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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

DANÇA: "The Köln Concert" | Trajal Harrell



DANÇA: “The Köln Concert”
Schauspielhaus Zürich Dance Ensemble
Coreografia, encenação, banda sonora, figurinos | Trajal Harrell
Música | Keith Jarrett, Joni Mitchell
Interpretação | New Kyd, Maria Ferreira Silva, Trajal Harrell, Rob Fordeyn, Thibault Lac, Songhay Toldon, Ondrej Vidlar
Produção | Schauspielhaus Zürich
50 Minutos | Maiores de 6 anos
Rivoli - Grande Auditório
13 Set 2024 | sex | 19:30


Quando, em 1975, Keith Jarrett pisou o palco da magnífica sala da Ópera de Colónia, a primeira coisa que reparou foi no piano. Nem todos os pianos são iguais, como sabemos, e este não era o correcto para o programa que se propunha apresentar. Sentou-se e mostrou-se exímio na forma como conseguiu disfarçar o incómodo. No pousar ritmado dos dedos sobre as teclas, desenvolveu um exercício de improvisação com a duração aproximada de uma hora. A sua gravação tornou-se num dos álbuns mais vendidos da história da música clássica e do jazz: “The Köln Concert”. Vem isto a propósito de Trajal Harrell, coreógrafo americano que há muitos anos sonhava em trabalhar a peça mítica de Keith Jarrett e levá-la a palco. Fruto da multiplicidade de experiências e vivências, eis-nos perante uma visão pessoal de “The Köln Concert”, a concretização de um sonho que reflecte a diversidade das suas influências. São sete os intérpretes em palco - entre os quais o próprio Harrell - a quem é prometida uma partitura musical de carácter surpreendente. Têm à sua espera sete bancos de piano e um desafio artístico único, que une o ritmo ao gesto, a voz ao movimento, a dança à música.

Com um solo de abertura ao som da voz de Joni Mitchell, Trajal Harrell sobe ao palco sozinho e depois povoa-o com criaturas marginalizadas transformadas em indivíduos independentes, desafiando o seu abandono em momentos de dor, sensualidade e adversidade. Nesse início de espectáculo, rapidamente se percebe que o desafio artístico não recai apenas sobre os intérpretes. A plateia é chamada a “ler” a peça, mas o livro que tem nas mãos está escrito em braille. De leitura imediata só os figurinos, determinantes na identificação de estratos sociais díspares, elementos que encontram prolongamento na música, na forma diversa como cada indivíduo a sente e vive. Mais subtilmente, o corpo como memória colectiva acaba por se impor, já que a ausência de contacto físico, traço indelével do carácter deste “The Köln Concert”, remete para tempos de incerteza e angústia. E nem precisamos de recuar muito, lembrando o período da pandemia, o estigma social, a contabilidade dos mortos, a obrigatoriedade do distanciamento social. Da necessidade, em 2020, de limitar o contacto físico durante os ensaios, surgiram os bancos de piano, espaços de individualidade por excelência. É neles que os intérpretes se sentam num dos quadros iniciais e, de forma conjunta, fazem assentar a sua performance, em exclusivo, em insinuantes “ports de bras” e movimentos ondulantes do tronco.

Numa conversa pós-espectáculo no âmbito da Bienal de Dança de Veneza 2024 - na qual recebeu o Leão de Prata pelas obras “Tambourines” e “Sister or He Buried the Body” -, Trajal Harrell referiu-se a esta última como “uma reflexão sobre o que significa dançar à medida que se envelhece, uma performance para quando o tempo está a acabar”. É como se Harrell estivesse a criar um testamento do movimento: Uma dança que será capaz de executar mesmo quando chegar aos setenta anos de idade. Para além dos figurinos e do corpo como memória colectiva, esta busca de um eu futuro será, porventura, outra das marcas de “The Köln Concert”, ampliando o âmbito conceptual e artístico de uma obra que se convoca múltiplas visões. De forma sensível, a peça assume um carácter híbrido, onde as questões de género, feminismo, cultura pop, moda e movimentos de vanguarda se revelam determinantes nos processos criativos próprios do pós-modernismo. É nesta amálgama única de géneros, na justaposição inesperada de formas e no vasto espectro emocional, que o trabalho de Harrell cativa e hipnotiza. Uma montanha-russa de emoções que convoca, em igual medida, o humor e a seriedade, o choro e o riso.

domingo, 10 de março de 2024

DANÇA: "ÔSS"



DANÇA: “ÔSS”
Direcção artística | Henrique Amoedo
Coreografia | Marlene Monteiro Freitas
Figurinos | Marlene Monteiro Freitas
Performance | Bárbara Matos, Bernardo Graça, Joana Caetano, Maria João Pereira, Mariana Tembe, Milton Branco, Rui João Costa, Sara Rebolo, Telmo Ferreira
Produção | Dançando com a Diferença, P.OR.K
80 Minutos | Maiores de 6 anos
Rivoli - Grande Auditório
09 Mar 2024 | sab | 19:30


“Construir um esqueleto forte, onde um pé tem a função de cérebro, o coração serve de cotovelo e os joelhos são um fígado e uma orelha, ser-nos-á naturalmente possível já que, entre duro e mole, no final, pouco importará. As partes deste compósito e seu posterior destino, serão tratados em leilão.” As palavras da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas não deixam margem para dúvidas. “ÔSS”, do colectivo “Dançando com a Diferença”, será aquilo que cada um quiser que seja. Tenda de circo ou praça de touros, coberta de navio ou campo de batalha, é um objecto desconcertante, imaginativo, mordaz, jocoso, trocista, avesso a convenções, colorido, vivo. Tão vivo como esse “ôss” - “osso”, em crioulo -, “guardador e revelador de segredos milenares, guardião de orientações anatómicas, caixa estruturante de partes moles e frágeis.” Ou como o “ôss” que abraça os praticantes de karaté, expressão polissémica que, “na sua origem, condensa ideias como pressionar, empurrar, suportar, tolerar.”

Em “ÔSS”, o palco é um mundo onde se marcam fronteiras e cavam trincheiras, se esbatem diferenças e desatam nós, se contornam medos e libertam amarras, se choram os mortos e celebra a vida. Um mundo feito de barras e grades, de caixas e plintos, geografias precisas que na sua ordem castradora, no que implicam e impõem, se afirmam como elementos repressivos e punitivos que importa contrariar. Obedecendo a uma geometria linear, os corpos obrigam-se a movimentos rígidos e precisos, no depositar de um lençol sobre uma cama como no transportar de uma bacia, ninho onde um corpo se abriga. O espectáculo cresce do visual para o performativo ao longo de uma sucessão de quadros fortemente impressivos, acompanhados por uma banda sonora onde cabem a música operática e os ritmos africanos, a música techno e um “hit” de Rihanna. Da ordem ao caos vai o tempo da peça.

Os espectadores estão ainda a chegar aos seus lugares e já o palco se agita com a animação de um DJ de serviço. É clara a intenção de pôr o público à prova desde o início, de ganhar a sua atenção, de lhe pedir que decifre as situações contrastantes que está prestes a viver. Na sua singularidade, os dançarinos assumem as suas personagens com um rigor e um empenho exemplares. É tocante a forma como, individualmente, concorrem para a criação de um corpo de dança enigmático e de grande complexidade, capaz de despertar no espectador as mais díspares emoções. São eles que dão forma ao imaginário coreográfico de Marlene Monteiro Freitas, seres instáveis por natureza, em metamorfose constante, capazes de passar do polícia ao ginasta, do militar ao camareiro, num piscar de olho. Ficará para sempre na memória a interpretação desse clássico intemporal de Gershwin, “The Man I Love”, na voz de Maria João Pereira. Como ficarão as passadas marciais de Mariana Tembe, a gaiatice de Sara Rebolo, a mímica da Bárbara Matos. A energia e cumplicidade do conjunto.

[Foto: © Laurent Philippe | https://www.teatromunicipaldoporto.pt/]

terça-feira, 9 de abril de 2019

TEATRO: "Banda Sonora"




TEATRO: “Banda Sonora”
Texto e encenação |Ricardo Neves-Neves
Composição e orquestração | Filipe Raposo
Interpretação | Ana Valentim, Joana Campelo, Márcia Cardoso, Rita Cruz, Sílvia Figueiredo, Tânia Alves com Orquestra Académica Metropolitana
Maestro | Cesário Costa
Cenografia | Henrique Ralheta
Figurinos | Rafaela Mapril
Caracterização | Cidália Espadinha
Coreografia e movimento | Sónia Baptista
Coprodução | São Luiz Teatro Municipal, Cine-Teatro Louletano e Teatro do Eléctrico
Rivoli - Teatro Municipal do Porto
06 Abr 2019 | sab | 19:00


Inteligente, divertido, inspirador. Todos os adjectivos são insuficientes para classificar o extraordinário momento de teatro que é “Banda Sonora”, um musical cuja concepção teve o seu ponto de partida nos acordes saídos da mente inspirada de Filipe Raposo, aos quais Ricardo Neves-Neves acrescentou uma ideia de texto e de encenação, num processo criativo verdadeiramente invulgar. Depois foi “só” trabalhar um cenário engenhoso, uma fenomenal caracterização e figurinos, a justeza e harmonia da coreografia e do movimento, ainda a música tocada ao vivo por uma orquestra jovem e competente e, naturalmente, a interpretação notável das actrizes em palco, o todo arquitectado num ambiente deliciosamente fantástico e irreal, a fazer lembrar o universo delirante de Tim Burton ou de algumas das mais belas histórias da Disney.

“Banda Sonora” conta a história de três meninas, de 8, 12 e 16 anos, que se vêem sozinhas na floresta, mais ou menos entregues à sua sorte. O passado de todas elas coincide em vários aspectos, desde a perda dos progenitores em contextos absolutamente dramáticos, ao processo natural de crescimento, feito de traquinice, muita curiosidade em perceber o mundo que as rodeia e algumas experiências que tendem a não correr lá muito bem. São três meninas que foram ensinadas a distinguir o que está certo do que está errado, mas que parecem não perceber muito bem que fumar ou namorar não é exactamente o mesmo que espetar uma faca na barriga de alguém. E assim, qual Adão e Eva depois de provarem o fruto proibido, sofrem o castigo de se verem apartadas do “paraíso”, obrigadas a viver o resto da sua existência num mundo subterrâneo onde, apesar de tudo, é ainda possível ver desabrochar uma flor.


Estreada no Teatro S. Luiz em Março de 2018, “Banda Sonora” precede no tempo “Alice no País das Maravilhas”, outro trabalho de encenação notável de Ricardo Neves-Neves, aqui em parceria com Maria João Luís. Ambas as peças prendem pela sua musicalidade e ritmo, o ambiente misterioso e sombrio da floresta a impor-se, tal como a figura do espelho – em “Alice no País das Maravilhas”, recorde-se, ele é elemento fulcral da cenografia, enquanto em “Banda Sonora” ele está presente na “duplicação” das três meninas (são, na verdade, seis actrizes em palco), cada uma espelho da outra. Há ainda o imaginário do cinema, com Burton e Disney à cabeça quando pensamos na envolvência e ambientes da peça, mas também essa notável partitura de Filipe Raposo, a remeter para o Danny Elfman de “Eduardo Mãos de Tesoura”, “O Estranho Mundo de Jack” ou “A Noiva Cadáver”. Genial!

[Foto: Ricardo Neves-Neves / facebook.com/ricardo.neves.neves]

sexta-feira, 8 de março de 2019

TEATRO: "Os 120 Dias de Sodoma"



TEATRO: “Os 120 Dias de Sodoma”
Texto e encenação | Milo Rau
Cenografia e figurinos | Anton Lukas
Video | Kevin Graber
Dramaturgia | Gwendolyne Melchinger
Interpretação | Noha Badir, Remo Beuggert, Gianni Blumer, Matthias Brücker, Nikolai Gralak, Matthias Grandjean, Julia Häusermann, Sara Hess, Robert Hunger-Bühler, Dagna Litzenberger Vinet, Michael Neuenschwander, Matthias Neukirch, Tiziana Pagliaro, Nora Tosconi, Fabienne Villiger
Produção | Schauspielhaus Zürich – Theater Hora
Rivoli – Teatro Municipal do Porto
07 Mar 2019 | qui | 21:00


Como é que se transforma aquele que é, seguramente, um dos mais controversos filmes da história do cinema, num espectáculo de palco cujo elenco inclui actores com Trissomia 21? Esta questão terá aflorado, de forma recorrente, as mentes dos espectadores que, numa noite chuvosa e fria, rumaram ao Rivoli para a estreia em Portugal de “Os 120 Dias de Sodoma”. Por detrás desta produção, o nome de Milo Rau levantava, igualmente, muitas interrogações, sobretudo depois da polémica em torno do seu trabalho anterior, “Five Easy Pieces”, encenado em vários países e sujeito a censura devido ao uso de crianças no papel de actores que representam os crimes do pedófilo Marc Dutroux.

Tendo como ponto de partida o filme de Pasolini, “Saló, ou os 120 Dias de Sodoma”, Milo Rau prossegue na busca do que pode ou não ser representável e suportável em palco. Interpretando, com bastante liberdade, o trabalho de Pasolini – por sua vez inspirado no romance do Marquês de Sade –, o encenador abraça a representação explícita do poder sexual e da violência para nos dar um diagnóstico actualizado duma sociedade onde o consumismo, a normalização do excesso e a constante optimização dos seres humanos são cada vez mais a regra. Profundamente perturbador, o monólogo que coloca em paralelo a eutanásia no regime nazi e a interrupção voluntária da gravidez nos nossos dias, é um verdadeiro murro no estômago do público.

Numa sociedade moderna, a oscilar entre o hedonismo e a desgraça, Milo Rau atira-nos para diante dos olhos um teatro que obriga a pensar em questões fundamentais como as relações de poder, o significado do voyeurismo, como proteger a dignidade da vida, os conceitos de normalidade ou os limites da dor. Fá-lo com enorme ternura, os actores perfeitamente cúmplices numa “farsa” que teima em ser levada às últimas consequências, o público dividido entre a mentira e a verdade, entre a “máscara” por detrás da qual se escondem os actores e esses mesmos actores que dispensam a máscara, porque sabem estar sem ela, no palco como na vida. Inquietante e atraente, estimulante e perturbador, “Os 120 Dias de Sodoma” é uma peça que importa ver com a necessária proximidade e sobre a qual se impõe uma cuidada reflexão.

[Foto: Stefan Bläske / hora.ch]

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

DANÇA CONTEMPORÂNEA: "Dance" / "Set and Reset / Reset"



DANÇA CONTEMPORÂNEA: “Dance” / “Set and Reset / Reset”,
de Lucinda Childs / Trisha Brown
Ballet de l'Opéra de Lyon
Rivoli – Teatro Municipal do Porto
17 Fev 2019 | dom | 17:00


O Ballet de l'Opéra de Lyon trouxe ao palco do Rivoli, na tarde do passado domingo, um espectáculo de Dança Contemporânea absolutamente inolvidável. Fundadas no experimentalismo da década de 60 do século passado e, em particular, na Judson Dance Theatre, uma dos mais importantes escolas da história da dança, as duas peças interpretadas recuperaram os trabalhos de duas enormes coreógrafas, Lucinda Childs e Trisha Brown (esta última recentemente falecida), ambos com muitas dezenas de anos em cima e milhares de interpretações por variadíssimas companhias do mundo inteiro ao longo do tempo.

Com assinatura de Lucinda Childs, “Dance” foi criada em 1979 e assenta num minimalismo obsessivo, que a música de Philip Glass ajuda a reforçar. Trata-se duma peça aparentemente simples, mas que exige do bailarino uma extraordinária concentração face aos sucessivos movimentos repetitivos que lhe são impostos. Aliando a graciosidade e elegância do gesto à energia e rapidez de execução, os intérpretes formam como que correntes que invadem o palco e se dispersam nas mais variadas direcções, para se voltarem a juntar e de novo a partir e assim sucessivamente. Esta ideia de movimento pendular, rigoroso e profundamente síncrono, é ampliada pela projecção em simultâneo de um filme concebido por Sol LeWitt, que ilustra a mesma coreografia, multiplicando as figuras em palco e projectando-as sob diferentes ângulos. O efeito é hipnotizante e os dezassete bailarinos mereceram em absoluto a enorme ovação que o público lhes prestou antes de se ir para intervalo.

Coreografada por Trisha Brown em 1983, “Set and Reset / Reset” tem em comum com a peça anterior a mesma tensão entre a precisão de um movimento e a sua replicação em contextos muito próximos, bem como a forma como cada indivíduo pode contribuir para a concretização de uma experiência de movimento. Mas são grandes as diferenças, a começar desde logo pela cenografia, reduzida à nudez do palco em “Dance” e aqui belíssima, da autoria do artista visual Robert Rauschenberg. E depois a história de “Dance” é a própria peça, enquanto “Set and Reset / Reset” esconde uma história que vai deixando transparecer, a cada momento, essa ideia de improvisação estruturada, apenas parcialmente coreografada. Plasticamente muito bela, a peça tem música de Laurie Andersen e constitui um monumento à dança contemporânea que os seis intérpretes em palco souberam elevar ao mais alto nível.

[Foto: Blandine Soulage / dansercanalhistorique.fr]

segunda-feira, 18 de junho de 2018

TEATRO: "Provisional Figures"



TEATRO: “Provisional Figures”
Texto | Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares
Encenação e Dramaturgia | Marco Martins
Cenografia | Fernando Ribeiro
Interpretação | Ana Moreira, Ivan Ammon, Maria do Carmo Ferreira, Pedro Cassimo, Pete Dewar, Richard Raymond, Robert Elliot, Sérgio Cardoso de Pinho, Victoria River
Produção | CCTAR – Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua
Teatro Rivoli – Palco do Grande Auditório
16 Jun 2018 | sab | 19:00
FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


“Um pela agonia,
Dois pela alegria,
Três pela menina,
Quatro pelo menino,
Cinco pela prata,
Seis pelo ouro,
Sete pelo segredo
Seguro num tesouro.
Oito pelo desejo,
Nove pelo beijo,
Dez pela ave
Mais bela que vejo.
Pega.”

O espectáculo está prestes a começar. O público vai tomando o seu lugar e de imediato se dá conta que irá partilhar os assentos na plateia com os actores, cujas cadeiras, dispersas pela sala, estão reservadas. Enquanto se espera pelo início do espectáculo, o som de fundo é o de entrevistas gravadas que remetem para experiências de vida particularmente duras em contexto laboral, a integridade e a própria dignidade da pessoa feridas em nome desse “bem maior” que é o ter trabalho, seja a que preço for. Na verdade a peça já começou e é Marco Martins a colocar-nos um nó na garganta ao dizer-nos que a Ana ou o Robert, o Sérgio, a Victoria, a Carmo ou qualquer um dos outros, somos nós. Um nó que se aperta à medida que os (não) actores vão surgindo em palco e expondo o provisório das suas vidas, a precariedade e a humilhação, o dinheiro escasso e a família longe, a felicidade e o amor eternamente adiados.

Culminando um processo de dois anos de investigação junto da comunidade portuguesa de Great Yarmouth e baseando-se nos testemunhos individuais de quem viveu de perto este período de incerteza, “Provisional Figures” propõe-nos uma reflexão sobre os problemas da identidade e da emigração num contexto urbano fortemente abalado pela crise económica e consequentes convulsões sociais. É um trabalho que mergulha numa realidade relativamente desconhecida em Portugal e que nos fala da emigração no auge da crise económica (2009-2014), em particular para a região de Norfolk, outrora destino balnear de eleição para os britânicos, agora reconvertido em centro da indústria de transformação alimentar.

Com “Provisional Figures”, Marco Martins volta a privilegiar o teatro do real, oferecendo-nos uma peça de enorme significado e alcance, em nome da crise, uma verdade que não pode ser esquecida. Uma crise que se revelou tremenda para milhões de pessoas sobretudo nos países do Sul da Europa, desestruturou famílias, comunidades inteiras, levou ao desemprego em massa, encerrou milhares de micro, pequenas e médias empresas... mas que deu muito jeito a alguns. E que pode estar aí ao virar da esquina, doa a quem doer, porque pode vir a dar jeito a alguns outros, afinal os mesmo de sempre. A presença dos não actores em palco reforça a mensagem, espicaçando recorrentemente o público com essa ideia tão querida ao encenador de que “todo o mundo é um palco”. E é, finalmente, o homem que está em causa, enquanto indivíduo dito superior, a revelar-se pior do que qualquer outro animal, o mais cruel para os outros e para si próprio.