TEATRO: “Vaga Carne”
Criação, texto e interpretação |
Grace Passô
Co-criação | Kenia Dias, Nadja
Naira, Nina Bittencourt, Ricardo Alves Jr.
Musica e som | Ricardo Garcia
Pesquisa e produção | Nina
Bittencourt
50 Minutos | Maiores de 14
50 Minutos | Maiores de 14
FITEI – Festival Internacional de
Teatro de Expressão Ibérica
Mala Voadora
19 Mai 2019 | dom | 19:00
“Companheiros, eu não sou um bicho.
Portanto, não posso falar por vocês. Respeito vossas existências.
Eu não tenho a prepotência de entender os caros coitados que são,
mas vamos tentar dialogar. Vamos. De diferente para diferente. Para
aleatoriedade escolho falar como feminina, enquanto a vossa espécie
não definir se fala como macho ou como fêmea. Sei também que vocês
têm dificuldade em entender o que não é vocês mesmo. Mas eu vou
tentar explicar: Sou uma voz, apenas isso!” O universo de um
artista dá-se a conhecer não apenas pelo que é dito – ou
representado na sua obra – mas também por aquilo que esse criador
escolhe calar. Isto é “Vaga Carne”, multi-premiada peça da
actriz, directora e dramaturga brasileira Grace Passô, através da
qual se exibe a urgência do discurso, a busca da identidade, o
sentido de pertença do eu.
Gritada ou sussurrada, a palavra partilha com o silêncio o tempo do espectáculo. Há uma mulher em palco, uma mulher negra com uma
presença exuberante e um claro domínio da imagem e da pose que
pretende passar. Na sua voz errante, imprevisível, as questões de
género e de raça vão sendo aflorados sem o serem realmente.
Fala-se de preconceito, sem nunca mencionar a palavra preconceito.
Abrem-se caminhos sobre aquilo que deve ser simplesmente dito mas que
precisa de existir primeiramente. Da amálgama de palavras que se vão
articulando, o espectador recolhe pontas soltas e começa a
perceber que todas elas têm a marca do seu próprio preconceito, o risco duma interpretação errada ou duma ideia ferida pelo equívoco tornado real.
O pacto de partilha da encenação com
a plateia vem ao de cima quando Grace insta o público a
manifestar-se e a entrar no jogo da verborreia. Está lançado o
convite a que se debruce sobre o estereótipo da mulher negra, a
vasculhar o que existe para além dessa superfície, o que lhe vai
por dentro, como vê e é vista essa personagem. O resultado, esse, pode ser frustrante: não há nada de profundo aqui; qualquer que seja a
mensagem, permanece adiada. Se é lágrima, é lágrima de preta: Água, quase tudo, e cloreto de sódio. “Vaga Carne” é um belíssimo exercício de teatro. Do que nele é estranho - e tudo nele é estranho! - retira o espectador essa necessidade de pôr em causa a regra, de questionar a normalidade. Por estranharmos, estamos dispostos a olhar de novo, a olhar melhor. A estarmos atentos, mais atentos e vigilantes!
[Foto: Kelly Knevels / itaucultural.com.br]
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