Diogo Martins (teclados), Iuri Oliveira (percussões), Diogo Alexandre (bateria), Francisco Santos (baixo eléctrico) e João Mortágua (saxofone alto). E foi justamente do saxofone que surgiram as primeiras notas de emoção, com Mortágua a tirar o melhor partido das suas qualidades de intérprete ímpar, da sua energia e talento, transformando-os numa música com uma força enorme, desafiante e entusiasmante ao mesmo tempo. Por seu lado, Eduardo Cardinho ia mostrando o porquê de ser um dos músicos mais criativos da sua geração, encetando com José Diogo Martins e João Mortágua diálogos profícuos que se estenderiam a toda a secção rítmica. O público, esse, ia reagindo de forma intensa e retribuía com aplausos vivos a notória qualidade interpretativa de cada tema.

Depois de “It Was Just a Dream”, tema de abertura do concerto, “Anxiety” constituiu um grande momento de jazz, o casamento perfeito entre ritmo e harmonia, o virtuosismo de Cardinho a vir à tona em diálogos enérgicos ou em apontamentos solísticos de extraordinária qualidade. A variedade de ambientes sonoros viria a constituir-se como uma das grandes marcas do concerto, com particular destaque para os ritmos brasileiros que souberam acrescentar novas texturas e maior intensidade e beleza. Cadinho onde se fundem as sonoridades mais diversas, o vibrafone foi pássaro em cujas asas o público se deixou levar, ao encontro de exóticas e muito belas paisagens. “November 17th” (o título remete para o dia em que o avô de Cardinho faleceu) e “Life Contemplation” foram duas viagens suaves, em contraciclo com a vertigem de “Distorted Thoughts”, a arte do improviso ao serviço da música e dos músicos. O regresso à “normalidade” veio com “The Beauty of Simple Things” (notáveis as variações de género no seio da própria música), que “Hope”, um tema melodioso e tranquilo, reforçaria. A fechar o concerto, “Jungle Bees” foi a prova do real valor, tanto do todo quanto das partes. Uma grande noite de jazz.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Take a Look [Muros / Janelas / Paredes e… Palavras]”



EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Take a Look [Muros / Janelas / Paredes e… Palavras]”,
de Eduardo Verde Pinho
Centro de Artes de Ovar
12 Out > 30 Nov 2024


Sempre que passo sob o viaduto da A25 onde vejo escrito, de forma tosca, “buongiorno principessa”, não consigo deixar de pensar no quanto de irreverência, mas também de beleza e poesia, se abriga em duas simples palavras ali deixadas na forma de arte. Esta mensagem de que “a vida é bela” está consistentemente espalhada pelas nossas cidades - das palavras escritas a lapiseira na porta de uma casa de banho, aos murais coloridos que cobrem as laterais de um prédio de cinco andares -, trazendo asneirada à boca de certos políticos e o gáudio a quem faz da subversão um gesto artístico. Do mais explícito ao mais subliminar, a semiótica urbana impõe-se no nosso quotidiano, afirmando-se como uma forma de comunicação plena de originalidade, subtileza e pendor artístico. É isso que Eduardo Verde Pinho nos vem lembrar em “Take a Look [Muros / Janelas / Paredes e… Palavras]”, espécie de resumo / retrospectiva de parte da sua obra produzida nas últimas duas décadas, correspondente àquilo que o artista designa por “séries urbanas”.

Ao longo do tempo, em diferentes momentos, a cidade escreve na sua pele, tatua-se. Ora são os grafiteiros que tentam ser artistas; ora são os namorados apaixonados que lá deixam as juras; depois vem aquele que quer gritar ou contar um segredo a ninguém. E assim se vão fazendo as paredes, a várias mãos, com diferentes almas e vontades, aparentemente sem que nada as una, cada uma com o seu pecado (ira, preguiça, muita luxúria, inveja de não terem museu). É então que por elas ao passar, o artista rasga da parede um quadrado, um retângulo (como um fotógrafo que retalha o mundo), pondo-o debaixo do braço e levando-o consigo para o mostrar noutra parede, mais erudita, submetendo-se ao olhar crítico dos que amam a “arte fina”. Estes quadrados, estes retângulos, são bocados de cidade(s) que também podem caber numa tela, da mesma forma que nela podem caber os artistas do artista e o seu (mental) banco de imagens, dos tcp para 5ª à banana do Warhol, dos quatro de Liverpool à paleta de Vermeer.

Em Eduardo Verde Pinho, os muros tanto dividem quanto unem: Ora assumem a sua função primordial enquanto elementos de fronteira, ora se afirmam como folhas nunca brancas onde a cidade escreve e comunica; ora são suportes para cartazes onde se perpetuam os acontecimentos, ora deixam ver rasgões que mais não são do que a prova de que a cidade é (também) escultora. Ouçamos o artista: “Quando fotografava andava à procura destes planos e sobreplanos, e seus cruzamentos. Agora quando pinto (ou esta coisa que faço) sou como um deus a criá-los. Faço o que quero, abro-os, fecho-os e através deles, com Asas, viajo nas camadas do mundo. Tantas janelas e eu a tricotá-las.” Tal como os muros, também as janelas podem ser diferentes, aqui rasgões para ver para dentro e furos para ver para fora, ali portadas fechadas que prolongam as paredes e vidros que reflectem o mundo, acolá são elas os olhos da casa, “a entrada da luz e o início das viagens da alma”. Fica o convite a olhar de perto este magnífico conjunto de trabalhos. Só até 30 de Novembro.

domingo, 17 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E ESCULTURA: “O Nome Igual Nos Dois?”



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E ESCULTURA: “O Nome Igual Nos Dois?”
Paula Rego, Lourdes Castro, Maria Helena Vieira da Silva, Graça Morais, Arpad Szenes, Nikias Skapinakis, Júlio Pomar, Júlio Resende e outros artistas
Curadoria | Hugo Barreira
Casa Comum – Reitoria da Universidade do Porto
26 Set 2024 > 25 Jan 2025


No ano em que celebramos os 50 anos da revolução de Abril, a Universidade do Porto dá a ver um conjunto de obras que representam actos de resistência à opressão e ao exercício de liberdade. É o caso de António Dacosta, representado com uma peça que, embora oficialmente não tenha título, foi oficiosamente designada de “Salazar”. A espátula, objecto comum do atelier e da cozinha, surge-nos aqui com aspecto sujo e manchado, transitando entre significado e significante, objecto e representação, suscitando a ideia de uma utilização ambígua. Hugo Barreira, curador de “O Nome Igual Nos Dois?”, afirma que “este é também um dos propósitos da arte”, ou seja, “representar, poética ou literalmente”, mas também “documentar este país”, então sob os desígnios de um “tiraninho que não bebia vinho nem até café”, citando o poeta Fernando Pessoa. Encontramos este “Salazar” logo na entrada da exposição, confrontando o cabisbaixo “Homem Sentado”, de Augusto Gomes, e trazendo-nos à memória “uma resistência tímida” por parte de alguns pintores enquadrados numa estética “de pé-rapado”, como dizia o regime.

Paula Rego, Lourdes Castro, Maria Helena Vieira da Silva, Graça Morais, Arpad Szenes, Nikias Skapinakis, Júlio Pomar e Júlio Resende são alguns dos artistas representados em “O Nome Igual nos Dois?”. O título da exposição foi retirado de um quadro de Júlio Pomar intitulado “Golo”, no qual o artista presta homenagem a Manuel Brito. Entrar na primeira sala é sentir a energia do período controlado pelo regime ditatorial, ensombrado pela II Guerra Mundial. “A Europa Jaz”, obra de José de Almada Negreiros, confronta-se com a máscara africana de José Guimarães, numa alusão direta às questões pós-coloniais. Na segunda sala está representada Paula Rego, mas também Lourdes Castro com um desenho a lápis de cor sobre papel que encarna o espírito da transcendência e do feminino que domina todo o espaço. A olhar-nos lá do fundo, desde que entrámos na primeira galeria, está “Bicyclette (Shooting Color)”, a obra de Arman que se impõe na terceira sala, essencialmente dominada por questões de pintura, representação e recepção da arte.

Espécie de receituário com reflexões sobre a liberdade, tanto no sentido político, quanto no social ou artístico, a exposição apresenta obras provenientes da Colecção Manuel de Brito, referência no universo dos galeristas e livreiros em Portugal no século XX, à qual o filho, Manuel Brito, deu continuidade na presente coleção. Por aqui passam, entre outros, a Metonímia, uma receita simples com resultados surpreendentes, bastando para tal trocar uma palavra por outra, mantendo uma relação de significado. Assim, um nome como MANUEL pode ser um saboroso retrato de um coleccionador nas mãos de Vieira da Silva ou uma espátula de rapar tachos pode ser uma forma de protesto ou crítica política nas mãos de um artista (ou de qualquer um). Há, também, a Memória, ingrediente fundamental para qualquer receituário da Liberdade. Apresenta-se de forma objectiva ou subjectiva, próxima ou distanciada. Para uma mais profunda degustação das imagens, recomenda-se sempre uma consciencialização da memória e sensibilização para os contextos de produção daquelas. “O Nome Igual Nos Dois?” estará patente até 25 de janeiro de 2025 e a entrada é livre.

[Texto baseado em notícia sobre a exposição, a qual pode ser lida na íntegra em https://noticias.up.pt/2024/09/23/casa-comum-da-u-porto-expoe-receituario-para-a-liberdade/]

sábado, 16 de novembro de 2024

CONCERTO: Wadada’s Fire-Love Expanse



CONCERTO: Wadada’s Fire-Love Expanse
Wadada Leo Smith
Lamar Smith, Ashley Walters, John Edwards, Mark Sanders
Guimarães Jazz 2024
Centro Cultural Vila Flor – Grande Auditório Francisca Abreu
14 Nov 2024 | qui | 21:30


A abrir o último fim de semana do Guimarães Jazz 2024, o palco do Grande Auditório Francisca Abreu do Centro Cultural Vila Flor acolheu aquele que, pela dimensão colossal do seu percurso no jazz e pela sua inegável influência na música contemporânea, não poderia deixar de ser considerado a grande figura de relevo histórico do programa desta 33ª edição do festival. Falo de Wadada Leo Smith cuja sonoridade única do seu trompete, um som simultaneamente expressivo e depurado, e a versatilidade do seu ímpeto criativo, cristalizado numa música que flui harmoniosamente com a passagem do tempo, são características que contribuem decisivamente para o seu estatuto icónico. Um olhar mais demorado sobre o seu trajecto artístico revela-nos também, e sobretudo, um criador multi-facetado (com incursões na pintura e na escrita), atento às transformações estéticas à sua volta e permanentemente em busca de um som capaz de traduzir o “novo”.

Acompanhado pelo guitarrista (e seu neto) Lamar Smith, pela violoncelista Ashley Walters e por uma secção rítmica de contrabaixo e bateria, assegurada por dois experientes músicos britânicos, John Edwards e Mark Sanders, respectivamente, Wadada Leo Smith fez do tempo do concerto um inspirado exercício de criatividade, improvisação e liberdade. Baseando a sua performance na combinação de dois diálogos distintos - de um lado Sanders e Edwards e, do outro, Walters e Wadada Leo Smith -, o quinteto afastou-se das práticas conducentes à harmonia e ao ritmo, levando o público numa viagem ao longo do Chaco Canyon, uma paisagem desértica do noroeste do Novo México. É no vento que percorre as ruínas de uma das mais importantes áreas culturais e históricas pré-colombianas dos Estados Unidos, no intenso cheiro a terra molhada após uma rara chuvada ou na abóbada estrelada das noites no Canyon que se situa uma música feita de intriga, desafio e inspiração.

John Edwards e Mark Sanders fizeram questão de mostrar ao que vinham, abrindo com estrondo o concerto. Como seria de esperar, a plateia reagiu com expectativa em relação ao que a esperava, enquanto acompanhava a abordagem esquizofrénica do contrabaixo e a exploração caótica dos limites da bateria. Quando o violoncelo e o trompete se deram a ouvir numa deriva essencialmente clássica, o choque não poderia ser maior. Abarcar duas componentes distintas numa mesma composição e entregar-se à fruição de uma música de tons ocres e cheiros acres foi tarefa que uma parte do público não mostrou grande disponibilidade para aceitar. Levados pelo efeito contrapontístico de uma guitarra a fazer lembrar Ry Cooder e o inesquecível “Paris, Texas”, aqueles que se deixaram arrastar neste turbilhão de vento e poeira, mergulhando o olhar na miragem de um horizonte infinito, terão amado o concerto. Eu amei!

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Rêverie" | Kit Young



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Rêverie”,
de Kit Young
Encontros da Imagem de Braga
Leica Gallery Porto
Set 2024 > Jan 2025


“Rêverie” é uma palavra de origem francesa, que representa a ideia de devaneio, um estado de introspecção, uma espécie de um sonho acordado, em que a mente vagueia livremente. Como nos sonhos nocturnos, dos quais muitas vezes despertamos confusos, também neste sonhar acordado podemos confundir o que imaginamos com a realidade. Em ambos os estados, apenas o que sentimos ou as emoções que vivemos se apresentam claras na nossa memória. Talvez seja por este desprendimento relativamente ao mundano que, partindo de sítios tão distintos como Paris, Chicago, a ilha de Skye, Veneza, Nova York ou Norfolk, a visão única de Kit Young, aliada a uma estética refinada, nos transportam para uma atmosfera de mistério e beleza. Compreende-se assim que o seu trabalho, habitualmente dividido em séries, seja aqui apresentado como um único corpo, unido por um padrão visual singular e inconfundível.

O conjunto de fotografias apresentado em “Rêverie”, desafia a percepção e memória de quem as vê, levando-nos a duvidar se somos meros espectadores de uma realidade vivida por outrem, ou se somos parte integrante daquelas imagens. Subitamente é como se estivéssemos lá, com o nosso subconsciente a experimentar memórias alheias, apropriando-nos delas, inebriados pela atmosfera de sonho para a qual somos transportados. São imagens que ficam em nós. Fechamos os olhos e podemos continuar a vê-las. Não precisamos de saber o local ou a data em que foram feitas, o que está por trás delas ou qual a narrativa a que pertencem; é como se nos pertencessem, falando para o nosso íntimo de uma forma profunda e inesperada. Contrariando Roland Barthes com o seu conhecido “noéme” da fotografia “that-has-been”, a partir do qual entende a fotografia como possibilidade de revisitar um fragmento de tempo e espaço que nunca poderemos voltar a viver; encontramos no trabalho de Kit Young não uma representação de um tempo e espaço, mas sim inúmeras possibilidades. Uma espécie de portal para um lugar de liberdade, que se apresenta diferente de cada vez que o vemos, onde podemos ver algo novo e criar diferentes memórias, como se cada vez que revisitamos as suas imagens fosse a primeira.

Com uma abordagem poética e evocativa transversal a todo o seu corpo de trabalho, Kit Young não vê as suas fotografias como completas no momento de captura das mesmas. Ele é um apaixonado pelo trabalho que desenvolve na câmara escura, é lá que leva ao limite a sua técnica e mestria, o que também o faz desafiar-se constantemente, inspirando-o na busca de novos temas para as suas fotografias. Assim, ao observar o seu trabalho, tanto podemos deparar-nos com uma paisagem nebulosa e onírica, onde a natureza parece respirar em silêncio; como com o turbilhão da vida numa cidade cheia de gente, interrompido unicamente por figuras solitárias; ou até com um retrato íntimo e nostálgico, que desperta em nós curiosidade e contemplação imediatas. “Rêverie” é isto mesmo, uma dança delicada entre o real e o imaginário, onde através de momentos aparentemente não relacionados no tempo e espaço, somos transportados para um local paralelo, onde a sensibilidade única de Kit Young transforma, de forma magistral, um fugaz momento em algo etéreo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

CONCERTO: "La Capriola"



CONCERTO: La Capriola
Camille Fritsch, Charlotte Gerbitz, Dorine Lepeltier-Kovács e Manon Papasergio
Auditório de Espinho – Academia
10 Nov 2024 | dom | 18:00


Movimento de renovação nos planos económico, religioso, social, cultural e político, o Renascimento teve início em Itália no século XV e prolongou-se até finais do século XVI. A verdadeira revolução deu-se em Florença, mas cidades como Milão, Roma, Génova, Urbino, Verona, Ferrara ou Veneza conheceram igualmente um grande desenvolvimento intelectual e artístico neste período. Foi um tempo de redescoberta da Antiguidade Clássica, de desenvolvimento do conceito de humanismo e da crença na vida activa em vez da contemplativa, com o progressivo abandono de uma perspectiva teocêntrica e a adopção de uma visão centrada no Homem. Em Veneza, na Basílica de São Marcos, a Capella Marciana foi criada no início do século XIV e logo se tornou o centro da vida musical veneziana. Aqui os compositores renascentistas souberam focar-se em novas cadências harmónicas, na introdução de linhas melódicas independentes e interligadas e no embelezamento das composições com várias formas de ornamentação e suspensão, preparando o cenário para a música ousada, dinâmica e fortemente cromática do período barroco que viria a seguir.

Foi esta nova forma de conectar a música e a palavra, fazendo evoluir novas concepções musicais com o recurso a técnicas instrumentais inovadoras, que o Consort La Capriola – Camille Fritsch (voz), Charlotte Gerbitz (violino e viola), Dorine Lepeltier-Kovács (violino tenor) e Manon Papasergio (violino baixo e harpa dupla) – trouxe ao Auditório de Espinho, ao final da tarde do passado domingo. Levados numa viagem feita de ousadia e desafio mútuo, os espectadores viveram e sentiram a adequação de uma música inovadora à magnificência do templo que a viu nascer. Fazendo do concerto um tempo de convívio entre o amor e a bondade do sagrado e o escárnio e maldizer do profano, o ensemble quis demonstrar a fusão entre o humano e o divino através da música, abrindo diálogos com a Terra, a Água, o Ar e o Fogo, densos e leves à vez, e oferendo ao público novos espaços, novos contextos e novas formas de reviver o Renascimento.

Constituído por quatro talentosas intérpretes, o Consort La Capriola teve para oferecer um conjunto de peças de compositores que participaram activamente na vida musical da Capella Marciana, revisitando um período particularmente vibrante, atractivo e inovador da história da música. Dando a escutar obras de Adrian Willaert, Claudio Merulo, Andrea Gabrieli, Claudio Monteverdi, Cipriano de Rore, Girolamo Dalla Casa, Giovanni Bassano, Francesco Dalla Viola e Giovanni Battista Bovicelli, o agrupamento fez reviver práticas antigas como o Ensemble de Violinos, formação praticamente esquecida, mas que teve no período da Renascença o seu apogeu. Além disso, ofereceu aos presentes a possibilidade de escutar a sonoridade de uma verdadeira raridade como é o caso da harpa dupla. Lançando mão das múltiplas combinações entre os seus quatro elementos, ou em simples apontamentos solísticos, La Capriola soube ser sinónimo de equilíbrio, cumplicidade e atenção mútua. E partilha, importa dizer, não apenas na “voz” dos instrumentos, mas também na voz de Camille Fritsch, cuja presença, expressividade e qualidade interpretativa não deixaram ninguém indiferente.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO: "Rooms" | Anthony McCall


[Clicar na imagem para ver mais fotos]

EXPOSIÇÃO: “Rooms”,
de Anthony McCall
Curadoria | Sérgio Mah
MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia
30 Out 2024 > 17 Mar 2025


Desde meados da década de 1970 que Anthony McCall (1946, Inglaterra) é reconhecido como um dos artistas mais singulares e inovadores nessa zona profícua em cumplicidades e intermediações entre o cinema, a escultura, o desenho e a performance. Na sua trajectória, destaca-se o conjunto de obras que denomina de “solid light”, das quais se apresentam nesta exposição quatro obras produzidas entre 2007 e 2020. São instalações fílmicas em que nos é dada a ver a progressão de um desenho simples e que implicam uma notável economia de meios: escuridão, um projector e uma máquina de névoa. Da combinação entre a projecção e a névoa, passamos a discernir formas volumétricas compostas de luz, ou seja, somos testemunhas da formação de um corpo visual tridimensional no espaço.

Primeira exposição individual de Anthony McCall no nosso país, o corpo de trabalho de “Rooms” foi concebido depois do seu regresso à produção artística em 2003 (depois de 24 anos de interrupção, durante os quais trabalhou como designer gráfico para o meio artístico de Nova Iorque), momento a partir do qual concebeu novas instalações fílmicas com recurso a processos e dispositivos digitais. Marcantes na trajectória artística de McCall, as quatro obras agora apresentadas têm uma dimensão performativa que resulta da percepção da fisicalidade das formas desenhadas pela luz, da sensação corporal e da articulação com o espectador, convidando-o a ser ele próprio interveniente activo no processo de construção de formas e imagens. A prova disto é que todas as imagens recolhidas [e que podem ser vistas AQUI] são momentos únicos e irrepetíveis, resultantes da “deriva” dos corpos dos visitantes.

A exposição inclui também uma fotografia, “Room with Altered Window” (1973), que documenta uma das primeiras experiências artísticas de Anthony McCall. O artista cobriu a janela do seu estúdio com um papel preto no qual cortou uma fenda estreita. Quando o sol incidiu sobre a janela, uma lâmina plana de luz projectou-se no interior da sala, cuja visibilidade foi intensificada pela existência de poeira no ar e pelo fumo de um cigarro. Mais tarde naquele mesmo ano, McCall fez a mais célebre das suas obras, “Line Describing a Cone”. Anthony McCall vive e trabalha em Manhattan. As suas obras têm sido reconhecidas em inúmeras exposições nos EUA e na Europa. Já este ano, o Guggenheim Bilbao apresentou “Split Second” e até Abril de 2025, a Tate Modern, em Londres, dedica-lhe a exposição “Solid Light”. Em Portugal, obras suas integraram exposições colectivas e no MAAT a sua obra “Meeting you Halfway II” integrou a exposição “Traverser la Nuit: Obras da Coleção Antoine de Galbert” (2022).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO: “O Teatro Kabuki e a Estampa Japonesa: Tradição e Transição”



EXPOSIÇÃO: “O Teatro Kabuki e a Estampa Japonesa: Tradição e Transição”
Museu do Oriente - Galeria Nascente
27 Set > 29 dez 2024


Vibrantes, dramáticas, provocadoras, e intelectuais - o Teatro Kabuki e a xilogravura Ukiyo-e (cuja tradução é “imagem do mundo flutuante”) são duas das formas de arte mais proeminentes do mundo. Emergiram simultaneamente no seio da cultura popular japonesa do século XVII e, durante quase trezentos anos, prosperaram em conjunto. A singularidade de cada uma é produto tanto da tradição, como da sua capacidade de adaptação. “O Teatro Kabuki e a Estampa Japonesa: Tradição e Transição” junta noventa e uma estampas Japonesas pertencentes ao acervo do Museu do Oriente, as quais retratam o Kabuki oitocentista, entre o final do Período Edo e o início do Período Meiji. Fascinantes imagens de actores, peças e camarins documentam a prolífica relação entre o palco e uma indústria massificada de xilogravuras. Uma era de transição que marca a união final destas duas práticas e que assinala a transformação do Kabuki num orgulhoso símbolo de identidade nacional. Hoje, com mais de quatro séculos de história e desde 2005 proclamado Património Cultural Imaterial da UNESCO, o Teatro Kabuki é uma arte viva e a sua popularidade intemporal. Outrora consideradas efémeras e descartáveis, os milhares de estampas Ukiyo-e sobreviventes são estimadas como uma expressão artística única e uma janela para o incrível universo do Kabuki.

O Teatro Kabuki teve a sua origem no início do século XVII nas planícies fluviais da cidade de Quioto, com as danças provocadoras e pouco convencionais de mulheres e jovens rapazes. No entanto, o palco principal para o desenrolar da sua história foi Edo, actual Tóquio, sede feudal do governo militar Tokugawa e da sua repressiva autocracia samurai entre 1603 e 1868. Neste agitado centro urbano, o Kabuki prosperou como uma expressão de música, dança e teatro, adorada pelos cidadãos comuns. Convenções de representação únicas deram vida às peças inspiradas no quotidiano, nos contos históricos, ou na ficção romântica. Foi visto pelo governo como extravagante, disruptivo e uma ameaça à ordem social, banindo as mulheres do palco, em favor de um elenco inteiramente masculino, e exilando os teatros para a periferia da cidade, perto do bairro de prazer de Yoshiwara. Em 1868, uma revolução pôs fim ao regime Tokugawa e o novo governo do imperador Meiji (r. 1868 - 1912) reconhece na popularidade inabalável do Kabuki uma ferramenta essencial para a construção de uma sociedade moderna, respeitável aos olhos de aristocratas e recém-chegados Ocidentais. Os teatros mudam-se para uma prestigiada localização central, perto do Castelo de Tóquio. Não mais ostracizado, o Kabuki foi elevado ao estatuto de teatro nacional.

Através de noventa e uma estampas e onze objectos, acervo da Fundação Oriente nunca antes exposto, “O Teatro Kabuki e a Estampa Japonesa: Tradição e Transição” destaca a fascinante relação entre a xilogravura e o teatro popular japonês. A exposição abre com um convite à experiência do teatro: cenas de peças famosas projectadas em grande escala, enquadradas pela recriação de um palco tradicional com o seu passadiço hanamachi. A partir daqui, a exposição mostra o Kabuki dentro e fora do palco, ilustrada por cartazes, trajes, perucas e outros adereços. Em seguida, explora-se a função promocional das estampas com imagens sobre o seu processo de fabrico e uma animação que identifica estampas com retratos de celebridades e de grandes clãs teatrais, cuja reputação cimentaram ao longo de gerações. Centrando-se agora no palco, a exposição apresenta cenas de peças famosas, extraídas da literatura popular e erudita, ou inspiradas na história, mitologia ou vida quotidiana. Uma selecção de estampas raras dá ainda a conhecer as particularidades da cultura teatral de Osaca, segunda grande cidade do Kabuki. A exposição termina com estampas do período pós-revolução Meiji, revelando como a tradição teatral abraçou novos temas e perspectivas, inspirados na liberdade e modernização.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

CINEMA: "Anora"



CINEMA: “Anora”
Realização | Sean Baker
Argumento | Sean Baker
Fotografia | Drew Daniels
Montagem | Sean Baker
Interpretação | Mikey Madison, Paul Weissman, Lindsey Normington, Emily Weider, Luna Sofia Miranda, Vincent Radwinsky, Brittney Rodriguez, Sophia Carnabuci, Mark Eydelshteyn, Anton Bitter, Elia Rubin, Ross Brodar, Zoë Vnak, Vlad Mamai, Maria Tichinskaya
Produção | Sean Baker, Alex Coco, Samantha Quan
Estados Unidos | 2024 | Drama, Romance, Comédia | 139 Minutos | Maiores 16 anos
Vida Ovar
10 Nov 2024 | dom | 13:20


Entre a vida nocturna nos clubes de striptease de Manhattan e o dia passado a dormir na tentativa de recuperar as energias, a vida de Ani é feita de rotinas. Dada a sua capacidade de falar russo devido às origens uzbeques, uma noite cruza-se com Vanya, um homem riquíssimo que lhe oferece uma elevada quantia para ser sua namorada por uma semana. Guiados pelo brio de Ani e pelo dinheiro de Vanya, os dois vivem tempos de verdadeira loucura, dedicados apenas à satisfação dos seus desejos. Até que decidem casar-se em Las Vegas, ele em busca da emancipação dos pais e da cidadania americana e ela procurando libertar-se da vida que leva, trocando-a pela tão desejada tranquilidade e conforto. Pareceria exactamente o conto de fadas de “Pretty Woman”, só que os tempos são outros: Estamos em 2024, este é um filme de Sean Baker, e eis que é chegada a hora de Ani e Vanya pagarem a conta de uma semana descontrolada e de um casamento irresponsável.

Após o excelente “Red Rocket”, Sean Baker está de regresso ao mundo da prostituição, mostrando os seus contornos através da vida e da natureza de Anora, uma jovem prática e directa, capaz de lutar pelo que considera seu. O filme de Sean Baker revisita o clássico romântico com Julia Roberts  e Richard Gere, substituindo os dois mitos fascinantes e intemporais de Hollywood por dois jovens com um charme contemporâneo e alegre que certamente não foram feitos um para o outro, mas que são igualmente inesquecíveis. Anora nunca é vítima das suas escolhas, zomba dos clientes e das suas perversões, do contraste entre a força e virilidade que aparentam e a constante vitimização das próprias falhas, o que a coloca numa posição de poder absoluto. Enquanto isso, o realizador prossegue o conto de fadas sobre uma humanidade marginalizada em busca de um lugar no Paraíso: uma viagem à Disneylândia, um retorno glorioso ao mundo do cinema para adultos, uma vida rica e confortável que exclui de uma vez por todas a precariedade e o risco de ter de se vender por dinheiro.

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, “Anora” mostra um Sean Baker exímio na forma como brinca com as suas personagens e com o género, criando sequências de enorme tensão e oferecendo ao público momentos inesquecíveis, sobretudo aqueles que são dominados pela energia de Anora, capaz de criar, em simultâneo, um ambiente com tanto de histérico e violento quanto de terno e acolhedor. Vanya representa o que Anora nunca conheceu e que, por isso, nunca irá compreender totalmente, até àquela última cena que encerra um tempo louco para a qual nós, espectadores, somos arrastados. Se de um ponto de vista formal e narrativo, “Anora” nada mais é do que uma comédia convincente, com este filme o realizador americano dá um passo em frente rumo à imortalidade da sua filmografia, conseguindo delinear personagens inesquecíveis com uma precisão emocional desarmante e toda a beleza das lentas e preciosas descobertas. Anora é essa descoberta preciosa e delicada, que arrebata e prende, capaz de, no final, levar o espectador a apaixonar-se.

domingo, 10 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO: "Revoluções 1960 - 1975" | Júlio Pomar



EXPOSIÇÃO: “Revoluções 1960 – 1975”,
de Júlio Pomar
Curadoria | Alexandre Pomar, Óscar Faria
Atelier-Museu Júlio Pomar
11 Jul > 24 Nov 2024


As décadas de 1960 e 1970 foram tempos de grandes transformações da pintura de Júlio Pomar. As mudanças, que caracterizam toda a sua obra, foram neste tempo tão radicais que os quadros e as pesquisas do artista poderão, por vezes, julgar-se trabalho de diferentes autores. Esta exposição permite avaliar o que foi mudando no contínuo trabalho de Pomar e conhecer as condições, o contexto e os resultados das sucessivas linguagens, ou séries, ou fases, sem que as datas 1960-1975 estabeleçam fronteiras definitivas entre os anos imediatamente anteriores e aqueles que logo se lhes seguem. Instalado em Paris desde 1963, Júlio Pomar viveu e testemunhou revoluções políticas que tiveram amplas consequências culturais, mudaram vidas e marcaram inovações no campo das artes plásticas, nacionais e internacionais. Refira-se em especial o Maio de 1968, a violenta revolta social iniciada pelos estudantes franceses, que Pomar tomou logo por tema de trabalho. Outro marco político na vida do artista foram os anos de 1974-75, que abriram todas as fronteiras e trouxeram novas práticas e imagens, já como sequência portuguesa de 68. Às alterações políticas juntavam-se rápidas renovações ideológicas e mudanças de comportamentos, de que no caso importa referir a vaga da antipsiquiatria e a revolução sexual.

O pintor deixara o Neorrealismo por volta de 1955 e algumas obras maiores antecedem o virar da década, como “Maria da Fonte” ou “Lota”, esta de um período «negro» e ibérico que tentava reunir Goya e o primeiro Columbano – “Os Cegos de Madrid” são disso um bom exemplo. Os primeiros quadros, gravuras e desenhos dos anos 60 que aqui se expõem testemunham uma gestualidade vibrante que explora a abstratização das formas sem prescindir da referência figurativa. É uma pintura de acontecimentos vistos, como “Cena na Praia” e “O Carro das Mulas”, na qual estão muito presentes as figuras de trabalho, como por exemplo em Sargaço, em Pisa ou na recolha das redes, que eram agora espetáculos vivos, visões, no limiar do reconhecimento, já sem o anterior conteúdo militante, mas que têm ainda o povo como assunto. A par de algumas raras vistas de lugares, paisagens como Barcos de Albufeira, a ponte do Porto e o panorama de Lisboa, de 1961-62; a par também do gosto pelos «animais sábios» de um bestiário muito pessoal que percorre toda a carreira e aqui incluiu Mocho, Touro e Chimpanzés, adiante um Abutre – peças de humor e de observação, como os cadernos de desenho da chegada a Paris em 1963.

Ao longo dos anos 60 impuseram-se a Nova Figuração e a Arte Pop. Pomar acompanhou atentamente esse enfrentamento de tendências, à distância dos grupos de Paris e dos estilos colectivos. A revolução pessoal da sua pintura afirma-se com as séries dedicadas ao Rugby e a Maio de 68, onde o gesto se reduz até às formas nítidas marcadas sobre fundos de cor lisa, evoluindo do gesto à mancha recortada. É um importante espaço de passagem onde ainda têm lugar singular o “Retrato de Manuel Vinhas” e outra inesperada vista de Lisboa (“Saudades de Lisboa”). A seguir vêm as variações sobre o Banho Turco de Ingres, de formas em trânsito entre os escudos redondos dos polícias e os corpos de odaliscas, que lembram as de Matisse e comunicam com os Grandes Nus Americanos de Wesselmann. Acontecia na mesma década de 70 uma paralela, mas diferente, série de retratos desenhados a lápis (o do poeta Alberto Lacerda foi o primeiro). E uma nova transformação logo se segue com a prática da colagem de telas desenhadas à tesoura e previamente pintadas, acentuando a vertente do erotismo que desde sempre esteve presente. Uma série que já ultrapassa as datas fixadas. A exposição estará patente ao público até 24 de Novembro e pode ser vista de terça a domingo, das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 18h00.


sábado, 9 de novembro de 2024

CONCERTO: Sara Serpa, André Matos, Craig Taborn e Jeff Ballard



CONCERTO: Sara Serpa, André Matos, Craig Taborn e Jeff Ballard 
Guimarães Jazz 2024
Centro Cultural Vila Flor
08 Nov 2024 | sex | 21:30


Desconsolador. Ainda a tentar apagar da memória o concerto que abriu o primeiro fim de semana do Guimarães Jazz, escrevo estas breves palavras sob o lema do desconsolo. A milhas do nível qualitativo a que o Festival nos vem habituando nas mais de três décadas que leva de vida, aquilo que sobressaiu na noite de ontem, nos sete ou oito temas interpretados, foi a debilidade das vocalizações e as composições desinspiradas, semelhantes, para pior, a música para embalar bebés. Talvez até fosse essa a intenção da cantora, a julgar pela esmagadora maioria do público que, em algum momento do concerto, com maior ou menor profundidade, “passou pelas brasas”. Os aplausos foram sendo dispensados a conta gotas, como que arrancados a ferros, e a ovação final, frouxa e breve, evidenciou o sentimento generalizado de quem quer dizer que “por hoje chega”, não fossem os músicos lembrar-se de voltarem ao palco para um indesejado e indesejável encore.

Havia Jeff Ballard e havia Craig Taborn. Seriam estes dois nomes suficientes para colocar em alta as expectativas e justificar uma deslocação (no meu caso) de duzentos quilómetros? Certamente que sim, não apenas pelo seu historial de muitas décadas de carreira e pelos territórios musicais pelos quais se passeiam com maestria, mas também pelo percurso afirmativo de consolidação artística ao lado de grandes nomes da história recente do Jazz, de Chris Lightcap a Vijay Iyer, de Pat Metheny a Chick Corea. Embora breves, os apontamentos a solo mostraram que não estava enganado (cabe aqui uma referência a André Matos, também ele com algumas intervenções solísticas de qualidade). O problema esteve mesmo em Sara Serpa e naquela sequência repetitiva e monocórdica de ti-ti-tis e pa-pa-pas, omnipresente e castradora, que fez do concerto um tempo de monotonia e fastídio. Na única vez que fugiu a este registo, interpretando em inglês o tema “A Mother’s Heart”, foi pior a emenda que o soneto. Resta-nos a consoladora certeza de que tudo o que o Guimarães Jazz nos trouxer daqui para a frente só pode ser melhor.

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Cuspindo a Barlovento"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Cuspindo a Barlovento”,
de Manuel Sendón
Imago Lisboa Photo Festival
Museu Nacional de Arte Contemporânea
26 Set 2024 > 05 Jan 2025


Acontecimento marcante no panorama da fotografia nacional e internacional, o Imago Lisboa Photo Festival dedica esta sua sexta edição às várias narrativas artísticas em torno do aquecimento global. Este fenómeno climático, que tem como consequência um aumento gradual da temperatura média da Terra ao longo do tempo, é causado principalmente pela intensificação do efeito estufa, um processo natural que retém parte do calor solar na atmosfera para sustentar a vida no planeta. Porém, as atividades humanas intensivas, principalmente a queima de combustíveis fósseis (como carvão, petróleo e gás natural) e a desflorestação de grandes áreas, têm aumentado significativamente a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, agravando o aquecimento global. Adoptando o lema “Action for a Green Future”, o Festival pretende ser fonte de reflexão e debate na luta contra o aquecimento global, exigindo uma rápida mudança nos hábitos quotidianos, da redução do consumo de energia à opção por alimentos de origem sustentável, da minimização do desperdício à promoção de estilos de vida mais sustentáveis.

“Cuspindo a Barlovento”, do fotógrafo galego Manuel Sendón, recupera um dos maiores desastres ecológicos na história da Europa, com trágicas consequências ambientais para o litoral da Península Ibérica e para França. A 13 de novembro de 2002, o Prestige estava a caminho de Gibraltar depois de ter zarpado do porto de Ventspils, na Letónia, e foi apanhado por uma tempestade ao largo da Galiza, o que lhe provocou danos irreversíveis entre os quais um rombo de 50 metros no casco. Seis dias depois de encalhar, a embarcação partiu-se em dois e acabou por se afundar a 28 milhas do Cabo de Finisterra. Mais de 63 mil toneladas de petróleo foram derramadas e cerca de três mil quilómetros das costas espanhola, portuguesa e francesa ficaram poluídas. As imagens de Sendón mostram, de forma pungente, os efeitos da catástrofe. As palavras deixadas a propósito do acidente não deixam margem para dúvidas quanto à forma como as autoridades espanholas lidaram com o assunto: “O resultado era previsível, dado que os cientistas tinham estudado as correntes de Nadal que determinavam o regresso do fuelóleo à costa, mas o desprezo por este país fez com que os responsáveis nem sequer pedissem a opinião dos cientistas e se limitassem a cuspir a barlovento.”

Uma a uma, as paisagens apocalípticas, maioritariamente em formato 1:1, prendem a nossa atenção: postes destruídos, árvores negras, pássaros e caranguejos em agonia cobertos de alcatrão, rochas, areia, passeios, jardins, parques infantis negros. Tudo negro. O trabalho fotodocumental dá igualmente nota da onda de solidariedade gerada pela tragédia, com mais de 300 mil voluntários de toda a Europa a participarem nas operações de limpeza das praias, zonas rochosas atingidas e resgate dos animais afectados pela maré negra. Um trabalho desesperado, em que, como Sísifo, eram obrigados a limpar de novo as praias e enseadas que tinham deixado limpas na maré anterior. A gestão política da catástrofe ambiental por parte do Governo espanhol, liderado por José Maria Aznar, provocou uma onda de protesto em todo o país, com mais de 200 mil pessoas a manifestarem-se sob o lema “nunca mais”. Movimento sem paralelo na história de um povo habitualmente representado como submisso e conservador, o “Nunca Máis” converteu-se, mesmo fora da Galiza, em sinónimo de rebelião cívica contra a injustiça. “Viva o espírito do Nunca Máis.”

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

CINEMA: "Conclave"



CINEMA: “Conclave”
Realização | Edward Berger
Argumento | Peter Straughan
Fotografia | Stéphane Fontaine
Montagem | Nick Emerson
Interpretação | Ralph Fiennes, Jacek Koman, Lucian Msamati, Stanley Tucci, John Lithgow, Bruno Novelli, Thomas Loibl, Isabella Rossellini, Sergio Castellitto, Valerio Da Silva, Carlos Diehz, Joseph Mydell, Vincenzo Failla, Garrick Hagon, Merab Ninidze
Produção | Alice Dawson, Robert Harris
Estados Unidos | 2024 | Thriller | 120 Minutos | Maiores de 12 anos
Cinema Vida Ovar
07 Nov 2024 | qui | 19:05


O processo de escolha de um novo papa tem tanto de mediatismo como de secretismo, com os seus cardeais “sequestrados” até à eleição por uma maioria de dois terços, o famoso “fumo branco” ou o pregão “habemus papam”. É impossível saber com exactidão quais os passos do processo, já que apenas uma minoria tem acesso ao interior da Capela Sistina onde tudo acontece, mas “Conclave” abre as portas de um espectáculo hipnotizante, que envolve rituais, mistérios, traições e algumas situações verdadeiramente inesperadas. Neste filme em concreto, agora que o papa está morto, cabe ao cardeal Lawrence dirigir o conclave na escolha de um sucessor. Com os cardeais isolados na grande sala, a votação inicial produz alguns favoritos óbvios: um incontornável africano, um conservador italiano ou um ambicioso americano. À medida que a eleição prossegue e o caminho se estreita, há partidos que se vão tomando. A introdução do cardeal Benitez na corrida, secretamente nomeado pelo falecido papa para servir em Cabul, é só mais um elemento no caos de um longo e indisciplinado processo.

Não sendo este o primeiro filme a abordar um conclave papal – Nanni Moretti e, mais recentemente, Fernando Meireilles, exploraram o assunto –, nele residem uma série de elementos documentais que acabam por suportar e dar e força à ficção, das formalidades aos preparativos, do confisco dos telefones pessoais ao voto de segredo. Aquilo que “Conclave” mostra é um grande grupo de homens de todo o mundo na companhia uns dos outros, comportando-se como colegas de trabalho ou amigos da Faculdade, que voltam a reunir-se algum tempo depois de terem estado juntos pela última vez. Em conjunto, formam os seus grupinhos, cortam na casaca uns dos outros, tentam influenciar-se mutuamente e especulam sobre quem deve tornar-se no novo líder da Igreja Católica. Se na vida real as coisas se passam realmente assim é um mistério que ficará por revelar, mas esta representação de um quotidiano invulgar acaba por dar àquelas pessoas um toque de humanidade e por aumentar consideravelmente o valor e interesse do filme.

Após o sucesso de “A Oeste Nada de Novo”, galardoado com o Óscar de Melhor Filme Internacional em 2023, Edward Berger muda radicalmente de tom, oferecendo-nos um filme deveras envolvente. Entre o humor refinado e a seriedade circunspecta, “Conclave” consegue um extraordinário equilíbrio entre esses dois estados contraditórios. Fiennes, como a personagem que interpreta, é de um rigor exemplar, mostrando-se muito mais cativante do que na generalidade dos papéis que já o vimos assumir. Resoluto e determinado no cumprimento da missão que lhe foi atribuída, chega a ser comovente na resposta que dá ao valorizar a dúvida em detrimento das certezas. Firmemente devotados aos seus princípios, por mais mesquinhos que possam parecer, Tucci, Lithgow ou Castellitto têm igualmente grandes desempenhos. Há, ainda, a recriação do Vaticano, com cenários impressionantes e que brilham ao nível dos diálogos e da acção. Filme a ter em conta na corrida aos Óscares do próximo ano, “Conclave” constitui uma das experiências cinematográficas mais gratificantes de uma temporada que está a chegar ao fim.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO: "Veneza em Festa"



EXPOSIÇÃO: “Veneza em Festa - De Canaletto a Guardi”
Fundação Calouste Gulbenkian - Galeria Principal
25 Ou 2024 > 13 Jan 2025


O Museu Calouste Gulbenkian e o Museo Thyssen-Bornemisza, depois da colaboração que desenvolveram em 2009 dedicada ao pintor francês Henri Fantin-Latour, voltam a promover um encontro de obras das suas coleções, motivada pelas afinidades que as caracterizam. Este novo projeto, que se inicia em Lisboa e continua em Madrid no início de 2025, tem como tema a pintura veneziana do século XVIII. O conjunto de obras reunidas nesta exposição oferece testemunho da atração que esta cidade milenar despertou entre os visitantes,  a que  entusiasticamente se juntaram dois grandes colecionadores do século XX: Hans Heinrich Thyssen-Bornemisza e Calouste Sarkis Gulbenkian. Pintores incontornáveis como Canaletto, Guardi, Bellotto e Tiepolo, autores de algumas das mais brilhantes composições do seu tempo, encontram-se entre os artistas selecionados para a exposição. As “feste”, celebrações realizadas na Sereníssima, as “vedute”, vistas panorâmicas de um determinado local, e os “capricci”, arquiteturas fantasistas fruto da imaginação dos artistas locais, por natureza todas elas motivos festivos, constituem o foco desta apresentação.

A cidade de Veneza é, no século XVIII, um centro cosmopolita para onde convergem viajantes de toda a Europa. À sua debilidade política e militar, a Sereníssima responde com a realização de cerimónias públicas faustosas, que celebram a sua antiga grandeza. No último século da sua história (inicia no século IX e termina em 1797 com a ocupação napoleónica), a República  vive uma época de extraordinária vitalidade criativa, que abarca múltiplas formas de expressão artística: a música, o teatro, a pintura, as artes decorativas e a arquitectura. Em 1703, Luca Carlevarijs publica uma série de gravuras em que os edifícios mais importantes da cidade são dispostos segundo critérios tipológicos. O momento estabelece, definitivamente, o nascimento da “veduta” veneziana. Embora o género tenha nascido no Norte da Europa, é em Veneza que atinge o seu apogeu com o surgimento de um grande número de pintores a dedicar-se à realização deste tipo de vistas urbanas. As condições que conduzem a esta conjuntura de sucesso justificam-se pela presença contínua de um público estrangeiro que se reúne na cidade para a paragem obrigatória do Grand Tour, a viagem educativa das elites da época.

Um género específico dentro do tema, as “feste”, destinado a celebrar acontecimentos como magníficas regatas ou visitas de soberanos ou de embaixadores europeus, conhece também o seu momento mais alto.  A cidade assume o papel de protagonista e é retratada como uma verdadeira obra de arte. Dois pintores contemporâneos, Giambattista Tiepolo e Canaletto, alcançam resultados surpreendentes. Este último dedica-se à pintura de “vedute”,  caracterizada por perspetivas amplas que realçam a singularidade de Veneza como “cidade da água” e celebram a sua espectacular cenografia arquitectónica. Francesco Guardi inicia a sua carreira de “vedutista” em meados da década de 1750. Para a realização das suas primeiras obras, o pintor apropria-se de protótipos iconográficos existentes e apresenta versões próprias caracterizadas por uma indiscutível vitalidade de execução. Longe do rigor geométrico de Canaletto, o mais novo dos dois artistas retrata arquiteturas banhadas de luz, numa linguagem pictórica cintilante; é o último pintor a imortalizar o esplendor das cerimónias na Sereníssima República de Veneza.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

CONCERTO: "EnCanto Sinfónico"



CONCERTO: “EnCanto Sinfónico”
Comemoração Cante Alentejano | 10 Anos Património UNESCO
Direcção musical | Carlos Amarelinho
Coliseu dos Recreios de Lisboa - Sala Principal
03 Nov 2024 | dom | 19:00


Conhecido pelas suas características de canto polifónico tradicional em duas partes, o Cante Alentejano tem raízes profundas nas comunidades rurais do Alentejo. Este estilo musical não só retrata temas ligados ao trabalho agrícola, à vida rural e à natureza, mas também aborda aspetos emocionais como o amor, a maternidade e a religião. Interpretado por grupos corais que podem ter até trinta membros, com vozes organizadas entre “ponto”, “alto” e “baixo”, criando uma harmonia vocal distintiva, o Cante projecta-se para lá da sua dimensão musical, desempenhando um papel crucial na vida social das comunidades alentejanas. Para os seus praticantes e apreciadores, é um elemento central de identidade e pertença, que contribui para a coesão social e para o diálogo intergeracional, permitido também que muitas mulheres se afirmem no espaço público através de uma manifestação tradicionalmente dominada por homens. Inscrito na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade a 27 de novembro de 2014, o Cante Alentejano é, cada vez mais, um elemento preponderante na promoção da identidade alentejana e na projeção da cultura portuguesa além-fronteiras.

Quando se cumpre uma década sobre a efeméride, a Câmara Municipal de Serpa / Museu do Cante Alentejano trouxe ao Coliseu dos Recreios de Lisboa um concerto “único”, no qual participaram onze grupos corais do concelho, acompanhados por uma Orquestra Sinfónica composta pelos elementos da Banda Filarmónica de Serpa e por várias dezenas de músicos convidados, sob a direcção do maestro Carlos Amarelinho. Com casa cheia, o Coliseu foi palco de uma viagem pelas melodias e harmonias que há séculos ecoam nas planícies do Alentejo. Porém, nem tudo foram rosas nas duas horas de duração do concerto. A tentativa de dar outras asas ao Cante e de o tornar (ainda) mais universal mediante a harmonização das vozes com os instrumentos da Orquestra, “esbarrou” numa tradição que dispensa acompanhamentos instrumentais. Uma parte do público não quis ou não soube valorizar a capacidade do maestro Carlos Amarelinho em interpretar o cancioneiro das modas populares alentejanas e em saber embalá-lo com os seus arranjos, sendo muitas as vozes que reclamaram o Cante na sua forma mais pura e genuína. Afinal, tudo está bem quando acaba bem e o final, com mais de duas centenas de cantadeiras e cantadores em palco, foi verdadeiramente apoteótico.

“Mas que dia tão bonito / Ninguém queria acreditar / O Alentejo é património / Pelo seu lindo cantar.” Depois do instrumental “Infinity Chase”, não podiam ser mais apropriadas as primeiras palavras cantadas nas vozes do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa a quem coube, há dez anos, a responsabilidade de representar o Cante Alentejano em Paris, aquando da sua integração na lista do Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. Foi este o primeiro grupo a pisar o palco do Coliseu, ao qual se seguiram as Ceifeiras e os Camponeses de Pias, os Arraianos e as Flores do Chança de Vila Verde de Ficalho, o Madrigal e o Coral e Etnográfico de Vila Nova de S. Bento, os Camponeses de Vale de Vargo ou os Cantadores de Aldeia Nova de S. Bento. Oportunidade para escutar temas como “Não Quero Que Vás à Monda”, “Lá Vai Serpa, Lá Vai Moura”, “Vamos lá Saindo”, “Fui Colher Uma Romã”, “Gota de Água”, “Alentejo, Alentejo” ou “Grândola, Vila Morena”. Procurando disfarçar a frustração de ouvir este Cante “adulterado”, o público acabou por fazer as pazes com a Orquestra e, pelo que (também) cantou e aplaudiu os grupos em palco, percebeu-se que não terá dado o tempo por mal empregue.

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Finding Home"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Finding Home”,
de Gonçalo Fonseca
Encontros da Imagem de Braga
Casa da Cultura de Avintes
05 Out > 03 Nov 2024


Ainda que a exposição tenha encerrado no passado fim de semana, vale a pena “espreitar” a obra de Gonçalo Fonseca, parte integrante da colecção dos Encontros da Imagem e que, à semelhança do que acontecera em Julho do ano passado, quando esteve presente na Galeria da Estação, marcou um momento significativo na presente edição do Festival. A mostra remete para Dezembro de 2021, altura em que um grande número de refugiados afegãos encontraram um novo lar em Portugal, com a esperança renovada de que a música voltasse a encher os corredores do seu Instituto e que o medo do palco fosse o único receio que os seus estudantes enfrentassem. Recorde-se que antes da tomada do poder pelos Talibãs no Afeganistão, o Instituto Nacional de Música do Afeganistão (ANIM) tocava nas salas de concerto mais renomadas do mundo. Em 2021, com a retirada das tropas dos EUA do país, o ANIM foi ocupado e os instrumentos destruídos. Nas salas de aula, nos corredores, no espaço exterior, instalou-se o silêncio. E o medo.

Na sequência de um complexo processo, alunos e professores foram resgatados com a ajuda do violoncelista Yo Yo Ma e o governo do Qatar. No final de 2021 chegavam, em segurança, a Portugal, com a perspectiva de verem os seus chegar logo a seguir. A espera, em Lisboa, foi longa – demasiado longa para adolescentes – e os familiares nunca mais chegaram. Até que as coisas começaram a mexer. Os mais novos foram acolhidos em Braga. Outro grupo acabou por ser recebido pelo Município de Guimarães, ao abrigo do programa “Guimarães Acolhe”. Perguntar-lhes como se sentem é um esforço vão. Estão sempre “bem”, mesmo quando a cara diz o contrário, mesmo naqueles raros momentos em que se expõem e deixam aperceber olhos lacrimejantes, mesmo quando têm no bolso um bilhete para, no dia seguinte, deixarem a nova casa e a nova escola com a intenção de irem para longe e não mais voltar.

Com o Afeganistão agora uma sociedade silenciosa, um grande peso foi colocado sobre este grupo de refugiados. Eles são os guardiões das tradições musicais afegãs, assegurando que os sons antigos do seu país continuem a ser ouvidos no futuro. A sua regeneração na Europa é algo pelo qual lutam, vivendo como refugiados numa terra estranha. São os dilemas e as barreiras, todo um conjunto de atitudes reveladores do tremendo choque cultural e da desinserção social, que Gonçalo Fonseca traz ao nosso encontro, num projecto documental de grande valor e interesse. No rosto dos retratados, percebemos a força da ligação às raízes. Igualmente forte é a preocupação com quem ficou para trás. As imagens de um quotidiano feito de dúvidas e contradições desfilam ao nosso olhar numa sequência que inspira admiração e solidariedade. “O meu sonho é manter a música afegã viva”, diz Shogufa Safi, de 18 anos, maestrina da Orquestra Zhora, composta inteiramente por mulheres. Mas há ainda o sonho comum de poderem regressar ao País natal. “Mas em os talibãs”, dizem.