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domingo, 2 de junho de 2019

TEATRO: "Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade"



TEATRO: “Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade”
Texto e direcção artística | Pedro Gil
Cenografia e adereços | Pedro Silva
Figurinos | Catarina Graça
Interpretação | Filipa Matta, Miguel Loureiro, Pedro Gil, Raquel Castro, Rita Calçada Bastos, Tónan Quito
Direcção de produção | Raquel Castro
Co-produção | Barba Azul, São Luiz Teatro Municipal, Teatro Municipal do Porto, Centro Cultural Vila Flor
135 minutos (com intervalo) | Maiores de 16 anos
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Teatro do Campo Alegre
24 Mai 2019 | sex | 19:00


Do cinema à pintura, da música ao teatro, são inúmeras as criações artísticas que beberam a inspiração no mito de Don Juan. Exemplo maior do imaginário comum, a lenda fala-nos de um intrépido sedutor que assassina um Comendador após conquistar o coração da sua jovem filha. Quando, algum tempo mais tarde, encontra num cemitério a estátua do homem que matou, jocosamente convida-a para jantar, ao que esta prontamente acede. Procurando não se mostrar intimidado com a reacção de tão invulgar interlocutor, Don Juan prossegue com as suas fanfarronices e, ao apertar a mão à estátua para selar o acordo, vê-se por ela arrastado para o Inferno.

Pegando em matéria tão rica de significados, o colectivo Barba Azul decidiu dar um novo sentido à história e criar a sua própria versão, fazendo subir ao palco este “Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade”. Preenchendo parte do programa do último fim de semana do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, a peça mostra-nos um Don Juan que, depois daquele inesperado encontro, se esquiva ao aperto de mão da estátua e que, consequentemente, se vê perseguido, para onde quer que vá, pelo fantasma do Comendador. A solução passa por fugir no tempo, após uma “ida à bruxa” e a confirmação de que a maldição é irrevogável no tempo presente. Por artes mágicas, Don Juan acaba por “aterrar” no século XXI, em plena Lisboa, onde maldições de outra ordem o esperam.

Dividida em duas partes distintas, separadas entre si por um “conveniente” intervalo, a peça está recheada de momentos de humor e de bom teatro, embora isto seja sobretudo válido para a primeira metade. Os momentos em que Tónan Quito, no papel de Don Juan, se confronta ao mesmo tempo com as quatro amantes ou em que Rita Calçada Bastos, deixando a aldeia natal, se encontra com o seu amor e lhe explica que está grávida, são absolutamente geniais. Tudo decai sobremaneira na segunda parte, a pouca originalidade a ceder espaço ao lugar comum e a um certo mau gosto, salvando-se, apenas, o quadro do “nenúfar”. Com a peça a chegar ao fim, a previsibilidade adensa-se e o riso torna-se amarelo. Às mãos de delinquentes, madrugada alta, Don Juan morre sem glória e, com ele, uma peça que tanto prometia.

[Foto: Miguel Loureiro | facebook.com/miguelinho.loureiro]

quinta-feira, 23 de maio de 2019

TEATRO: "Tchekhov É Um Cogumelo"



TEATRO: “Tchekhov É Um Cogumelo”
Direção, concepção e adaptação | André Guerreiro Lopes
Texto | Extractos de “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov
Interpretação | Djin Sganzerla, Helena Ignez, Michele Matalon, Samuel Kavalerski, Fernando Rocha e Cleber D’Nuncio
Participação especial | Grupo Embatucadores
Cenário e figurinos | Simone Mina
Direcção musical e instalação sonora | Gregory Slivar
Preparação de canto e músicas tradicionais | Roberto Moura
Direcção de produção | Djin Sganzerla
90 Minutos | Maiores de 12
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Teatro Nacional de S. João
19 Mai 2019 | dom | 16:00


Em 1995, o então estudante de teatro André Guerreiro Lopes e mais três colegas marcaram uma video-entrevista com o director teatral José Celso Martinez Corrêa. O tema seria a peça “Três Irmãs” de Anton Tchekhov, abordando a montagem do Oficina de 1972. Nesse encontro, Zé Celso relata os bastidores de um processo criativo único, radical na trajectória do Oficina. As experiências com substâncias alucinógenas permitiram uma compreensão original da obra de Tchekhov, mas o espectáculo representou a ruptura do grupo, dividido entre a busca por um teatro sagrado e um teatro profano. O vídeo, que é exibido para o público pela primeira vez, serve de ponto de partida para “Tchekhov É um Cogumelo”. Na actual montagem, Lopes dialoga com o estilo do mentor do Teatro Oficina e mescla diferentes temas e linguagens — dos alucinógenos à neurociência, da instalação à dança — para abordar estas três mulheres confrontadas com a passagem do tempo.

O tempo é a matéria-prima deste espectáculo. Há o tempo-memória, essa memória do encontro com Zé Celso em 1995. Há o tempo das três irmãs, espaço mental que é simultaneamente refúgio e prisão: o sonho por um futuro grandioso que seria a volta a um passado perdido. Há o tempo da mente, indistinto, o movimento invisível do pensamento interferindo na acção. Eléctrodos que em tempo real captam ondas cerebrais – pensamentos, emoções, estados meditativos - e as transformam em matéria teatral, impulsos eléctricos que accionam uma instalação sonora e visual, o mundo invisível tornado visível. E há também o tempo de celebrar a força do teatro, avivando o que parece descaracterizado, compondo o que parece cindido, agitando o que parece anestesiado.

Todavia, não há um tempo fora de nós. O que a peça nos dá a ver é que nós somos o tempo. Como disse Eihei Dogen (1200-1253), o tempo não passa, não foge, somos a existência-tempo. Que bela percepção. Não há existência fora do tempo, não existe tempo fora da existência. Coabitamos o tempo presente, este exacto instante. Dancemos, portanto, este fluxo contínuo do agora, sem nada fixo ou permanente, que é o eterno tempo do teatro. O urgente e necessário tempo-teatro, espaço do rito, do encontro, da reinvenção simbólica de nós mesmos.

[Adaptação livre do texto escrito por Djin Sganzerla e André Guerreiro Lopes para esta peça]

terça-feira, 21 de maio de 2019

TEATRO: "Vaga Carne"



TEATRO: “Vaga Carne”
Criação, texto e interpretação | Grace Passô
Co-criação | Kenia Dias, Nadja Naira, Nina Bittencourt, Ricardo Alves Jr.
Musica e som | Ricardo Garcia
Pesquisa e produção | Nina Bittencourt
50 Minutos | Maiores de 14
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Mala Voadora
19 Mai 2019 | dom | 19:00


“Companheiros, eu não sou um bicho. Portanto, não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Eu não tenho a prepotência de entender os caros coitados que são, mas vamos tentar dialogar. Vamos. De diferente para diferente. Para aleatoriedade escolho falar como feminina, enquanto a vossa espécie não definir se fala como macho ou como fêmea. Sei também que vocês têm dificuldade em entender o que não é vocês mesmo. Mas eu vou tentar explicar: Sou uma voz, apenas isso!” O universo de um artista dá-se a conhecer não apenas pelo que é dito – ou representado na sua obra – mas também por aquilo que esse criador escolhe calar. Isto é “Vaga Carne”, multi-premiada peça da actriz, directora e dramaturga brasileira Grace Passô, através da qual se exibe a urgência do discurso, a busca da identidade, o sentido de pertença do eu.

Gritada ou sussurrada, a palavra partilha com o silêncio o tempo do espectáculo. Há uma mulher em palco, uma mulher negra com uma presença exuberante e um claro domínio da imagem e da pose que pretende passar. Na sua voz errante, imprevisível, as questões de género e de raça vão sendo aflorados sem o serem realmente. Fala-se de preconceito, sem nunca mencionar a palavra preconceito. Abrem-se caminhos sobre aquilo que deve ser simplesmente dito mas que precisa de existir primeiramente. Da amálgama de palavras que se vão articulando, o espectador recolhe pontas soltas e começa a perceber que todas elas têm a marca do seu próprio preconceito, o risco duma interpretação errada ou duma ideia ferida pelo equívoco tornado real.

O pacto de partilha da encenação com a plateia vem ao de cima quando Grace insta o público a manifestar-se e a entrar no jogo da verborreia. Está lançado o convite a que se debruce sobre o estereótipo da mulher negra, a vasculhar o que existe para além dessa superfície, o que lhe vai por dentro, como vê e é vista essa personagem. O resultado, esse, pode ser frustrante: não há nada de profundo aqui; qualquer que seja a mensagem, permanece adiada. Se é lágrima, é lágrima de preta: Água, quase tudo, e cloreto de sódio“Vaga Carne” é um belíssimo exercício de teatro. Do que nele é estranho - e tudo nele é estranho! - retira o espectador essa necessidade de pôr em causa a regra, de questionar a normalidade. Por estranharmos, estamos dispostos a olhar de novo, a olhar melhor. A estarmos atentos, mais atentos e vigilantes!

[Foto: Kelly Knevels / itaucultural.com.br]

domingo, 19 de maio de 2019

TEATRO: "Ala de Criados"



TEATRO: “Ala de Criados”,
de Maurício Kartun
Encenação | Marco Antonio Rodrigues
Cenografia e Figurinos | O Teatrão
Construção de Cenário | Colectivo Monte – Residência Circolando
Apoio ao movimento | Ana Figueiredo, Ana Seiça
Interpretação | Isabel Craveiro, João Santos, Rui Raposo, Telmo Ferreira
Produção | Cátia Oliveira
100 Minutos | Maiores de 16
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Auditório Municipal de Gaia
18 Mai 2019 | sab | 19:00


Fiel a um modelo de escrita teatral que privilegia a crítica social e a reflexão sobre os controversos padrões políticos e económicos que tendem a reger as sociedades, o argentino Mauricio Kartun volta a fincar o dente no pescoço de ricos e poderosos com “Ala de Criados”. Recuando um século no tempo e fazendo situar a acção na “Semana Trágica” - conflito que opôs os trabalhadores da incipiente indústria argentina à classe política e ao meio empresarial, ocorrido em Janeiro de 1919 -, o dramaturgo conta-nos a história dos muito finos e aristocráticos primos Guerra (Tatana, Emilito e Pancho), “refugiados” num elegante clube de Mar del Plata durante os acontecimentos, onde passando os dias no marasmo dos banhos de sol, a atirarem aos pombos e a beber Bloody Mary, àen quanto esperam que tudo regresse à normalidade.

De forma ambígua e com tanto de cinismo como de crueldade, Kartun introduz no mundo destes primos a personagem de Pedro Testa, modesto empresário do negócio dos pombos e fornecedor do clube de tiro, por momentos chamado a um convívio mais íntimo com os ricos, convencendo-se então que também é um deles. Mas o tempo vai passando e o tédio instala-se. Torna-se urgente fazer alguma coisa. Com a ajuda de Pedro e das suas armas, os três primos contribuirão para o esmagamento da revolta cujo trágico saldo se contará em sete centenas de mortos. Do alto da sua soberba, com mão de ferro, os ricos seguirão ditando as suas leis.

Começando pelos actores, diremos que se mostram exemplares em papéis deveras desafiantes. Isabel Craveiro, João Santos e Telmo Ferreira, encarnando respectivamente Tatana, Pancho e Emilito, carregam em si essa atitude paternalista e hipócrita de quem tudo pode e que, a nós, espectadores, agonia e atrai ao mesmo tempo, enojados de tanta pulhice mas não imunes à atracção que a riqueza dita. E depois há Rui Raposo, o Pedra Testa da peça, palavroso, bem falante, a dar-se ares, “dono da situação” na hora de distribuir as armas, fracassando no momento de as receber de volta, o feitiço a virar-se, enfim, contra o feiticeiro. Finalmente, o texto: Em país de Salgados, Berardos & Companhia, todos tão encantadores, tão gente de bem, tão unha e carne uns com os outros, todos sorrisos, ver “Ala de Criados” é mergulhar na podridão do mundo dos ricos. Ali se espelha uma certa sociedade tal como ela é, com as suas misérias e as suas vãs glórias, a vida a duas velocidades, portugueses de primeira e de segunda, as desigualdades sociais cada vez mais vincadas. Daí também o desconforto, “uma força a crescer-te nos dedos e uma raiva a nascer-te nos dentes”. A ver, absolutamente!

[Foto: Carlos Gomes / facebook.com/oteatrao]

quinta-feira, 16 de maio de 2019

TEATRO: "Argila"



TEATRO: “Argila”
Encenação e co-criação | Bruno Martins
Interpretação e co-criação |André Araújo, Ariana Silva, Cláudia Berkeley
Cenografia | Colectivo Monte
Desenho de luz | Valter Alves
Direção e composição musical | Rui Souza
Direção de Produção | Marta Lima
Produção | Teatro da Didascália, Centro de Arte de Ovar
60 Minutos | Maiores de 12 anos
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Auditório Municipal de Gaia
12 Mai 2019 | dom | 15:00


Se há palavras que me fazem recuar ao período da infância, argila é uma delas. Nasci em terra de oleiros, cresci à sombra de uma fábrica de tijolos à qual um assombroso incêndio pôs fim numa noite quente de Verão e sempre tive um natural fascínio pelo barro e pela arte de o trabalhar, um pedaço de matéria informe a cheirar a terra de súbito a ganhar corpo num par de voltas da roda do artífice. Talvez por esse motivo, não pude deixar de sorrir quando recebi a original folha de sala da peça de teatro “Argila”, os meus dedos a rodarem os dois círculos sobrepostos de dimensões diferentes, os desenhos neles inscritos em fantásticos encontros e desencontros, a evolução das espécies a materializar-se, a frase “no princípio era o verbo” ao encontro do criador e da criação.

O dispositivo cénico é simples. Há uma roda a girar no centro do palco, sobre ela um “tapete” de argila e sobre a argila três seres. De início muito rudimentares, os seus movimentos vão ganhando amplitude, vencendo assimetrias, o gesto cada vez mais preciso, o equilíbrio enfim conquistado. Neste processo evolutivo, estes seres vão tomando consciência de si e do espaço que os rodeia, aprendem a conhecer-se, a estruturar-se, a conviverem entre si enquanto grupo, a relacionarem-se com outros grupos. Descobrem que têm a capacidade de emitir sons e que a sua articulação, quando organizada, dá lugar à linguagem. Sentem, enfim, que no seu íntimo há lugar para o outro, buscando-o, amando-o, assim mantendo em marcha esta roda do grande oleiro no fantástico processo da criação.

Depois da massa fresca do pão e da farinha traçando o imaginário absurdo de um padeiro solitário (“One Man Alone”, 2014) e dos materiais de construção civil e da sua relação atribulada com um vigilante nocturno (“O Vigilante Nocturno”, 2018), o colectivo Teatro da Didascália volta a centrar a sua atenção nos materias e na sua manipulação, levando à cena “Argila”, uma co-produção com o Centro de Artes de Ovar. Estamos aqui perante um exercício de teatro físico, as artes circenses sempre presentes, a resistência e capacidade de concentração dos actores postas continuamente à prova. André Araújo, Ariana Silva e Cláudia Berkeley mostram-se irrepreensíveis nos seus papéis, metamorfoseando-se de forma subtil para nos contarem uma história com início há 4,5 mil milhões de anos. Uma história onde cabem o barro e o sangue, o silêncio e o grito, a ternura e a lágrima, a dor e o amor.

[Foto: Jonathan da Costa / teatrodadidascalia.com]

sábado, 11 de maio de 2019

TEATRO: "Amores Pós-Coloniais"



TEATRO: “Amores Pós-Coloniais”
Criação | André Amálio
Co-criação e movimento | Tereza Havlíčková
Criação musical | Pedro Salvador e Romi Anauel
Colaboração | Selma Uamusse e Toni Fortuna
Cenografia | Pedro Silva e Hugo Migata
Interpretação | André Amálio, Júlio Mesquita, Laurinda Chiungue, Pedro Salvador, Romi Anauel, Tereza Havlíčková
Produção | Hotel Europa
90 minutos | Maiores de 14
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Teatro do Campo Alegre - Sala-Estúdio
10 Mai 2019 | sex | 19:00


“Love is – if it is really love – a form of eternal dynamism and at the same time fidelity to the first encounter. It is a tension, or better, a sort of dialectics: between dynamism and fidelity. The same holds for Revolution. The moment when a revolution stops to reinvent, not only social and human relations, but stops reinventing its own assumptions, we usually end up in a re-action, in a regression. A truly revolutionary moment is like love; it is a crack in the world, in the usual running of things. Love is Revolution!”

Srećko Horvat, “The Radicality of Love”


São seis actores em palco. Recuam no tempo e falam de amor, dos seus amores, definem a forma como os vêem e sentem, falam das primeiras vezes. E das segundas e das terceiras. Esclarecem que estão ali para falar de amor. “Não estamos interessados em teatro político, não. Queremos falar de amor. De amor pós-colonial”, afirmam. E falam do amor que encontraram na pequena aldeia de Pontével, no concelho do Cartaxo, numa juke-box em Lourenço Marques, no nascimento duma criança nos Açores, num clube de Lisboa. Mas também do Porto e de Coimbra e de Angola e de Moçambique e da Guiné-Bissau e do Brasil. Tal como Srećko Horvat, gritam que “o amor é Revolução”.

Como que pretendendo colocar um ponto final num ciclo que teve o seu início com “Portugal Não É Um País Pequeno” (2015) e prosseguiu depois com “Passa-Porte” e “Libertação” (ambos de 2017), projectos que passaram em revista o período do Estado Novo e da Guerra Colonial, o colectivo Hotel Europa começa por afirmar a sua vontade em desligar-se do teatro de cariz político, mas cedo se percebe uma profunda ironia nesta “carta de intenções”. Assentando no teatro documental, “Amores Pós-Coloniais” mergulha fundo no espaço colonial e pós-colonial, em busca do amor (ou da possibilidade do amor) em condições sociais, culturais e políticas particularmente controversas. Para tal, a companhia encetou uma residência artística em Pontével, recolheu dezenas de depoimentos e trouxe dezasseis desses testemunhos à Sala-Estúdio do Teatro do Campo Alegre, vertendo-os, incómodos, “a frio”, sobre o público. Dezasseis testemunhos que foram dezasseis murros no estômago. Em nome da verdade!

Ao longo de quase duas horas, iremos percebendo que “Amores Pós-Coloniais” levantam um conjunto de questões às quais a sociedade portuguesa teima em não responder. André Amálio, Tereza Havlíčková e o restante elenco fazem questão de partilhar com o público o seu próprio testemunho, a surpresa que foi escutarem as histórias de violência gratuita no estalar do conflito armado nas antigas províncias ultramarinas, a surpresa ao perceberem a forma como uma mulher negra era espiada à mesa para garantir se comia com garfo ou simplesmente com as mãos, a surpresa de verem como outra mulher negra, acompanhada do filho ainda criança, foi racial e sexualmente atacada num autocarro em Lisboa, a surpresa de sentirem o medo na alma do homem negro que foge e se esconde nas ruelas do Bairro Alto, nessa mesma noite em que um português, Alcino Monteiro, foi cobardemente assassinado por um bando de cabeças rapadas, apenas porque a cor da sua pele era diferente. A surpresa – meu Deus, a enorme surpresa! - de ver os comportamentos e atitudes do líder desse mesmo bando branqueados num programa de televisão em Portugal. Não em 1995, à data do crime, não vinte anos depois, mas em 2019. Na manhã de 3 de janeiro de 2019. E uma palavra sobe-nos à boca, como um vómito: vergonha!

Amor e revolução. Revolução e amor. Mas como falar de amor quando a mulher preta é objectificada, usada e abusada, os frutos das relações imorais mantidas com uma parte desse milhão de jovens soldados que demandaram as colónias entre 1961 e 1974 espalhado por toda a África, Portugal a assobiar para o lado sem reconhecer os nascidos nestas condições como cidadãos portugueses de pleno direito? E como falar de amor quando o homem preto, sobrevivente do horror e trazido para Portugal, convive com aquele que matou ou ajudou a matar os seus pais (podia ser António Lobo Antunes a “massacrar-nos” com a narrativa doentia de “Até Que As Pedras Se Tornem Mais Leves Do Que A Água”)? Ou como falar de amor quando a rapariga, tentando esbater os estigmas da sua cor, alisando os cabelos, os cremes a clarearem a pele, deixa de gostar de si própria (aqui é Djaimilia Pereira de Almeida e o notável “Esse Cabelo” que nos relembra o “drama” da mulher preta)? “Amores Pós-Coloniais” é uma preciosa achega para um debate que está por fazer. Um debate urgente, como o amor!

[Foto: Filipe Ferreira / tndm.pt]

quinta-feira, 21 de junho de 2018

TEATRO: "Mendoza"



TEATRO: “Mendoza”
Ideia original e direcção | Juan Carrillo
Adaptação | Antonio Zúñiga e Juan Carrillo, a partir de Macbeth de William Shakespeare
Interpretação | Marco Vidal, Mónica del Carmen, Erandeni Durán, Leonardo Zamudio, Martín Becerra, Germán Villarreal, Ulises Martínez, Alfredo Monsivais, Roam León y Yadira Pérez
Máscaras | Martín Becerra
Produção | Los Colochos Teatro
Teatro Nacional de S. João
20 jun 2018 | qua | 21:00
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


Por um lado há “Macbeth”, a mais enigmática tragédia shakespeareana, tendo como ponto de partida o encontro de um obscuro chefe de clã com três bruxas que lhe comunicam três profecias, uma das quais – a de que será coroado Rei da Escócia – despertará nele uma terrível ambição e dará início a uma espiral de violência, loucura e morte. Por outro lado temos a Revolução Mexicana, com início em 20 de Novembro de 1910, que acabou com a longa ditadura de 34 anos do general Porfírio Diáz e gerou o levantamento de líderes revolucionários icónicos como Francisco Madero, Emiliano Zapata ou Pancho Villa. Conjugando a intemporalidade da obra de Shakespeare com o mais marcante acontecimento do México no século XX, Juan Carrillo constrói “Mendoza”, perturbadora metáfora do mundo depravado em que vivemos, onde o bom é mau, o feio é belo e o justo, injusto.

A acção decorre no interior dum quadrado, os adereços reduzidos a algumas mesas e cadeiras, o público sentado em redor, misturando-se com os nove actores em palco. Bebe-se cerveja mexicana (o público também bebe). Tudo o mais é violência, assassinatos, remorsos, bruxarías e mortos que sussurram vinganças. E sangue, muito sangue, neste que é um Macbeth à mexicana, ou seja, uma peça que respeita a estrutura original da obra de Shakespeare e preserva os seus episódios principais, mas com outras palavras e outros referentes, dando a ver a realidade do México de ontem e de hoje (a contagem dos 43 estudantes mortos no massacre de Iguala, em 26 de Setembro de 2014, é um verdadeiro murro no estômago do espectador). Também a poética do texto original é alvo da necessária adequação, cedendo uma boa parte do seu lugar à oralidade do quotidiano - uma linguagem dura e agressiva onde cabe o palavrão, a par de rezas e ladaínhas reveladoras duma crendice que combina, em partes iguais, o sagrado e o profano.

Da sábia forma como funde o clássico com o moderno, retira “Mendoza” a sua grande força e fascínio. É que não se trata apenas de reinterpretar um texto maior da literatura, algo feito pela enésima vez em teatro. É sobretudo na encenação, na forma como Juan Carrillo se apega ao detalhe, coreografa os movimentos e tira o maior partido da intensidade do brilhante texto - uma adaptação sua e de Antonio Zúñiga -, que reside a marca distintiva desta peça. E há, claro, os actores, rigorosos na forma como encarnam as personagens, convincentes na sua enorme expressividade, comoventes na musicalidade das suas palavras, emocionantes na naturalidade com que interagem com o público. William Shakespeare ter-se-ía sentido arrebatado e orgulhoso vendo como Los Colochos Teatro souberam tratar tão bem o texto original, firmando a ouro uma das mais belas páginas da história do FITEI!


quarta-feira, 20 de junho de 2018

TEATRO: "Lulu"



TEATRO: “Lulu”
A partir de | “Espírito da Terra” (1903) e “A Caixa de Pandora” (1904), de Frank Wedekind
Encenação | Nuno M. Cardoso
Dramaturgia | Nuno M. Cardoso e João Luis Pereira
Cenografia | Nuno Carinhas
Interpretação | Afonso Santos, António Afonso Parra, Catarina Gomes, Daniela Cruz, João Cardoso, João Melo, Mafalda Lencastre, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Sara Garcia e Vera Kolodzig
Produção | Teatro Nacional de S. João
Teatro Carlos Alberto
17 Jun 2018 | dom | 16:00
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


Há peças das quais gostamos muito, outras assim-assim e outras que, definitivamente, não nos caem no goto, comportam pouco valor acrescido, tornam-se fastidiosas, representam uma enorme perda de tempo. Ora, “Lulu” encaixa-se nesta última categoria. Não porque o texto não seja bom – esta é a história duma mulher que vive na opulência mas que repudia a dependência dos vários maridos que vão surgindo na sua vida e acaba a prostituir-se nas ruas de Londres –, mas porque assenta numa encenação medíocre, sem chama nem brilho, confrangedoramente à margem de qualquer lampejo de imaginação.

Dando vida à mesma personagem em diferentes momentos da acção, Vera Kolodzig, Catarina Gomes e Sara Garcia jamais conseguem fazer passar a ideia de “mulher fatal” inerente à condição da protagonista, antes pactuam com o tom baço e cinzentão da peça, afundando-se no estereótipo. Particularmente penoso é o último acto, os “clientes” a sucederem-se, o tom monocórdico dos diálogos a eternizar-se, a paciência do espectador já completamente esgotada de tanto vai e vem estéril de ideais, opaco de sentido. Com “Lulu”, o FITEI 2018 dá um verdadeiro “tiro no pé”. Ou talvez não. Afinal, sempre é necessária uma excepção para que qualquer regra se confirme. E a regra dita que o nível deste FITEI seja enorme.

[Foto: facebook.com/FestivalFITEI]

terça-feira, 19 de junho de 2018

TEATRO: "Margem"



TEATRO: “Margem”
Texto | Joana Craveiro
Direcção | Victor Hugo Pontes
Cenografia | F. Ribeiro
Música | Marco Castro e Igor Domingues
Interpretação | Alexandre Tavares, André Cabral, David S. Costa, Hugo Fidalgo, João Nunes Monteiro, José Santos, Magnum Soares, Marco Olival, Marco Tavares, Nara Gonçalves, Rui Pedro Silva e Vicente Campos
Produção | Nome Próprio
Teatro do Campo Alegre
16 Jun 2018 | sab | 17:00
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


— Esta não é uma história de 1937.
— Ou só de 1937.
— E todos os exemplares queimados do livro numa praça pública da Bahia não conseguiram que a história ficasse só em 1937 e aí morresse.
— Junto com o Sem-Pernas que se lançou no morro, com ódio dos que o perseguiam.
— Junto com a Dora que morreu de amor.
— De febre.
— De amor.
— Junto com todos os outros que nestes 80 anos ficaram pelo caminho.
— Às vezes pensamos que caminho é este que engole tantos.
— Sem que eles tenham tempo de dizer «estamos aqui».

80 anos volvidos sobre a publicação de “Capitães da Areia” - retrato amargo dos meninos de rua no trapiche baiano, da autoria de Jorge Amado -, Victor Hugo Pontes recuperou o tema e foi à procura dos novos “capitães da areia”, aqueles meninos e meninas que, nos dias de hoje, não tendo cometido crime algum, tiveram apenas a má sorte de nascer no lugar errado, algures na margem (ou à margem) da Sociedade. Com assinatura de Joana Craveiro, o texto da peça tem por base os relatos de jovens de duas instituições parceiras neste trabalho – a Casa Pia, de Lisboa e o Instituto Profissional do Terço, no Porto – e dele resulta um espectáculo de dança e teatro em partes iguais, muito rico visualmente e com uma mensagem social assertiva e plena de actualidade.

A música de Marco Castro e Igor Domingues (Throes + The Shine) espalha-se já pela sala quando as portas do Auditório se abrem para que o público possa entrar. Também já lá estão os doze jovens actores, acompanhados por duas mãos cheias de figurantes muito mais novos, uma imensa energia naqueles corpos franzinos, muita briga e jogo de bola, uma palmeira a assistir discretamente às brincadeiras das crianças e a fazer a ponte entre o Brasil tropical, palco da acção do livro, e este lado de cá do Atlântico, esta outra margem de tanto mar. Não temos aqui Pedro Bala, João Grande, o Professor, o Sem-Pernas, o Pirulito, a Dora ou o Volta-Seca, mas temos o Alexandre, o Rui Pedro, o Hugo, o David, a Nara – maravilhosa Nara, bravo! -, o Magnum ou o Marco, o que vai dar no mesmo, que o mesmo é dizer, na mesma polícia que reprime, no mesmo medo e dor, na mesma casa onde a felicidade fica à porta.


“Pobres como podres”, os novos capitães da areia partilham com os meninos de Jorge Amado uma casa que não é sua, a ausência de um pai ou de uma mãe, o estarem em défice logo à partida ou terem-se visto em défice por razões às quais são alheios. Aqui, ser criança não é achar que tudo é fantasia ou acreditar num mundo cor de rosa cheio de pipocas. Bem pelo contrário, é não pedir com os olhos, é não acreditar no poder dum sorriso, é desconhecer o carinho e o afecto. Com “Margem”, Victor Hugo Pontes abre as portas a uma realidade que afecta actualmente mais de 8.000 crianças e jovens em Portugal e deixa-nos um recado que se nos cola à pele. É o teatro, uma vez mais, a cumprir a sua missão de revelar tudo aquilo que não é imediato, a ir ao fundo do Homem.


segunda-feira, 18 de junho de 2018

TEATRO: "Provisional Figures"



TEATRO: “Provisional Figures”
Texto | Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares
Encenação e Dramaturgia | Marco Martins
Cenografia | Fernando Ribeiro
Interpretação | Ana Moreira, Ivan Ammon, Maria do Carmo Ferreira, Pedro Cassimo, Pete Dewar, Richard Raymond, Robert Elliot, Sérgio Cardoso de Pinho, Victoria River
Produção | CCTAR – Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua
Teatro Rivoli – Palco do Grande Auditório
16 Jun 2018 | sab | 19:00
FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


“Um pela agonia,
Dois pela alegria,
Três pela menina,
Quatro pelo menino,
Cinco pela prata,
Seis pelo ouro,
Sete pelo segredo
Seguro num tesouro.
Oito pelo desejo,
Nove pelo beijo,
Dez pela ave
Mais bela que vejo.
Pega.”

O espectáculo está prestes a começar. O público vai tomando o seu lugar e de imediato se dá conta que irá partilhar os assentos na plateia com os actores, cujas cadeiras, dispersas pela sala, estão reservadas. Enquanto se espera pelo início do espectáculo, o som de fundo é o de entrevistas gravadas que remetem para experiências de vida particularmente duras em contexto laboral, a integridade e a própria dignidade da pessoa feridas em nome desse “bem maior” que é o ter trabalho, seja a que preço for. Na verdade a peça já começou e é Marco Martins a colocar-nos um nó na garganta ao dizer-nos que a Ana ou o Robert, o Sérgio, a Victoria, a Carmo ou qualquer um dos outros, somos nós. Um nó que se aperta à medida que os (não) actores vão surgindo em palco e expondo o provisório das suas vidas, a precariedade e a humilhação, o dinheiro escasso e a família longe, a felicidade e o amor eternamente adiados.

Culminando um processo de dois anos de investigação junto da comunidade portuguesa de Great Yarmouth e baseando-se nos testemunhos individuais de quem viveu de perto este período de incerteza, “Provisional Figures” propõe-nos uma reflexão sobre os problemas da identidade e da emigração num contexto urbano fortemente abalado pela crise económica e consequentes convulsões sociais. É um trabalho que mergulha numa realidade relativamente desconhecida em Portugal e que nos fala da emigração no auge da crise económica (2009-2014), em particular para a região de Norfolk, outrora destino balnear de eleição para os britânicos, agora reconvertido em centro da indústria de transformação alimentar.

Com “Provisional Figures”, Marco Martins volta a privilegiar o teatro do real, oferecendo-nos uma peça de enorme significado e alcance, em nome da crise, uma verdade que não pode ser esquecida. Uma crise que se revelou tremenda para milhões de pessoas sobretudo nos países do Sul da Europa, desestruturou famílias, comunidades inteiras, levou ao desemprego em massa, encerrou milhares de micro, pequenas e médias empresas... mas que deu muito jeito a alguns. E que pode estar aí ao virar da esquina, doa a quem doer, porque pode vir a dar jeito a alguns outros, afinal os mesmo de sempre. A presença dos não actores em palco reforça a mensagem, espicaçando recorrentemente o público com essa ideia tão querida ao encenador de que “todo o mundo é um palco”. E é, finalmente, o homem que está em causa, enquanto indivíduo dito superior, a revelar-se pior do que qualquer outro animal, o mais cruel para os outros e para si próprio.


quarta-feira, 13 de junho de 2018

TEATRO: "Caranguejo Overdrive"



TEATRO: “Caranguejo Overdrive”
Encenação | Marco André Nunes
Dramaturgia |Pedro Kosovski
Interpretação | Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Matheus Macena, Fellipe Marques
Músicos em cena | Maurício Chiari, Pedro Leal, Pedro Nego
Produção | Aquela Cia. de Teatro
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


A sinopse da peça diz-nos que esta é a história de Cosme, apanhador de caranguejos no mangue carioca, e da sua loucura decorrente da participação na Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX. Uma história que o trará de volta ao Rio de Janeiro onde encontrará uma cidade em grande transformação, uma cidade que já não reconhece e que o fará sentir-se como que exilado na sua própria terra. Mas “Caranguejo Overdrive” é muito mais do que isso. É a lama e a imundície, a sobrevivência no fio da navalha, a sanha do opressor e a miséria dos que trabalham por um prato de arroz. É a corrupção e os compadrios, os casos mal parados e a criminalidade, a ganância dos poderosos e a impunidade. É Tancredo Neves e Sarney e Collor e Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e Lula e Dilma e Temer, muito escândalo e muito samba, muito impeachment e muito recurso eternamente à espera de decisões que decidem para que tudo fique na mesma. É o obscurantismo, a macumba, as favelas e o desastre ambiental de Mariana. E é Marielle Franco, socióloga, feminista e defensora dos direitos humanos, executada com três tiros na cabeça e um no pescoço há escassos meses atrás.

Servindo-se de um acontecimento marcante da história do Brasil – travada entre o Paraguai e a Tripla Aliança, composta pelo Brasil, Argentina e Uruguai, a Guerra do Paraguai foi o maior conflito internacional ocorrido na América do Sul até aos dias de hoje -, a peça faz uma atualização do momento actual da cidade maravilhosa (e, por extensão, do próprio Brasil), assumindo um cunho vincadamente político. Com o dedo acusador apontado ao poder e aos seus sequazes, “Caranguejo Overdrive” é um grito desesperado que rompe amarras e clama por justiça e paz, por pão e trabalho. É um manifesto que reivindica um Brasil justo e livre, onde todos tenham as mesmas oportunidades e direitos, onde a tão propalada justiça social não seja um insulto aos mais pobres. Mas também um Brasil onde os criadores, os artistas, não sejam ostracizados, onde possa haver dinheiro para fazer teatro.

Conjugando o brilhantismo dum texto apoiado na estética e sonoridade do movimento artístico “manguebeat”, de Chico Science (meados da década de 90), com a capacidade interpretativa dos cinco actores e três músicos em palco – sublime Carolina Virgüez no “monólogo da visita guiada”, toda ela rigor, expressividade, humor e encantamento -, “Caranguejo Overdrive” é uma lição de teatro intensa e profunda, como um sopro vital. A energia que emana dum forte vínculo ao teatro experimental, a força da sua mensagem política e de intervenção e a riqueza das imagens que convoca, resultam em momentos de teatro únicos, modelares, inspiradores. Esta é uma daquelas peças que arrastam o espectador numa torrente emocional de palavras, gestos e ideias, obrigando-o a envolver-se numa realidade que também é sua, na certeza de que qualquer transformação social só ganha sentido como acto solidário. Manifesto de coragem, vibrante e libertador, “Caranguejo Overdrive” é a pedrada no charco duma sociedade que há muito perdeu o sentido da palavra “nós”, onde os indivíduos escavam cada vez mais fundo na lama, refugiando-se na dureza das suas carapaças quitinosas, aí permacendo furtivamente à espera do seu momento. Tal como os caranguejos!


terça-feira, 12 de junho de 2018

TEATRO: "Longe"



TEATRO: “Longe
Direcção e texto | Raquel S.
Interpretação | Margarida Gonçalves
Cenografia | Catarina Barros
Música | José Alberto Gomes
Produção | Noitarder – Associação Cultural
FITEI 2018 – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


“Longe”, de Raquel S., abriu a 41ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica sob os melhores auspícios. No Auditório do Teatro do Campo Alegre, sozinha em palco, Margarida Gonçalves agarrou o público “pelas tripas” ao invadir os domínios do hiper-realismo, num monólogo intenso e carregado  de emoção. Minimalista, o cenário pode muito bem ser o de uma sala de aula onde decorre uma dissertação científico-filosófica, o palco a estender-se inteligentemente para lá das suas linhas de demarcação e a fazer com que o público se torne parte integrante da peça. No intimismo desse espaço restrito (que a grande proximidade entre actriz e público acentua), “professora” e “alunos” congregam interesses e esforços, irmanados num mesmo propósito, o de perceber os contornos e os limites da memória ou o que fica de alguém próximo que morreu.

Baseada num texto engenhosamente trabalhado, a peça remexe no mais íntimo de cada um, ao encontro de matéria que preencha o vazio da perda. Apoiando-se em palavras, ideias, artigos ou histórias de figuras ilustres – Rimbaud, Freud, Susan Sontag, Proust, Samuel Beckett, Herberto Hélder ou Edgar Allan Poe – ou de simples “apontamentos de aluno desconhecido de uma aula da disciplina de Medicina Legal”, Raquel S. constrói uma peça que cruza vários campos, trabalhando a temática da morte com o distanciamento que se exige mas aproximando-se o suficiente para a tornar matéria palpável de análise e reflexão. Uma reflexão que, no imediato, conduz o espectador ao encontro das suas próprias vivências e memórias, dos seus medos e fantasmas, vergado ao peso de um enorme ponto de interrogação.

Uma cortina que divide o palco, ora funciona como um adereço que sugere a “passagem” do lado material para o imaterial, do campo dos vivos para o dos mortos (e vive-versa), ora sublinha as inúmeras dimensões duma discussão que nunca se afasta do valor da memória, do sonho ou da fantasia, enquanto rastos de vidas que já não voltam. Convidado a “passear” pelos cenários interiores do “eu” e a partilhar as dúvidas que se avolumam em torno do que é real ou apenas aparente (a fotografia, entendida como “verdade”, alcança neste contexto o valor de insofismável embuste), o espectador acaba mergulhado na certeza de não ter já certeza alguma. No limite, com “Longe”, o teatro exerce de forma superior a sua função transformadora, criando um forte impacto emocional e levantando questões a exigir respostas. A isto não é alheio – importa sublinhar – a notável representação de Margarida Gonçalves, uma verdadeira máquina de “dizer texto”, sem quebras no ritmo e na dinâmica em palco e, com isso realçando a qualidade literária da peça e garantindo o empolgamento crescente do público. Bravo!