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quarta-feira, 13 de junho de 2018

TEATRO: "Caranguejo Overdrive"



TEATRO: “Caranguejo Overdrive”
Encenação | Marco André Nunes
Dramaturgia |Pedro Kosovski
Interpretação | Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Matheus Macena, Fellipe Marques
Músicos em cena | Maurício Chiari, Pedro Leal, Pedro Nego
Produção | Aquela Cia. de Teatro
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica


A sinopse da peça diz-nos que esta é a história de Cosme, apanhador de caranguejos no mangue carioca, e da sua loucura decorrente da participação na Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX. Uma história que o trará de volta ao Rio de Janeiro onde encontrará uma cidade em grande transformação, uma cidade que já não reconhece e que o fará sentir-se como que exilado na sua própria terra. Mas “Caranguejo Overdrive” é muito mais do que isso. É a lama e a imundície, a sobrevivência no fio da navalha, a sanha do opressor e a miséria dos que trabalham por um prato de arroz. É a corrupção e os compadrios, os casos mal parados e a criminalidade, a ganância dos poderosos e a impunidade. É Tancredo Neves e Sarney e Collor e Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e Lula e Dilma e Temer, muito escândalo e muito samba, muito impeachment e muito recurso eternamente à espera de decisões que decidem para que tudo fique na mesma. É o obscurantismo, a macumba, as favelas e o desastre ambiental de Mariana. E é Marielle Franco, socióloga, feminista e defensora dos direitos humanos, executada com três tiros na cabeça e um no pescoço há escassos meses atrás.

Servindo-se de um acontecimento marcante da história do Brasil – travada entre o Paraguai e a Tripla Aliança, composta pelo Brasil, Argentina e Uruguai, a Guerra do Paraguai foi o maior conflito internacional ocorrido na América do Sul até aos dias de hoje -, a peça faz uma atualização do momento actual da cidade maravilhosa (e, por extensão, do próprio Brasil), assumindo um cunho vincadamente político. Com o dedo acusador apontado ao poder e aos seus sequazes, “Caranguejo Overdrive” é um grito desesperado que rompe amarras e clama por justiça e paz, por pão e trabalho. É um manifesto que reivindica um Brasil justo e livre, onde todos tenham as mesmas oportunidades e direitos, onde a tão propalada justiça social não seja um insulto aos mais pobres. Mas também um Brasil onde os criadores, os artistas, não sejam ostracizados, onde possa haver dinheiro para fazer teatro.

Conjugando o brilhantismo dum texto apoiado na estética e sonoridade do movimento artístico “manguebeat”, de Chico Science (meados da década de 90), com a capacidade interpretativa dos cinco actores e três músicos em palco – sublime Carolina Virgüez no “monólogo da visita guiada”, toda ela rigor, expressividade, humor e encantamento -, “Caranguejo Overdrive” é uma lição de teatro intensa e profunda, como um sopro vital. A energia que emana dum forte vínculo ao teatro experimental, a força da sua mensagem política e de intervenção e a riqueza das imagens que convoca, resultam em momentos de teatro únicos, modelares, inspiradores. Esta é uma daquelas peças que arrastam o espectador numa torrente emocional de palavras, gestos e ideias, obrigando-o a envolver-se numa realidade que também é sua, na certeza de que qualquer transformação social só ganha sentido como acto solidário. Manifesto de coragem, vibrante e libertador, “Caranguejo Overdrive” é a pedrada no charco duma sociedade que há muito perdeu o sentido da palavra “nós”, onde os indivíduos escavam cada vez mais fundo na lama, refugiando-se na dureza das suas carapaças quitinosas, aí permacendo furtivamente à espera do seu momento. Tal como os caranguejos!


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