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terça-feira, 21 de maio de 2019

TEATRO: "Vaga Carne"



TEATRO: “Vaga Carne”
Criação, texto e interpretação | Grace Passô
Co-criação | Kenia Dias, Nadja Naira, Nina Bittencourt, Ricardo Alves Jr.
Musica e som | Ricardo Garcia
Pesquisa e produção | Nina Bittencourt
50 Minutos | Maiores de 14
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Mala Voadora
19 Mai 2019 | dom | 19:00


“Companheiros, eu não sou um bicho. Portanto, não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Eu não tenho a prepotência de entender os caros coitados que são, mas vamos tentar dialogar. Vamos. De diferente para diferente. Para aleatoriedade escolho falar como feminina, enquanto a vossa espécie não definir se fala como macho ou como fêmea. Sei também que vocês têm dificuldade em entender o que não é vocês mesmo. Mas eu vou tentar explicar: Sou uma voz, apenas isso!” O universo de um artista dá-se a conhecer não apenas pelo que é dito – ou representado na sua obra – mas também por aquilo que esse criador escolhe calar. Isto é “Vaga Carne”, multi-premiada peça da actriz, directora e dramaturga brasileira Grace Passô, através da qual se exibe a urgência do discurso, a busca da identidade, o sentido de pertença do eu.

Gritada ou sussurrada, a palavra partilha com o silêncio o tempo do espectáculo. Há uma mulher em palco, uma mulher negra com uma presença exuberante e um claro domínio da imagem e da pose que pretende passar. Na sua voz errante, imprevisível, as questões de género e de raça vão sendo aflorados sem o serem realmente. Fala-se de preconceito, sem nunca mencionar a palavra preconceito. Abrem-se caminhos sobre aquilo que deve ser simplesmente dito mas que precisa de existir primeiramente. Da amálgama de palavras que se vão articulando, o espectador recolhe pontas soltas e começa a perceber que todas elas têm a marca do seu próprio preconceito, o risco duma interpretação errada ou duma ideia ferida pelo equívoco tornado real.

O pacto de partilha da encenação com a plateia vem ao de cima quando Grace insta o público a manifestar-se e a entrar no jogo da verborreia. Está lançado o convite a que se debruce sobre o estereótipo da mulher negra, a vasculhar o que existe para além dessa superfície, o que lhe vai por dentro, como vê e é vista essa personagem. O resultado, esse, pode ser frustrante: não há nada de profundo aqui; qualquer que seja a mensagem, permanece adiada. Se é lágrima, é lágrima de preta: Água, quase tudo, e cloreto de sódio“Vaga Carne” é um belíssimo exercício de teatro. Do que nele é estranho - e tudo nele é estranho! - retira o espectador essa necessidade de pôr em causa a regra, de questionar a normalidade. Por estranharmos, estamos dispostos a olhar de novo, a olhar melhor. A estarmos atentos, mais atentos e vigilantes!

[Foto: Kelly Knevels / itaucultural.com.br]

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