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quarta-feira, 2 de abril de 2025

CINEMA: "On Falling" | Laura Carreira



CINEMA: “On Falling”
Realização | Laura Carreira
Argumento | Laura Carreira
Fotografia | Karl Kürten
Montagem | Helle le Fevre, Francisco Moreira
Interpretação | Joana Santos, Inês Vaz, Piotr Sikora, Neil Leiper, Jake McGarry, Itxaso Moreno, Leah MacRae, Billy Mack, Deborah Arnott, Paul Donnelly, Ola Forman, Ross Ian-Martin, Karyna Khymchuk, Lukasz Kornacki, Daniel McGuire, Liam Nelson, Helen Robinson
Produção | Mário Patrocínio, Jack Thomas-O’Brien
Reino Unido, Portugal | 2024 | Drama | 104 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 18
30 Mar 2025 | dom | 19:05


Aurora é uma portuguesa que vive e trabalha na Escócia como empregada num armazém de vendas pela internet. Deixou o nosso país na expectativa de “um futuro brilhante” - pelo menos é assim que rezam todos os anúncio de oferta de emprego para o Reino Unido -, mas rapidamente percebe que a realidade é bem diferente. Tal como os restantes empregados, na sua maioria imigrantes e sem grande formação académica, recebe um salário baixo por um trabalho rotineiro, sendo recompensada pela sua boa produtividade com uma barra de chocolate. Entre a raiva e a frustração, vê-se confrontada com uma vida muito abaixo dos padrões com que sempre sonhara, tendo de partilhar o apartamento com pessoas na mesma situação e vendo-se obrigada a levar um quotidiano de sobrevivência face a um conjunto de carências de toda a ordem. Mergulhada num abismo de privações, vítima do preconceito e das injustiças de uma sociedade rude e insensível, resiste como pode à solidão e alienação que ameaçam a sua integridade e o seu sentido de identidade.

“On Falling” pode ser visto como sendo sobre uma mulher em busca do seu lugar num meio frio e hostil. Embora a sua solidão esteja no centro das atenções, Aurora parece mais preocupada em encontrar formas de melhorar a sua existência do que em estabelecer ligações com os outros. Num trabalho marcado pela impessoalidade, não é a vontade de se agarrar emocionalmente às pessoas que a move, até descobrir da pior forma a importância de ser prestável com os outros e de ter alguém em quem confiar. Para pessoas na situação de Aurora esta é uma quase necessidade, já que viver num país estranho nunca é fácil e poder contar com um ombro amigo faz toda a diferença. Por outro lado, o filme parece dirigir-se àqueles que veem nos imigrantes o inimigo, esquecendo-se das condições deploráveis em que geralmente vivem, do trabalho que fazem e que mais ninguém faz e dos impostos que pagam como os demais. Eis uma forma inteligente de desmontar os discursos ignorantes daqueles que erguem como bandeira o facto de não haver mais espaço para mais pessoas.

Filmado de forma realista, com um forte cunho documental, “On Falling” tira o melhor partido das paletas de cores sombrias da cidade de Glasgow, combinando-as na perfeição com os cenários estéreis dos locais de trabalho e dos espaços que as pessoas habitam, em ambientes que são causa e efeito de estados de espírito que reflectem o abandono, a depressão e o desespero. Para quem conhece a obra de Laura Carreira, nomeadamente os excelentes “Red Hill” e “The Shift”, curtas-metragens multi-premiadas e que passaram no Shortcutz Ovar com a presença da realizadora, não é novidade um filme com esta carga emocional, capaz de gerar uma forte empatia com os mais desprotegidos e de pôr o espectador a olhar de lado a sociedade britânica (os recentes “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, e “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins, já produziam efeito semelhante). Estamos perante um drama bem real, representativo da situação de uma mole imensa de pessoas em todo o mundo e que é um grito de denuncia face à crueldade dos governos e das políticas anti-imigração cada vez mais restritivas.

terça-feira, 1 de abril de 2025

CONCERTO: "Radiohead Recomposed" | Orquestra de Jazz de Espinho & Mário Delgado



CONCERTO: “Radiohead Recomposed”
Orquestra de Jazz de Espinho & Mário Delgado
Direcção musical | Eduardo Cardinho e Paulo Perfeito
Auditório de Espinho - Academia
28 Mar 2025 | sex | 21:30


Radiohead. A Enciclopedia Britannica refere-os como sendo, “sem dúvida, a banda de art-rock mais bem-sucedida do início do século XXI”, acrescentando que o quinteto “produziu algumas das músicas mais majestosas - se bem que saturadas de angústia - da era pós-moderna”. Formado em 1985 em Abingdon, Oxford, o grupo era composto pelo cantor e guitarrista Thom Yorke, o baixista Colin Greenwood, o guitarrista Ed O'Brien, o baterista Phil Selway e o guitarrista e teclista Jonny Greenwood. Cultores de bandas de rock norte-americanas como os R.E.M., Nirvana, Sonic Youth ou Pixies, os Radiohead não resistiram a ir beber ao Jazz algumas das suas influências, nomeadamente a Miles Davis, Charles Mingus e Alice Coltrane. Virá daqui, pelo menos em parte, a poderosa sensação de alienação que as suas músicas provocam, as paisagens sonoras intrincadamente texturadas, os longos silêncios de alguns dos seus temas mais icónicos a trazerem com eles notas mágicas e impressivas capazes de nos alçarem no seu voo e de nos transportarem aos confins do universo.

Foram precisamente os Radiohead e a sua música a estarem na mira da Orquestra de Jazz de Espinho, fazendo deles o alvo central de um projecto diferenciador e estimulante a muitos títulos, tanto para os músicos como para o público que esgotou o Auditório de Espinho nas duas sessões agendadas. Encontrar a combinação perfeita entre o jazz e o rock alternativo terá sido o grande desafio colocado aos oito músicos a quem coube a tarefa de trabalhar os arranjos de outros tantos temas, recompondo sem nada omitir e fundindo géneros sem os desvirtuar. Nazaré Silva, José Pedro Coelho, Paulo Perfeito, Telmo Marques, Estela Alexandre, Johannes Krieger, Daniel Bernardes e Carlos Azevedo puseram mãos à obra com a mestria que se lhes reconhece, ousando desconstruir e reerguer temas de grande complexidade, num processo não isento de riscos (afinal, não é de ânimo leve que se mexe em verdadeiros ícones, como é o caso de “Just” ou “Paranoid Android”, sob pena de se ser acusado de profanação). O resultado exprime-se numa simples palavra: Notável!

Passados pelo crivo do jazz, os temas escolhidos mostraram a sua enorme plasticidade e deram-se a ver numa roupagem cheia de swing, ritmo e alegria. Ao encontro das sonoridades idiossincráticas da banda, a guitarra não poderia ficar esquecida, recaindo em Mário Delgado o convite para se juntar à Orquestra de Jazz de Espinho. Com uma carreira de quase quatro décadas, Delgado é um guitarrista com recursos e técnicas variadas na guitarra eléctrica, o que lhe vem dos diversos estilos provenientes das suas influências, nas quais o rock o jazz ocupam lugar de destaque. Isso ficou bem patente no conjunto de apontamentos solísticos de altíssimo nível, sendo muito bem secundado por uma secção rítmica fortíssima - a par de Mário Delgado, José Diogo Martins, nos teclados, revelou-se fundamental nessa fixação das sonoridades próprias dos Radiohead - e pelo trabalho contrapontístico dos metais, com destaque para o trombonista Hugo Caldeira e para o trompetista João Tavares. Mais um grande concerto com o selo OJE.

segunda-feira, 31 de março de 2025

TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”



TERTÚLIA | CONCERTO | FINISSAGE: “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”
Com | Rosa Bela Cruz, Ana Ferreira, Luís de Matos, Domingos Silva e Grupo Vocal Canto Décimo
Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense
29 Mar 2025 | sab | 16h00


“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
José Saramago, epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira

No trabalho artístico de Rosa Bela Cruz, são várias as particularidades que prendem a nossa atenção. Ainda despojado do ardor crítico, um primeiro olhar abarca a delicadeza do traço, a suavidade da cor, a harmonia do conjunto. Alvo preferencial da atenção da artista, as mulheres figuram nas suas obras em graça e beleza: Sedutoras, ousadas, irreverentes. Ao mesmo tempo frágeis, delicadas, inquietas, angustiadas. Para as mulheres de Rosa Bela Cruz, a certeza de si e do lugar que ocupam está longe de ser chão seguro. A pintura da artista desdobra-se. Como uma moeda, mostra as duas faces. Fosse ela pau e ameaçar-nos-ia com os seus dois bicos. Perante isto, o olhar apura-se. Percorre o quadro e encontra nele matéria de constante desassossego. Detém-se nos olhos das mulheres que, como um íman, o atraem. Olhos grandes e vivos, que se movem incessantemente. Olhos que nos seguem para onde quer que vamos. Nesse encontro de olhos que nos olham, somos invadidos pelo desconforto. Neles encontramos a urgência do muito que têm para contar.

Aproximamo-nos e a inquietação adensa-se. Reparamos que são delicadas as rendas que velam rostos e corpos, que sobre eles fazem pousar as marcas do charme discreto e do bom gosto. Rendas que não são suficientes para disfarçar essas outras marcas, mais fundas e terríveis, da adversidade, da mágoa, do desprazer. Marcas de uma bofetada seguida de um pedido de desculpa, de um murro na boca seguido de cem pedidos de desculpa, de uma facada no rosto seguida de mil pedidos de desculpa. Como se o mal pudesse ser apagado com palavras bonitas. Entre “espaços de pensar” e “teias de sentir”, abraçamos Rosa Bela Cruz neste seu “eterno retorno” a Ovar. Abraçamos igualmente as mulheres que nos trouxe, todas as mulheres. Mulheres como Ana Luísa Amaral, Sophia de Mello Breyner, Adília Lopes, Maria Teresa Horta ou Florbela Espanca que, na verdade da sua poesia, continuam a mostrar-se decisivas na luta contra o preconceito e a discriminação que enfermam uma sociedade conservadora e machista. Arautos da mudança, elevam-se à condição de sujeitos primordiais num contexto de afirmação de princípios e valores que as distingue como sublimes e únicas.

Pudemos olhar e vimos. Pudemos ver e reparámos. Sendo as mesmas, as mulheres de Rosa Bela são agora diferentes. Os tons sombrios quase desapareceram dos seus rostos, os véus são cada vez menos um resguardo, os queixos ergueram-se e as poses fizeram-se causa e razão, vigor e altivez. Não há dúvida de que estas mulheres mudaram. A sua atitude mudou. Também a sua vontade e a sua confiança. São mulheres mais conscientes dos seus direitos, mais fortes, mais audazes. Logo, mais elegantes e graciosas, mais harmoniosas, mais belas. Rosa Bela Cruz tem o dom de, com a sua arte, expressar as emoções mais vivas no que o “ser mulher” tem de íntimo e precioso. Lançamos um último olhar a cada trabalho. Lá encontramos, ainda, uns olhos enormes e penetrantes que parecem não nos querer largar. Eles dizem-nos que há ainda caminho a percorrer no que aos direitos das mulheres e à igualdade de género diz respeito. Mas o olhar destas mulheres é, hoje, o olhar que vê.

[Texto inserto no Catálogo do projecto de Rosa Bela Cruz, “Espaços de Pensar - Teias de Sentir”]

domingo, 30 de março de 2025

EXPOSIÇÃO: “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno” | Paula Roush



EXPOSIÇÃO: “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno”,
de Paula Roush
(In)visibilidades e Derivas
MIRA Galerias | MIRA FORUM
08 Mar > 03 Mai 2025


“Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno” emerge do cenário mutável de Campanhã, onde infra-estruturas industriais abandonadas estão a ser apagadas e reaproveitadas para empreendimentos imobiliários de luxo. Através de uma abordagem experimental à criação de imagens, o projeto questiona quem e o que pode habitar estes espaços de transição. Vagueando pelas ruínas de antigas fábricas têxteis e pelos terrenos em redor da antiga central eléctrica, Paula Roush recolheu plantas com o intuito de criar um herbário do antropoceno, utilizando processos fotográficos baseados em energia solar, como cianotipias e fitogramas. A pesquisa estendeu-se ao Arquivo Histórico do Porto, ao encontro de plantas arquitectónicas de armazéns e centrais hidroeléctricas, a fontes digitais como blogues dedicados à arqueologia industrial e à memória urbana, bem como a pesquisas académicas encontradas nos portais da Universidade do Porto, onde materiais industriais obsoletos e documentos históricos circulam como vestígios da desindustrialização.

O recurso a um conjunto de agentes algorítmicos permitiu a geração de bio-imagens que funcionam como uma extensão especulativa desta pesquisa. As informações recolhidas foram codificadas em prompts para gerar novas imagens, ampliando a leitura do território através de processos de inteligência artificial. Estas imagens serviram também como base para o desenvolvimento de novos têxteis, produzidos em fábricas de impressão digital, acrescentando uma nova camada de materialidade e circulação aos vestígios de Campanhã. Estas imagens desafiam a contínua reinscrição do vazio industrial - através do abandono, da especulação imobiliária e da estetização da ruína - e expõem a abstração da paisagem como um processo activo de exclusão. A lógica do vazio não se limita à ausência material, mas à sua reconfiguração como mercadoria, potencial de lucro e superfície estética. No entanto, a ruína não é neutra. Estes espaços têm as marcas da exploração laboral, da degradação ambiental e da resistência.

Se a abstração apaga as histórias dos lugares para as reinscrever como imagens especulativas de um futuro lucrativo, este projecto procura devolver o corpo e a memória ao que foi silenciado. Ao recuperar as ruínas como locais de memória e persistência, “Um Olho Verde, Outro Azul: Herbário do Antropoceno”' traz as histórias apagadas para o centro da narrativa, situando as transformações de Campanhã num contexto mais amplo de colonialismo, capitalismo e deslocação. Assim, talvez este projecto seja, também, sobre a escuta do visível, sobre a possibilidade de perceber o que já não soa, mas ainda vibra. Sobre um arquivo que não se fecha no silêncio, mas que continua a gerar novas frequências - como as ruínas, que nunca são vazias, mas habitadas por histórias, ecossistemas e resistências que se recusam a desaparecer. Contando com colaborações várias, nomeadamente ao nível da curadoria de conteúdos, agentes algorítmicos, cianotipias e instalação, entre outras, este é mais um projecto de enorme impacto visual e significado patente no MIRA, que pode ser visto até 03 de Maio.

[Texto baseado na Folha de Sala da Exposição e na página da artista, em https://www.msdm.org.uk/project/olho-verde-outro-azul-herbarium-for-the-anthropocene-installation]


sábado, 29 de março de 2025

CONCERTO: Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho



CONCERTO: Ensemble Vocal EPME
Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho
Direcção musical | Luís Castro, Miranda Sinani
Com | Luís Duarte (piano)
ReabilitaSons 2025
Centro de Reabilitação do Norte
27 Mar 2025 | qui | 17h30


Foi um final de tarde feliz, aquele vivido no Centro de Reabilitação do Norte na passada quinta feira. Perante um numeroso público, que encheu de alegria e sorrisos o espaço luminoso onde decorreu o evento, o Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho teve para oferecer um programa dedicado à voz e à expressão vocal, tanto numa vertente próxima do canto popular e, em particular, dos cânticos de trabalho, quanto numa vertente mais lírica, com abordagens a vários géneros musicais, em particular à música clássica. Integrando o ciclo “ReabilitaSons”, conjunto de cinco momentos musicais do qual este foi o segundo (depois do Combo de Jazz, no passado dia 06 de Março), o concerto juntou à vertente de saúde, pela importância das actividades deste âmbito no processo de reabilitação dos doentes, as componentes artística e educacional, reunindo um coro de quinze alunos da EPME, sob a direcção musical de Luís Castro e Miranda Sinani e com acompanhamento ao piano de Luís Duarte.

Os dois temas que abriram o concerto levaram os presentes numa viagem à Bulgária, ao encontro da sua tradição vocal e dos seus executantes, geralmente conhecidos por vozes búlgaras. “Bre Petrunko” e “Vecheryai, Rado” mostraram um conjunto de vozes de grande harmonia, capazes de transmitir as particularidades de uma música muito influenciada pela história trácia, otomana e bizantina da Bulgária, com os seus maravilhosos timbres inconfundíveis, escalas modais, ritmos irregulares e harmonias dissonantes. O momento teve o condão de conquistar o público e predispô-lo para os registos a solo ou em duo que se seguiram, com acompanhamento do piano. Numa bonita voz, Joana Pereira trouxe-nos “Heart of Stone”, um tema composto por Toby Marlow para o musical da Broadway, “Six”, viagem de cinco séculos entre a Inglaterra dos Tudor (o título remete para “As Seis Mulheres de Henrique VIII”) e os actuais ícones da pop.

Guilherme Oliveira mostrou-se convincente nas interpretações de “La Conocchia”, de Gaetano Donizetti, “Die Nacht”, de Richard Strauss e “Quero Cantar, Ser Alegre”, de Francisco de Lacerda, temas integrantes dos repertórios de alguns dos mais importantes cantores líricos do mundo e que, no Centro de Reabilitação do Norte, foram merecedores de vivos aplausos. Em crescendo, Polina Arkhanhelska interpretou, com grande segurança, “Mandoline”, de Fauré, para de seguida protagonizar, com Guilherme Oliveira, o mais aclamado momento do concerto, graças à apaixonada interpretação de “Love Unspoken”, da opereta “A Viúva Alegre”, de Franz Lehár. O coro voltou ao palco para novo tema do cancioneiro tradicional búlgaro, “Dilmano Dilbero”, as sonoridades arrebatadoras a tomarem de novo conta dos presentes. A fechar o concerto, a escolha recaiu sobre um tema da nossa tradição, o “Coro das Maçadeiras”, com a expressão corporal e a percussão a juntarem-se às vozes, num final enérgico e particularmente apelativo. Bravíssimo!

sexta-feira, 28 de março de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93
Com | Vicente Niró, Marta Morais Miranda, Benjamim Quadros e Costa
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Mar 2025 | qui | 21:30


Além de serem nomes maiores da sétima arte, o que têm em comum Lawrence Olivier, Elia Kazan, Orson Welles ou Akira Kurosawa? A resposta está na ligação entre Cinema e Teatro, assente no grande número de filmes que realizaram e que trouxeram o palco para o grande ecrã. No Dia Mundial do Teatro, o Shortcutz Ovar quis homenagear todos os cineastas que, mais ou menos livremente, transpuseram o teatro para os seus filmes, e em particular Manoel de Oliveira, numa altura em que se cumpre uma década sobre o seu desaparecimento. O momento, assinalado com a imagem projectada do realizador, deu a escutar algumas palavras proferidas durante a entrega da Palma de Ouro de Honra de Cannes, com Oliveira a arrancar risos na plateia ao dizer “finalmente” e a confessar: “Cresci ao longo de um século, mas hoje sei que foi o cinema que me fez crescer”. Viva o Teatro. Viva o Cinema. E viva o Shortcutz Ovar que voltou a chamar à belíssima Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios um numeroso público, numa sessão em que a casa foi o eixo à volta do qual se expandiram as três curtas do programa. Três propostas narrativas que, além de olharem a casa dos mais variados ângulos, tiveram em comum o facto de serem primeiras obras, dando a conhecer um leque de realizadores talentosos e criativos, de quem muito há a esperar no futuro.

Este segunda sessão da presente temporada teve o seu início com “T-Zero”, uma obra de imagem animada assinada por Vicente Niró. O filme acompanha o dia a dia de uma agente imobiliária que tenta persuadir os clientes a alugar apartamentos pouco maiores que caixas de sapatos, mesmo que isso signifique despejar os inquilinos que lá vivem. Em “T-Zero”, a casa é mera mercadoria, sujeita à especulação imobiliária e às leis do mercado. Aqui, a cidade é o Porto e o acelerado processo de transformação que sofre, com uma chamada de atenção para fenómenos como a gentrificação, a turistificação e a perda de identidade. Juntando a sua voz à daqueles que gritam “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, Vicente Niró trabalha uma ficção com um forte cunho documental, na qual insere um conjunto de marcas identitárias que vão dos sons da cidade e da pronúncia do norte aos edifícios emblemáticos, às ruas estreitas e às nesgas de rio que a espaços se avista. Também ele vítima da precariedade - “vivo numa casa má, mas com janelas boas” -, o realizador oferece-nos um trabalho de animação com uma forte carga simbólica, convidando o espectador a olhar uma cidade que melhora para os turistas, à custa de quem sempre lá viveu. E deixa uma interrogação: “Um destes dias, quem é que vai fazer o S. João?”

“A Casa Imaginada”, de Marta Morais Miranda, foi “o irmão do meio” da sessão. Partindo de uma ideia de confinamento, a realizadora oferece-nos a visão daquilo que a casa representa em matéria de segurança e conforto, através do que decidimos ou não guardar no seu interior. Afastando-se da casa enquanto estrutura física, o documentário faz recair a atenção sobre o quotidiano e as finas camadas que se vão acumulando nos objectos, olhando-os de um ponto de vista sentimental. Nos gestos, nos cheiros, na loiça espalhada sobre a banca, nas marcas de uma parede ou numa toalha estendida sobre a relva, as casas anteriores invadem as novas casas, tomam conta delas. Entre o interior e o exterior, o individual e o comunitário, o permanente e o transitório, “A Casa Imaginada” faz um apelo à memória no esforço de enumerar o que há de comum aos lugares onde vivemos, lembrando um passe-partout, um candeeiro, um bibelô, um ou outro livro, o lugar que ocupavam nas casas anteriores e porque razão estão aqui de novo, qual a sua dimensão emocional. Neste contexto, há uma pergunta que pode ser feita, como se de um desafio se tratasse: E se tivéssemos de abandonar rapidamente a nossa casa, apenas com uma mochila às costas, o que poríamos lá dentro?

Enfim, “Maria, Maria”, de Benjamim Quadros e Costa, o filme que encerrou a sessão, reforçou a dimensão humana do espaço da casa. Convidando-nos a viajar até Escalos de Baixo, no distrito de Castelo Branco, o realizador apresenta-nos a sua avó, Maria João Pires, e abre-nos as portas do Centro de Artes de Belgais, laboratório de experiência das artes e de aprendizagem musical, um lugar de liberdade e “um acto de rebeldia”, de acordo com a pianista. Do acto da criação à partilha de emoções e sensações que a música proporciona, tanto a quem a ouve como a quem a interpreta, “Maria, Maria” explora algumas das facetas menos visíveis de uma das mais notáveis pianistas do mundo e uma das figuras mais relevantes da cultura portuguesa. Mas se o documentário é sobre a artista e o seu espaço íntimo, há nele uma segunda camada, não menos relevante, que reside na relação entre um neto e a sua avó, nos vínculos de amizade e afecto que transcendem o tempo e conectam diferentes épocas e vivências, nos valores e princípios transmitidos, a par das histórias familiares, usos e costumes. Deste ponto de vista, o filme acaba por dizer mais sobre o neto do que sobre a avó, apesar das belas reflexões que nos deixa, uma das quais encerra o filme de forma muito bela. Não é uma interrogação, antes uma afirmação: “É preciso deixar que as coisas aconteçam”.

quinta-feira, 27 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: "Peregrinação" | Graça Morais



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Peregrinação”,
de Graça Morais
Curadoria | António Meireles
Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo
01 Mar > 01 Jun 2025


Graça Morais é uma pintora prodigiosa. Reconhece-se ao conjunto da sua obra o carácter universal e humanista dos grandes criadores, no percurso que iniciou há cinquenta anos. Este percurso cumpre-se como uma peregrinação, em que caminho e caminhante se fundem nos significados gerados e sobretudo, nas inquietações e questões desencadeadas, e nas quais, como cidadãos com espírito crítico e criativo, nos (re)conhecemos. Que exposição é esta que se abre a cada visitante que a percorra? A “Peregrinação” do título não é palavra vã e oferece-se como eixo que estrutura a selecção das obras e o desenho de uma exposição que percorre etapas significativas da vida e obra de Graça Morais. Aqui se encontram obras marcantes que se assumem como marca identitária da artista, pela visibilidade, destaque e materialização de séries temáticas ou áreas de intervenção, mas também obras com pouca exposição pública, porque seguiram outros rumos de menor visibilidade, mas que não deixam de ser, igualmente, marcantes. Umas e outras mostram a enorme capacidade de criação da pintora, rejeitando qualquer receituário de fácil produção e recepção, em favor da integridade do que encontra a ser pintado, como da própria pintura, e do que, ultrapassada a camada superficial, é mais profundo e verdadeiro.

Relacionando-se intimamente com o espaço de exposições da Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo, nas suas três salas e dois andares, abre-se um percurso que tem início na Sala Aureliano Lima. Com obras que se centram nas séries “A Caminhada do Medo” e “As Sombras do Medo”, fortes nos temas que abordam, assim como na expressão do pastel seco com cores saturadas, tem destaque a obra “A Guerra”, de 2003. Graça Morais pinta os inevitáveis resultados de conflitos e guerras, que, independentemente dos campos beligerantes nos muitos espaços e tempos em que têm ocorrido, infligem os maiores danos nas franjas mais frágeis das populações, invariavelmente mulheres, crianças e idosos. Através da estreita escada, acede cada visitante com moderado esforço físico ao piso superior, à Sala Branca. Esta ascensão acompanha um percurso das obras, que dos conflitos e guerras de âmbito mundial e suas consequências das obras do piso inferior, nos traz para o contexto de território de montanha e para a construção das comunidades, sempre em diálogo com o mundo global, que parecendo-nos exterior e distante, tem na obra de Graça Morais importante reflexão sobre as conexões estabelecidas com os mundos locais. É desta conexão exemplo a pintura que abre este espaço, intitulada “20 de Janeiro de 2017”, data da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América no que foi o seu primeiro mandato.

A Sala Branca compreende importantes etapas da peregrinação-percurso que a artista nos oferece. As paisagens transmontanas, que nas obras de Graça Morais tantas vezes se materializam nos rostos e corpos de quem as trabalha numa atividade rural que ainda é centro da vida deste território, surgem fortes, maciças e assumindo a sua condição de personagens em histórias que constroem o património e identidade das comunidades. A Sala Negra, que sendo escura de luz e cor, é noite profunda no interior do nosso ser, oferece um olhar perscrutante para o interior de cada visitante. As obras expostas nesta sala são sobretudo desenhos, de construção e expressão directas, com uma crueza que não é chocante, mas tocante, porque removendo metaforicamente a camada da carne, entre fundo na estrutura do ser. A obra “Jorge III”, belíssima pintura de técnica mista com tratamento formal e cromático tão sumário quanto completo e expressivo, aborda uma situação de bullying que se verificava na aldeia da pintora, que condoendo-se da situação, agiu, tanto no sentido do seu fim, como assegurando-se da saúde e bem-estar de quem não tinha possibilidade de os ter. São obras fortes as expostas. Não hesitando abordar temas que são difíceis, partilham inquietações e questões fundas que (co)movem Graça Morais e que tocam o nosso mais íntimo, fazendo, através desta exposição, na nossa própria peregrinação, abrirem-se campos de significação e de acção que conferem uma maior importância a cada novo dia.

[Escrito a partir da Folha de Sala da exposição]

quarta-feira, 26 de março de 2025

LIVRO: "Kairos" | Jenny Erpenbeck



LIVRO: “Kairos”, de Jenny Erpenbeck
Texto original | “Kairos”, 2021
Tradução | António Sousa Ribeiro
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2024


“A ordem é o medo da desordem. Quer dizer que é medo. Também o seu medo. Será que, porventura, criou simplesmente para si uma imagem de espelho mais bela na carne jovem dela? Alguém que, na sua solidão, pode responder-lhe? Ou foi realmente por amor que partilhou tudo aquilo com ela? De todo o modo, fora ela a razão do seu banimento. Amor, amor, amor, diz ele de si para si, de súbito, a palavra parece-lhe absolutamente oca”.

Na estrutura semântica, temporal e simbólica das civilizações modernas, empregamos geralmente uma só palavra para definir a noção de tempo. Na antiga Grécia, porém, eram duas as palavras para o tempo: “chronos” e “kairos”. Enquanto a primeira se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede), Kairos possuía uma natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. A mitologia mostra-nos Kairos, “o deus do momento oportuno”, com uma madeixa de cabelo na testa, que é a única forma de ser agarrado. Vemos que a parte de trás da sua cabeça é lisa e sem cabelo, e não há onde o agarrar. Quando passa perto de nós, deslizando sobre as suas pernas aladas, percebemos que se abrem três possibilidades. Ou não o vemos, o que simplifica as coisas. Ou vemo-lo, mas não fazemos nada, o que acaba por ir dar ao mesmo. Ou então, ao passar, estendemos a mão e “agarramos a ocasião pelos cabelos”, arcando com as consequências.

“Kairos”, romance de Jenny Erpenbeck que acaba de ser galardoado com o International Booker Prize 2024, conta a história de Katharina e de como, casualmente, conheceu Hans. Ela tem 19 anos e é estudante, ele é escritor, tem 53 anos e é casado. O encontro tem lugar num dia de chuva copiosa, a 11 de Julho de 1986, num autocarro na parte de Berlim ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Passarão os anos seguintes juntos, vivendo de início uma relação apaixonada, mas que muito rapidamente irá decair a ponto de se tornar doentia. Uma relação na fronteira entre a verdade e a mentira, a obsessão e a violência, o ódio e a esperança, à semelhança dessa Estação Friedrichstrasse de onde partem os comboios com destino ao Ocidente, que Katharina vê da janela do seu apartamento e sobre a qual se interroga se não será, no rigor com que faz a ponte entre dois blocos antagónicos, capaz de conter dois tempos diferentes, dois presentes concorrentes, duas realidades quotidianas, uma servindo de inferno para a outra.

O espaço onde a acção decorre e o ambiente social e político não são puras metáforas. O declínio do regime, impulsionado pela Perestroika, era então uma realidade palpável e levantava as maiores dúvidas no Bloco de Leste. Jenny Erpenbeck socorre-se dessa verdade histórica para estabelecer um paralelismo com a vida amorosa e descrever os diferentes aspectos da felicidade através do percurso dos dois amantes. Em poucas palavras, esta é a história de um grande amor e da sua queda, mas é também a história da dissolução de todo um sistema político, o que conduz a uma questão muito simples: Como é que algo que se afigura certo e firme de início, pode vir a revelar-se tão errado? Dona de uma escrita original, extraordinariamente precisa e atenta ao detalhe, a autora mergulha o leitor na intimidade do casal, obrigando-o a seguir uma linha turtuosa de fortes emoções, sem lhe exigir que tome partidos. Nas constantes interrogações que cada um se coloca reside o fascínio do livro, ele próprio um modelo de grande literatura cuja oportunidade importa agarrar. Ainda que pelo cabelo.

terça-feira, 25 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: "Riscos Calculados" | Zé Maia



EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: “Riscos Calculados”,
de Zé Maia
Biblioteca Municipal de Ovar
28 Fev > 26 Abr 2025


Podemos falar de uma actividade em expansão ao abordar o assunto “Desenho Urbano”, essa prática artística que vem chamando às ruas de cidades e vilas um número crescente de praticantes. Focados na arquitectura ou em cenas do quotidiano, nas pessoas que tomam o seu café numa esplanada ou num gato que dormita num beiral, os “urban sketchers”, como são universalmente conhecidos, mostram-se particularmente atentos, metódicos e expeditos na construção dos seus trabalhos, conectando mundos interiores e exteriores com engenho e arte, assim construindo narrativas de inegável valor educativo e artístico. Individualmente ou em conjunto, no respeito pelo seu próprio estilo e pelos materiais escolhidos para levar a cabo a sua actividade, replicam com minúcia as cenas que testemunham, fazendo de cada obra o registo muito especial de um tempo e de um lugar específicos. Depois, tirando o melhor partido das redes sociais, partilham os desenhos produzidos, dando a ver ao mundo verdadeiras pérolas.

José António Maia de Almeida, conhecido como Zé Maia, não será o único desenhador urbano da cidade de Ovar, mas é, seguramente, o mais carismático. Ao talento inato, alia a paixão pela sua Ovar natal, olhando com renovada dedicação a forma como a cidade cresce e se transforma. Mas o seu olhar vai mais longe, ultrapassa as fronteiras do concelho, poisa na fachada de uma igreja em Cacela Velha ou nos muros de uma fortaleza em Sesimbra, no edifício que acolhe a Biblioteca Municipal de Vouzela ou numa vista de S. Jacinto. Deixemos que a imaginação voe ao encontro do artista, sentado no seu banquinho desdobrável ali na Rua Dr. Manuel Arala, na frontaria daquele que foi o Café Paraíso e, mais tarde, a Relojoaria Ovarense. Sentemo-nos também e vejamos como poisa no colo o caderno de desenho e dispõe à mão o lápis, a borracha e a caneta com tinta indelével. O estojo com tintas de aguarela e os pincéis aguardarão a sua hora, bem como o carimbo com a efígie do seu pai, a partir de um desenho que dele fez em 1982 e que é a sua forma simples de o homenagear. Para já, vemos como nasce o esboço dos edifícios, com o desenho a lápis e os primeiros contornos a tinta carbono (indelével); de seguida, intensificam-se os contornos e o desenho ganha detalhe, cresce. Com as primeiras “aguareladas” entra-se na fase da cor e a magia acontece.

Se conseguiu imaginar Zé Maia a sós com os seus rabiscos, agora tem a possibilidade de apreciar este trecho particularmente belo de uma das ruas centrais de Ovar na exposição intitulada “Riscos Calculados” e que ocupa a galeria de exposições temporárias da Biblioteca Municipal de Ovar. Lá encontrará um conjunto de olhares sobre a nossa frente citadina, mas também de um Ovar rural, do interior da Igreja Matriz a um largo de Sande. Particularmente belos são três trabalhos que retratam outras tantas Alminhas, assim como um pormenor do final da Rua Castilho, muito próximo das traseiras da Capela dos Campos. Zé Maia manifestou desde sempre interesse pelas diversas formas de Arte, muito por influência paterna - o pai, José Augusto de Almeida, foi fundador e primeiro director do Museu de Ovar. Por essa razão, nunca descarta a possibilidade de levar à prática a sua veia criativa, nomeadamente o “urban sketching”, tendo no seu caderno, lápis, tintas e pincéis, uma companhia constante. Regressa agora à Biblioteca com este novo conjunto de trabalhos, alguns deles inéditos, e outros que, pertencendo a colecções particulares, só tinham sido divulgados através das redes sociais. Para ver até 26 de Abril.

segunda-feira, 24 de março de 2025

CONCERTO: "Divinas Perlinas" | Musurgia Ensemble & Coro CásterAntiqua



CONCERTO: “Divinas Perlinas”
Musurgia Ensemble & Coro CásterAntiqua
Direcção musical | Jorge Luís Castro
Apresentação | Ana Isabel Nistal Freijo
Com | João Francisco Távora (flauta de bisel e direção artística), Pedro Martins (guitarra barroca), Helder Sousa (cravo e direção artística)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Capela de Santo António
23 Mar 2025 | dom | 16:00


“Que idade
tem o rio?
Sua infância flui sempre menimesma
sua voz permanece azul,
água aberta, alçapão por onde o tempo perde a voz
e o imenso se faz imerso.”
Mia Couto, in “Raíz de Orvalho e Outros Poemas”

Um sonho cuja matéria se confunde com as águas de um rio. Uma vontade antiga que retira do Cáster a sua imagem e o seu modelo. Assim foi pensado e gerado o CásterAntiqua, assim viu a luz do dia o primeiro Festival de Música Antiga de Ovar. Com um programa distribuído por actividades formativas, visitas guiadas ao património religioso de Ovar, sete concertos em outros tantos dias e o trabalho comunitário que redundou na criação do Coro CásterAntiqua, o Festival revelou-se uma extraordinária surpresa, tanto pela variedade e qualidade das propostas, quanto pelo próprio desenho, a sua atenção ao detalhe, o seu empenho na criação de novos públicos através da beleza e riqueza do universo da Música Antiga. Está de parabéns o Musurgia - Associação Cultural e, muito em particular, Hélder Sousa e João Francisco Távora, directores artísticos do Festival, pela forma como souberam conduzir esta viagem de celebração da Música Antiga. Parabéns extensivos a toda a equipa que com eles colaborou e à Câmara Municipal de Ovar, parceira nesta aventura inicial e, estou certo, nas edições que se seguirão, certos do potencial da iniciativa e da sua inequívoca qualidade e excelência.

Mas é do Coro CásterAntiqua que gostaria de falar, já que foi com ele e com o Musurgia Ensemble que chegou ao fim o CásterAntiqua, num concerto intitulado “Divinas Perlinas” e que teve lugar na tarde de ontem, na sobrelotada Capela de Santo António. Foi o culminar de um trabalho desenvolvido no Museu Escolar Oliveira Lopes e que, ao longo de quatro sessões de três horas cada, reuniu cerca de três dezenas de elementos. Sob a orientação de Jorge Luís Castro, os coralistas mergulharam nos vilancicos devocionais de Gaspar Fernandes, dando-lhes vida através de uma rica e harmoniosa combinação de vozes. Abro aqui uma nota de carácter pessoal para referir, enquanto membro do coro, que se tratou de uma experiência fantástica, em primeiro lugar pela entrega e entusiasmo, paciência infinita e enorme conhecimento de Jorge Luís Castro, elevando o coro a patamares de grande qualidade. Mas também pelos momentos de cumplicidade e partilha com os demais companheiros de aventura, todos eles conhecedores, empenhados, dedicados e possuidores de vozes maravilhosas, e cujas contribuições foram determinantes para o bem sucedido resultado final.

Com as atenções viradas para Gaspar Fernandes, compositor português (?) activo na Guatemala e no México entre os finais do século XVI e primeiro quartel do século XVII, o programa integrou ainda peças de um conjunto de outros compositores, nomeadamente Diego Ortiz, Giovanni Paolo Cima e Andrea Falconiero. A viagem entre as duas margens do Atlântico fez-se, desta vez, ao sabor da língua: De um lado o português, o castelhano e o biscayno; do outro o mestiço, o índio e o Nahuatl (idioma asteca à época da conquista espanhola e falado ainda hoje por cerca de um milhão e meio de pessoas na região central do México). Com a parte instrumental a cargo de João Francisco Távora, Hélder Sousa e Pedro Martins, o concerto teve no coro o seu elemento de maior relevância, ficando demonstrado o poder alquímico de Jorge Luís Castro em juntar vozes e fazer magia. A ele se deveu a confiança e disponibilidade evidenciada pelos coralistas em “Negrinho tiray vos”, “As divinas perlinas” e “Mi niño dulce y sagrado”, peças de enorme riqueza melódica e rítmica e de uma harmonia sublime que tanto encantaram o público. Caído o pano sobre o evento, ficam momentos únicos de fruição da boa música e uma enorme vontade de podermos assistir à concretização de uma nova edição, já em 2026. As coisas boas não se podem perder e esta é daquelas coisas realmente muito boas.

domingo, 23 de março de 2025

CONCERTO: “A tre: Música para trio nas cortes europeias do séc. XVIII” | Ensemble Navis



CONCERTO: “A tre: Música para trio nas cortes europeias do séc. XVIII”
Ensemble Navis
Com | Beatriz Soares (traverso), Paola Troiano (traverso), Claudia Cecchinato (violoncelo), Sayaka Matsunaga (cravo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense
22 Mar 2025 | sab | 16:00


Quando falta apenas o concerto de encerramento do CásterAntiqua – Festival de Música Antiga de Ovar, já começa a apossar-se de nós como que uma nostalgia, uma saudade, pelo vazio tão próximo. Um balanço preliminar desta primeira edição do Festival permite concluir que o objectivo de divulgar a Música Antiga e dar a ver as particularidades de um universo vasto, que se estende no tempo e abraça uma multiplicidade de géneros e estilos, foi claramente atingido. Ao longo de dois fins de semana, assistimos ao desenvolvimento de um programa rico e variado, graças às prestações de altíssimo nível, em distintos palcos, de um apreciável número de agrupamentos de renome. Mas o CásterAntiqua fez questão de não descurar as novas correntes, lançando uma Open Call internacional com o intuito de proporcionar a um grupo de jovens músicos a oportunidade de desenvolver uma residência artística. Ao longo de seis dias, o agrupamento seleccionado, o Ensemble Navis, trabalhou um programa musical original, com a mentoria de intérpretes que integraram a agenda musical do Festival. O resultado pôde ser apreciado na tarde de ontem, no Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense.

Centrando a sua atenção no ambiente das cortes europeias do século XVIII, o Ensemble Navis - Beatriz Soares, Paola Troiano, Claudia Cecchinato e Sayaka Matsunaga - propôs uma viagem pelo centro da Europa, visitando as cortes de Luís XIV e Luís XV em França, da princesa Guilhermina, irmã de Frederico o Grande, na Prússia, de Augusto, o Forte, na Polónia ou de Nicolau Esterházy, na Hungria. Mas não apenas as cortes, também os locais de culto foram alvo da atenção do Ensemble, penetrando na intimidade de conventos e igrejas como as de S. Tomás ou de S. Nicolau em Leipzig, de Santa Catarina em Frankfurt ou da Neue Kirche (Igreja Nova) em Arnstadt. “Triosonata No.1 em sol menor, da cravista parisiense Élisabeth Jacquet de La Guerre (1665-1729), e “Pièces pour la flûte traversière op.2”, do flautista “romano” Jacques-Martin Hotteterre (1673-1763), foram as duas peças de abertura do concerto, nelas se evidenciando uma forte noção de movimento a par de uma enorme delicadeza e frescura. O quarteto deu provas da necessária qualidade interpretativa, capaz de transmitir as emoções que se desprendem de ambas as peças, sabendo pôr em diálogo os instrumentos e criando grandes expectativas quanto ao restante programa.

“Triosonata em sol maior para duas flautas e baixo contínuo”, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), foi, na sua complexidade e rigor meditativo, um dos momentos altos do concerto, tal como a peça seguinte, bem mais viva e alegre, “Musique de table: Trio em ré maior TWV 42:D5, de Georg Philipp Telemann (1681-1767), espécie de “banda sonora para um jantar”, assim ilustrada por Beatriz Soares, que fez as honras do agrupamento, com uma breve introdução inicial a cada uma das peças. Ainda que indirectamente, voltaríamos a Telemann, já que a peça que escutámos serviu de inspiração a Wilhelm Friedemann Bach, filho de Johann Sebastian Bach, para compor o seu “Trio em ré maior Fk 47”, com o qual se completou o alinhamento do concerto. Antes disso, porém, viveu-se outro momento feliz com a interpretação do “Divertimento Op.3 No.3 em ré menor”, de Anna Bon, peça de uma alegria contagiante escrita por uma compositora que foi uma “menina-prodígio” e que, aos quatro anos de idade, já estudava música no Ospedalle della Pièta, de Veneza. Os fortes e prolongados aplausos finais trouxeram com eles a recompensa de um “miminho”, “Pourquoy doux rossignol”, de Jean-Baptiste Drouart de Bousset, numa versão ornamentada por Michel Blavet, uma canção de amor e de mágoa muito bela e que se constituiu na melhor das despedidas.

sábado, 22 de março de 2025

CONCERTO: “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi” | Musurgia Ensemble & Quarto Tom Ensemble



CONCERTO: “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi”
Musurgia Ensemble & Quarto Tom Ensemble
Musurgia Ensemble | João Francisco Távora (flauta de bisel e direcção artística), Silvia Cortini (flauta de bisel), Xurxo Varela (viola da gamba), Francisco Luengo (viola da gamba), Hélder Sousa (órgão e direcção artística)
Quarto Tom Ensemble | Eva Braga Simões (tiple), Gabriela Braga Simões (alto), Luís Toscano (tenor), Nuno Mendes (baixo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
21 Mar 2025 | sex | 21:30


Corpus Christi ou Corpo de Deus é o nome dado à solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, a qual é celebrada pela Igreja sessenta dias após a Páscoa, na quinta-feira que se segue à Solenidade da Santíssima Trindade. A sua celebração pretende sublinhar a centralidade da Eucaristia na vida cristã, ou seja, “a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem”. Instituída pelo Papa Urbano IV, em 1264, pretendeu pôr cobro às heresias que colocavam em causa a presença do Cristo verdadeiro na Eucaristia, mas também responder ao movimento de devoção ao Santíssimo Sacramento que vinha a intensificar-se na prática dos fiéis. Esta festa convida os crentes a deterem-se, mais demorada e profundamente, no mistério que celebram e que é o centro vital da sua vida crente, renovando a profissão de fé em Cristo, vivo e presente neste Sacramento. O cerimonial deve culminar com uma Procissão Eucarística, de acordo com as orientações da Igreja, sendo a música parte integrante das celebrações, desempenhando um papel fundamental no que lhes acrescenta de solenidade e espiritualidade.

Menos de vinte e quatro horas decorridas sobre o excepcional concerto dos Seconda Prat!ca, a Igreja Matriz voltou a acolher um numeroso público, ávido de escutar as propostas do Musurgia Ensemble e do Quarto Tom Ensemble, para a celebração das Vésperas do Corpo de Deus, tal como se faria em Portugal no século XVII. Integrado no programa do CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar, o concerto teve por base a recolha de música vocal e instrumental conservada em arquivos musicais portugueses e recebeu o título “Ad Vesperas – Música para as Vésperas do Corpus Christi”. A partir do repertório de um vasto conjunto de artistas ibéricos, conhecidos e menos conhecidos - e alguns anónimos -, dos séculos XVI e XVII, os dois agrupamentos trabalharam uma vasta selecção de composições, convidando os presentes a nova viagem pelos tempos da História e seus contornos musicais, voltados inequivocamente para o interior da própria Igreja, com a sua liturgia, os seus dogmas, a sua essência canónica. Daqui resultou uma entre muitas propostas possíveis para as vésperas desta festa de grande solenidade, não apenas em relação ao alinhamento do concerto, mas também no que toca ao número de vozes e à própria parte instrumental seleccionada.

Assente na polifonia e no cantochão, em obras instrumentais e em variadas combinações destes efectivos, o concerto assumiu como prioridade o respeito pela estrutura quase fixa desta festa de grande solenidade, composta por uma evocação, cinco salmos, um hino, um cântico e uma benção final. De Manuel Cardoso a Pero Vaz Rego, de Frei Agostinho da Cruz a Manuel Rodrigues Coelho, o público teve a graça de escutar um conjunto de composições inspiradas, cujos acordes ecoaram no coração da Igreja Matriz com fervor e devoção. Eva Braga Simões e a sua voz cristalina brilharam no “Pange Língua” de Juan Navarro, hino devocional de rara beleza e que possui a particularidade de fugir ao cânone romano e assumir um carácter ibérico. O “Magnificat”, de João Lourenço Rebelo, e o “Benedicamus Domino”, de Aires Fernandes, foram outros dois momentos de profunda espiritualidade, escutados pelo público no mais reverencial silêncio. Já no capítulo dos Salmos, o destaque maior vai para a viola da gamba de Xurxo Varela e para a flauta de bisel de João Francisco Távora, capazes de momentos da maior beleza e emoção. Na linha dos anteriores concertos, “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi” foi mais um momento de altíssima qualidade e a melhor forma de assinalar o Dia Europeu da Música Antiga.

sexta-feira, 21 de março de 2025

CONCERTO: "Nova Europa" | Seconda Prat!ca



CONCERTO: “Nova Europa”
Seconda Prat!ca
Com | Sofia Pedro (soprano), Sophia Patsi (alto), Emilio Aguilar (tenor), João Paixão (barítono), Bram Trouwborst (baixo), Nuno Atalaia (barítono, flautas e direção artística), Asuka Sumi (violino), Xander Baker (viola da gamba), Hugo Sanches (guitarra barroca e tiorba), Martin Billé (guitarra barroca e tiorba)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
20 Mar 2025 | qui | 21:30


“Voltando ao assunto, creio que não existe nada de bárbaro ou selvagem nesta nação, pelo que me foi dito; excepto, que toda a gente chama de bárbaro ao que não é o seu costume. De facto, parece que não temos outro guia para a verdade, para a razão, do que o exemplo e as ideias e as opiniões e os costumes do país onde vivemos. Lá, está sempre a religião perfeita, a etiqueta perfeita, o uso perfeito e realizado de todas as coisas.”
Michel de Montaigne, in “Dos Canibais”

Ao analisar os costumes do povo Tupinambá, Michel de Montaigne, jurista, político, filósofo, escritor e humanista, nascido em 1533 na Dordonha, França, desenvolveu uma notável reflexão sobre “barbárie” e “civilização”, questionando quem estaria com a razão, se o povo Tupinambá ou o Europeu, que em nome de civilizar e tirar os outros povos da barbárie, cometia as maiores atrocidades. Este embate civilizacional, decorrente do achamento do “Novo Mundo” no dealbar do século XVI, levou a que a Europa, até então “o Mundo”, quisesse ser “o Centro do Mundo”. Como resultado imediato, dos vinte e cinco milhões de indígenas do México, só alguns milhares se mantinham vivos passado um século e a população andina diminuiu oitenta por cento em trinta anos. À luta pela sobrevivência seguiu-se a dominação cultural. Não sendo facilmente transmitida pelas armas, a fé cristã teve de ser incutida em cada mente através da arte e da música. Paradoxo dos paradoxos: Nascido em condições atrozes, no meio da destruição e do massacre, o barroco musical colonial está repleto de obras-primas, como facilmente se percebeu na noite de ontem graças ao maravilhoso concerto do Seconda Prat!ca.

A relação ética, política e musical entre a Europa e a América do Sul colonizada está no centro de “Nova Europa”, título do concerto e projecto musical do Seconda Prat!ca, de visita a Ovar na abertura do segundo fim de semana do CásterAntiqua – Festival de Música Antiga de Ovar. Numa Igreja Matriz repleta de público, o grupo teve para oferecer uma viagem musical através de um mundo em expansão, seguindo os passos da migração e hibridação da cultura europeia. “Distância”, “Missões”, “Crioulização” e “Catedral” foram quatro etapas de um processo de exploração das mutações das fronteiras e percepções dos continentes recém-colonizados, através da sua música. Mas o programa quis ver mais longe ao propor uma reavaliação dos fundamentos históricos que ainda nos levam a chamar “Novo Mundo” a territórios e culturas previamente existentes, e cuja opressão não é deveras passada. Daí que duas questões se imponham com a força e acutilância que o assunto deve merecer: E se um Novo Mundo nunca existiu? E se a Europa tivesse precisado de inventar um?

Foi, portanto, uma viagem. Através dela, as reflexões maduras andaram a par com os pensamentos de uma música em construção. Margens, tradição e civilização foram laços tecidos entre as diferentes peças, relevando o quanto de artístico, religioso, cultural e político se abriga em cada uma delas. Numa primeira etapa, percebemos a evolução das relações entre o estilo musical europeu e aquele da América do Sul colonizada. Foi tempo de escutar, entre outros, os sublimes “Dime Pedro por tu vida” e “Entre dos álamos verdes”, duas peças extraídos do Codex Zuola, de Cuzco, antiga capital do império Inca, e apreciar o resultado de uma verdadeira mestiçagem cultural. Num segundo momento, vimos como a música, embora com o claro objectivo de transmitir a fé religiosa, persistia nessa mistura de estilos, sendo possível encontrar em Arcangelo Corelli e D. Zipolli, do arquivo de Chiquitos, o muito que os une.

A “crioulização” deu conta da permeabilidade entre a cultura pré-colombiana e a europeia, com um tema como “Lanchas para baylar” (Anónimo, Codex Martinez Compañon, Trujillo) a revelar uma insuspeitada proximidade à passacaglia. Na última etapa, vimos como a música litúrgica se apropria do villancico, de origem profana, nesse afã de converter a população ao Cristianismo. “A la xácara, xacarilla” (J. Gutierrez de Padilla, Maitines de Natividad, Puebla) é disto um delicioso exemplo. Alternando música instrumental com vozes à Capella, coros polifónicos e prédicas recitativas, declamações ou simples apontamentos explicativos de carácter histórico, o Seconda Prat!ca proporcionou uma hora e meia de extraordinária música, no seio de um mundo de uma violência atroz e repleto de contradições. Uma palavra para os instrumentistas, cujos registos notáveis tiveram o condão de nos guiar entre dois mundos tão distintos e, contudo, tão próximos. Mas foi nas vozes das maravilhosas Sofia Pedro e Sophia Patsi, mas também de Emilio Aguilar, João Paixão e Bram Trouwborst que o concerto ganhou asas e se elevou a patamares de excelência. Uma noite inolvidável.

quinta-feira, 20 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "A Halt to Survive (Pandemic Times)" | Garcia de Marina



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Halt to Survive (Pandemic Times)”,
de Garcia de Marina
iNstantes - Propostas Fotográficas #109
Centro de Reabilitação do Norte
19 Mar > 23 Abr 2025


Cinco anos decorridos sobre os primeiros casos (e as primeiras mortes) directamente relacionados com o coronavírus, já quase não se fala de uma pandemia que pôs o país em pausa mais de setecentos dias, entre cercas sanitárias, estados de emergência nos momentos críticos e situações de alerta no abrandar do número de casos. Sabemos hoje que, tal como se esperava, o vírus evoluiu para formas menos letais, mas vale a pena não esquecer os seus efeitos devastadores, com mais de 5,6 milhões de pessoas infectadas em Portugal (mais de metade da população) e cerca de 29 mil óbitos. Numa altura em que os cientistas vêm alertando para o risco de aparecimento de novas e mais agressivas variantes do coronavírus, importa perguntarmo-nos sobre o que aprendemos com a pandemia e se estaremos preparados para um novo embate. A exposição de Garcia de Marina, que acaba de ser inaugurada no Centro de Reabilitação do Norte, não responde a nenhuma destas questões, mas reforça a necessidade de reflectir sobre elas, graças a um conjunto de imagens que, muito subtilmente, transportam em si as nossas interrogações.

Num tempo de grande desinformação e manipulação da opinião púbica, baixar a guarda afigura-se uma imprudência cujas consequências podem ser dramáticas. Por esse motivo, uma exposição como “A Halt to Survive (Pandemic Times)” não poderia ser mais apropriada, recuperando uma tragédia que recheou o quotidiano de incertezas e alterou o nosso olhar perante a vida, como perante a morte. A obrigatoriedade da máscara, o encerramento dos espaços, o distanciamento social, as quarentenas forçadas, as filas de ambulâncias, os funerais sem adeus, os testes rápidos ou as vacinas, ganharam preponderância num mundo fechado a cadeado. É este mundo que Garcia de Marina traz de novo para primeiro plano graças às memórias que suscita, feitas de vivências nítidas a oscilarem entre o doloroso e o épico. Ao mesmo tempo, poder mostrar esta exposição num espaço que não ficou imune ao coronavirus – e que continua, ainda hoje, a reabilitar vítimas da pandemia, nomeadamente aquelas afectadas por essa nova entidade clínica designada por “long COVID” –, apenas reforça o seu significado e importância.

Olhando cada uma das imagens, percebemos que Garcia de Marina elege o objecto como meio de expressão. O seu trabalho gira entre as ideias e a intuição, entre o real e o onírico. O peso do seu olhar está no simbolismo, na carga emocional, na essencialidade, na ligação aleatória dos elementos, no convite formulado a que relacionemos um teste rápido com um sinal de trânsito, uma agulha com uma ampulheta ou um pedaço de arame farpado com a silhueta de uns pulmões. É um trabalho de suma inteligência, pontuado de humor e irreverência, que transforma e imprime novas identidades aos objectos, que se insurge contra o óbvio e abraça a grandeza que reside no que é simples. Naquilo que se esconde para lá do visível reside o fascínio da fotografia de Garcia de Marina, cuja visão marcadamente surrealista se assume como legítima herdeira dos paradoxos de Magritte ou da singeleza de Miró. “A Halt to Survive (Pandemic Times)” remexe o passado como quem busca certezas, faz-nos reviver a incógnita de um jogo com um adversário invisível e pergunta-nos, uma e outra vez, o que aprendemos com tudo isto.