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quarta-feira, 26 de março de 2025

LIVRO: "Kairos" | Jenny Erpenbeck



LIVRO: “Kairos”, de Jenny Erpenbeck
Texto original | “Kairos”, 2021
Tradução | António Sousa Ribeiro
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2024


“A ordem é o medo da desordem. Quer dizer que é medo. Também o seu medo. Será que, porventura, criou simplesmente para si uma imagem de espelho mais bela na carne jovem dela? Alguém que, na sua solidão, pode responder-lhe? Ou foi realmente por amor que partilhou tudo aquilo com ela? De todo o modo, fora ela a razão do seu banimento. Amor, amor, amor, diz ele de si para si, de súbito, a palavra parece-lhe absolutamente oca”.

Na estrutura semântica, temporal e simbólica das civilizações modernas, empregamos geralmente uma só palavra para definir a noção de tempo. Na antiga Grécia, porém, eram duas as palavras para o tempo: “chronos” e “kairos”. Enquanto a primeira se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede), Kairos possuía uma natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. A mitologia mostra-nos Kairos, “o deus do momento oportuno”, com uma madeixa de cabelo na testa, que é a única forma de ser agarrado. Vemos que a parte de trás da sua cabeça é lisa e sem cabelo, e não há onde o agarrar. Quando passa perto de nós, deslizando sobre as suas pernas aladas, percebemos que se abrem três possibilidades. Ou não o vemos, o que simplifica as coisas. Ou vemo-lo, mas não fazemos nada, o que acaba por ir dar ao mesmo. Ou então, ao passar, estendemos a mão e “agarramos a ocasião pelos cabelos”, arcando com as consequências.

“Kairos”, romance de Jenny Erpenbeck que acaba de ser galardoado com o International Booker Prize 2024, conta a história de Katharina e de como, casualmente, conheceu Hans. Ela tem 19 anos e é estudante, ele é escritor, tem 53 anos e é casado. O encontro tem lugar num dia de chuva copiosa, a 11 de Julho de 1986, num autocarro na parte de Berlim ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Passarão os anos seguintes juntos, vivendo de início uma relação apaixonada, mas que muito rapidamente irá decair a ponto de se tornar doentia. Uma relação na fronteira entre a verdade e a mentira, a obsessão e a violência, o ódio e a esperança, à semelhança dessa Estação Friedrichstrasse de onde partem os comboios com destino ao Ocidente, que Katharina vê da janela do seu apartamento e sobre a qual se interroga se não será, no rigor com que faz a ponte entre dois blocos antagónicos, capaz de conter dois tempos diferentes, dois presentes concorrentes, duas realidades quotidianas, uma servindo de inferno para a outra.

O espaço onde a acção decorre e o ambiente social e político não são puras metáforas. O declínio do regime, impulsionado pela Perestroika, era então uma realidade palpável e levantava as maiores dúvidas no Bloco de Leste. Jenny Erpenbeck socorre-se dessa verdade histórica para estabelecer um paralelismo com a vida amorosa e descrever os diferentes aspectos da felicidade através do percurso dos dois amantes. Em poucas palavras, esta é a história de um grande amor e da sua queda, mas é também a história da dissolução de todo um sistema político, o que conduz a uma questão muito simples: Como é que algo que se afigura certo e firme de início, pode vir a revelar-se tão errado? Dona de uma escrita original, extraordinariamente precisa e atenta ao detalhe, a autora mergulha o leitor na intimidade do casal, obrigando-o a seguir uma linha turtuosa de fortes emoções, sem lhe exigir que tome partidos. Nas constantes interrogações que cada um se coloca reside o fascínio do livro, ele próprio um modelo de grande literatura cuja oportunidade importa agarrar. Ainda que pelo cabelo.

domingo, 18 de agosto de 2024

LIVRO: "A Uma Hora Tão Tardia: Histórias de Mulheres e Homens"



LIVRO: “A Uma Hora Tão Tardia: Histórias de Mulheres e Homens”,
de Claire Keegan
Título original | “So Late in the Day: Stories of Women and Men”, 2023
Tradução | José Miguel Silva
Ed. Relógio d’Água Editores, Março de 2024


“Na sala ampla, acumulou mais turfa na lareira e bateu as natas. Depois saiu para o exterior com uma tigela e andou em volta da casa a colher amoras. Quando a tigela ficou cheia, olhou para as duas colinas. As nuvens mais brancas que alguma vez vira cerravam-se firmemente em volta dos cumes, como se nas colinas tivesse lavrado um incêndio do qual só restava agora fumo. Lavou as amoras, esmagou-as com um pouco de açúcar e recheou com elas o bolo. Pareceu-lhe um bolo bonito, ali pousado na mesa da cozinha. Pôs na mesa chávenas e pires brancos, pratinhos e colheres, dois garfos.”

Com “A Uma Hora Tão Tardia”, Claire Keegan oferece-nos três breves histórias de três mulheres, na sua relação com outros tantos homens. Nas vésperas do seu casamento, a mulher da primeira história junta todos os seus pertences e muda-se para casa do futuro marido. Aquilo que constitui uma alteração no ritmo e estilo de vida de ambos e que deve ser, objectivamente, um passo em frente na sua relação, acaba por se revelar uma decisão desastrosa. A mulher da segunda história ocupa aquela que foi a casa do escritor Heinrich Böll, Prémio Nobel da Literatura em 1972, no decurso de uma residência literária. O encontro com um estranho que pretende conhecer a casa, mas cujas intenções se revelam bem diferentes do que seria suposto, servirá às mil maravilhas o propósito de encontrar assunto para um momento privilegiado de escrita. Apesar da alegria de ter duas crianças e um casamento feliz, a mulher da terceira história “perguntava a si mesma como seria dormir com outro homem”. Comprar as prendas de Natal abre-lhe a possibilidade de pôr o seu plano em marcha, mas as coisas não poderiam correr pior.

“Histórias de Mulheres e Homens”, o subtítulo deste livro, funciona como uma “declaração de intenções” de Claire Keegan nesta sua obra, pequena em tamanho, mas extraordinariamente poderosa na sua intenção e alcance. Escritas de forma lúcida e muito precisa, qualquer uma das três histórias não dispensa uma boa dose de verdade, mas também de cinismo, na relação entre os sexos. Não são apenas três histórias de mulheres e homens, como o subtítulo do livro sugere, mas também, ou sobretudo, histórias de mulheres que tentam viver as suas vidas e de homens que as tentam contrariar. São três histórias reveladoras da elegância e requinte da prosa da escritora, que, no seu conjunto, têm para oferecer uma análise fria e cuidada das dinâmicas de género naquilo que é determinante para o sucesso ou o fracasso das relações: a generosidade e o egoísmo, o peso das expectativas, a compreensão e a rejeição, a crença nos valores, a cumplicidade e empatia. Nesse equilíbrio instável por que se pauta a vida a dois, o balanço mostra-se, cada vez mais, frustrante e doloroso.

O estilo de Claire Keegan, como sempre, é esparso e poderoso, próximo da escrita de Tchekhov, assumidamente a sua grande referência literária (na história que envolve a segunda mulher, o escritor quase faz parte da trama). Keegan sabe tocar nos pontos certos, conduzindo o leitor ao encontro da mulher e do que nela há de particular e idiossincrático, do cuidado com o aspecto pessoal, do gosto com a decoração, do gozo que sente em saber-se esperada e desejada. O homem, no seu contraponto mais simplista, “quer-se sujo e a cheirar a cavalo”. O feminismo, olhado de esguelha por muitos, mas também por algumas, associado às dinâmicas sociais de uma sociedade liberal rendida ao poder dos interesses económicos, fez com que o fosso entre mulheres e homens se cavasse mais e mais. Não por “culpa” deles, apesar de nos cruzarmos, cada vez mais frequentemente, com metrossexuais barbudos, de unhas pintadas e sobrancelhas arranjadas. Mas são elas, na sua essência, que se mostram ao ataque nesta verdadeira guerra dos sexos, clamando por autonomia, liberdade e justiça. Claire Keegan mostra-nos isto muito claramente. Mas também nos diz que há muito caminho a percorrer.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

LIVRO: "Natureza Urbana"



LIVRO: “Natureza Urbana”,
de Joana Bértholo
Ed. Relógio D’Água Editores, Abril de 2023


“Reparei que, no parque, alguns pássaros adicionavam aos seus ninhos elementos de plástico e de metal. Via-os passar com um pau de gelado no bico, um porta-chaves reluzente, um pedaço de plástico azul que terá sido parte de um brinquedo. Lixo, diríamos. Nós recolhemos a folhagem e os galhos com que eles constroem as suas casas, para fazer as nossas coisas; e eles, por sua vez, vinham buscar as nossas coisas para construir as suas. Poderia ser o começo de uma história interminável.”

Quem já passou centenas de vezes num determinado lugar e só agora viu, verdadeiramente, o que nunca tinha visto - e creio que muitos de nós, se não mesmo todos, já experimentámos essa sensação quase desconcertante -, vai gostar deste “Natureza Urbana” e daquilo que ele nos reserva. O assunto não é novo na escrita de Joana Bértholo, uma autora que vem chamando a atenção, livro após livro, para abrirmos os olhos e estarmos atentos àquilo que se passa à nossa volta. Aprender a andar devagar será um bom princípio para quem ambiciona poder olhar as coisas e julgá-las de forma completa e sem interrupções. Acordar tranquilamente e pensar que podemos, simplesmente, ficar quietos, é também uma bela forma de olharmos o nosso interior, ao encontro daquilo que verdadeiramente somos. O tempo, ou aquilo que dele fazemos, mostra-se determinante neste olharmos as coisas e olharmo-nos a nós próprios. Tomemos, pois, o nosso tempo, saboreemos a merecida pausa, reivindiquemos o direito à desconexão. É nesse momento que este conto começa.

“Como foi que vim aqui parar?” Desta forma começa Joana Bértholo este seu pequeno-enorme conto, sugerindo que alguém, num lugar específico, tenha uma história para partilhar. Saberemos que esse alguém é uma mulher, tem trinta e seis anos, vem de perder a mãe e o emprego. Falta-lhe tudo, menos tempo. Um Senhor da Funerária e uma Senhora do Centro de Emprego serão as primeiras pessoas a mostrar-lhe que, além de tempo, afinal há outras coisas que também possui. Da ambição inicial de poder olhar as coisas com todo o vagar, ao sonho de tornar-se uma pessoa conhecedora do mundo que a rodeia e das palavras certas para o definir - mesmo que indecisa quanto ao querer “saber muita coisa sobre poucas coisas ou qualquer coisa sobre muitas coisas” - vai um pequenino passo, tornado enorme com a descoberta da Biblioteca. Ou melhor, do Bibliotecário.

“Natureza Urbana” é um livro de uma bondade imensa. Com palavras muito simples, Joana Bértholo fala-nos do nosso quotidiano e de como ideias sinuosas e complexas o podem ser apenas na aparência. Tal como a figura principal do conto, também nós percebemos que, no essencial, a ideia de campo, de natureza, não difere muito das matérias que compõem as cidades que habitamos. Que a cidade, no fundo, é o campo reordenado de uma maneira que nos parece artificial, mas que não deixa de ser essencialmente natural e que merece ser amada por isso. Servirá de começo para uma grande aventura? Talvez o livro não responda a esta questão, mas levanta outras que nos obrigam a pensar e, mais do que a pensar, a ver as coisas com olhos de ver. A ver como a Natureza não é um lugar longínquo, um lugar que se define por não ser cidade. Como a nossa pele estalada pelo sol não difere muito da casca de uma Euphorbia. Como estão enganados aqueles que julgam que as árvores estão quietas Como pronunciar a palavra “andorinhão” pode ser o princípio de uma bela amizade.

sábado, 15 de janeiro de 2022

LIVRO: "Todas as Crónicas"



LIVRO: “Todas as Crónicas”,
de Clarice Lispector
Texto original | “Todas as Crônicas” (2018)
Prefácio | Marina Colasanti
Organização e posfácio | Pedro Karp Vasquez
Pesquisa textual | Larissa Vaz
Ed. Relógio d’Água Editores, Dezembro de 2018

“Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de… E para isso fora necessário um menino magro e escuro… E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.”


Idealmente, este livro deveria ter sido lido ao correr do tempo, fazendo coincidir as datas nele inscritas com o momento presente, descontada a diferença de praticamente meio século sobre a publicação das crónicas em jornais e revistas da época. Haveria aqui leitura para uma boa meia dúzia de anos, mas evitaria a natural saturação de temas que coincidem e se repetem com alguma frequência. Por outro lado, sobrar-me-ia tempo para absorver o pensamento da autora naquilo que nele há de mais intenso e profundo, de mais realista, de mais poético, também. Mas assim, lido em “douda correria” no curto espaço de uma semana, “Todas as Crónicas” deixa-me uma sensação de incapacidade em determinar a equivalência entre o todo e a soma das partes. Sobretudo quando essas partes se mostram tão diversas do ponto de vista formal e dos próprios assuntos abordados, pedindo ao leitor um esforço de análise e convergência, quando não de coerência.

“Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está-se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?”. É com esta confissão ao seu amigo Rubem Braga que Clarice Lispector abre uma das suas crónicas mais interessantes, porque mais despojada. Com ela, as dúvidas do leitor quanto à verdade dos textos desfazem-se, a autora confirmando-se numa escrita muito bela, a crónica fluindo “ao correr da máquina”, exprimindo com paixão o olhar intenso e agudo sobre si própria e sobre o seu mundo. Este dar e dar-se será um elo comum a todas as crónicas, sejam elas íntimas ou mundanas, conversas com gente comum ou entrevistas com grandes artistas, retratos do quotidiano ou quadros numa galeria. A marca de personalidades como o futebolista Zagallo, o matemático Leopoldo Nachbin, o actor Paulo Autran, a escritora Nélida Piñon, o cantor Chico Buarque, o desenhista Lara ou o paisagista e pintor Roberto Burle Marx, entre tantos outros, fica gravada nas crónicas de Lispector, tal como ficam gravadas as marcas de gente comum como um chofer de taxi, uma mulher no autocarro ou um menino pedindo esmola.

Baseando as suas Crónicas em registos do quotidiano, Clarice Lispector mostra empenho em, através da sua escrita, assumir a defesa de causas como a falta de acesso à cultura ou à educação, a pobreza e a fome. Estou certo que a grande popularidade que granjeou com estes seus escritos, sobretudo com a sua coluna semanal no Jornal do Brasil, em muito fica a dever ao olhar agudo e sensível sobre as desigualdades e as injustiças mas também a um certo espírito “voyeur” alimentado pelas portas abertas à intimidade, pelas respostas às muitas cartas que recebia ou pela polémica que alimentava a propósito de gestos ou atitudes menos agradáveis. Suspeito que a aceitação das longas incursões nos meandros da arte e dos artistas não tivesse a mesma receptividade e fosse ide igual modo entendida pela generalidade dos leitores, mas registo o esforço da cronista em elevar o conhecimento e despertar a sensibilidade do seu povo. Ficam ainda preciosas reflexões quanto ao labor da escrita, da sua génese e diversidade, dos veículos que a fazem chegar ao público, do próprio público e da sua apreciação crítica. Um livro fundamental para a compreensão do universo de uma grande escritora e dos seus infindáveis recursos.

domingo, 12 de dezembro de 2021

LIVRO: "Maremoto"



LIVRO: “Maremoto”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Relógio D’Água Editores, Abril de 2021


“Se calhar é a morte que chega perto de mim, que me veio tirar a medida da farda, essa coisa de me encontrar em todo o lado onde olho. Nem assim a saudade acorda. Contemplo o meu passado como se visse um filme que não me comove. Perto da Fatinha, na Rua do Loreto, uma loja de velas lança na rua, nos dias de Inverno, uma luz quente de fogo. Então, no regresso à António Maria Cardoso, chego-me à montra. Velas de todas as cores e formas, pequenas, grandes, coloridas, brancas, douradas, azuis. Era a única coisa que gostava de levar comigo destas ruas. Uma vela para alumiar meu quarto.”

Chama-se Aurora, vive algures em Bissau e é a destinatária de uma longa carta, texto confessional assinado pelo seu pai, “Boa Morte da Silva, oriundo da província do Cunene, Sul de Angola, nascido em 1938, filho de Maria da Silva e pai desconhecido.” Nela, o homem fala do que é ser velho e preto, subir e descer vezes sem conta uma rua de vivos e mortos a arrumar carros, viver da caridade dos outros a guardar o que não está em perigo. Por companhia tem uma hérnia a querer rebentar-lhe no umbigo, um cão de nome Jardel por companheiro e, por vezes, Fatinha, uma jovem sem-abrigo que não diz coisa com coisa. Nas horas felizes, sobem ao Miradouro de Santa Catarina, vêem-se ao longe os navios no rio, comem uma boa merenda de pão com queijo e fiambre, enquanto crescem na boca os sorrisos com as cabriolices do Jardel. Nos outros, que são quase todos, é voltar a ser um espírito que habita as ruas, que anda com os pés e as pernas, que fala e respira, mas por quem as pessoas passam, circulam e nada vêem.

Rua acima, rua abaixo, Boa Morte sorve o aroma a castanhas assadas que se espalha no ar e envelhece de mãos vazias. Passa muito tempo sem haver carro que dê moeda. No dia seguinte não haverá dinheiro para a camioneta… É aqui que paro para pensar, para reflectir na minha atitude de, tomando a parte pelo todo, raramente dar uns trocos a quem me estende a mão. São actos de puro egoísmo que, bem vistas as coisas, é a mim que magoam. “Quem sabe se notavam que mudávamos de passeio para os evitar, mudar de passeio no qual ia a nossa morte e não a sua.” Também eu vejo essas pobres almas, eles sempre de manga curta, parece que nunca têm frio, elas andrajosas, vestindo longas saias, camisolas negras e rasgadas. Fazem-se rodear dos seus sacos e plástico cheios de coisas sem valor, tapam-se com caixotes, dormem ao frio e à chuva, nas entradas de prédios ou, quando a caridade toca a “gente grada”, nas paragens de metro, no coração da terra. Também eu não faço nada.

Com este seu “Maremoto”, Djaimilia Pereira de Almeida volta a segurar-nos pelos ombros e a abanar-nos repetidamente a ver se despertamos da nossa insensibilidade. Como uma onda que avança e tudo cobre à sua passagem, a narrativa obriga-nos a olhar Boa Morte e Fatinha como gente igual a nós, gente que sente e sofre, gente cujo único pecado foi ter nascido do lado errado da noite. No grande teatro da vida, com anjinhos a voar num céu pintado de azul e nuvens, Boa Morte, Fatinha e tantos iguais a eles são actores ante uma plateia vazia. Por muito nobre que seja o carácter de uns, por muito belos e inocentes que sejam os gestos de outros, ninguém paga para entrar, todos preferem continuar a viver a sua vida de mentira, dentro de muros cada vez mais altos, fazendo rolar por baixo da porta um ou dois euros “só para não ter chatices”. Numa escrita delicada, a autora pinta quadros belos na sua crueza, obrigando-nos a olhá-los de frente e a perceber que custa tão pouco trazer um pouco de conforto e de felicidade a quem nada tem. Um livro (mais um) memorável, de uma das mais significativas e marcantes vozes da literatura portuguesa contemporânea.

domingo, 17 de outubro de 2021

LIVRO: "De Noite Todo o Sangue É Negro"



LIVRO: “De Noite Todo o Sangue É Negro”,
de David Diop
Texto original | “Frère d’âme” (2018)
Tradução | Miguel Serras Pereira
Ed. Relógio D’Água Editores, Junho de 2021


“Pela verdade de Deus, eu, Alfa Ndiaye, último filho do homem velho, eu vi a difamação perseguir-me, seminua, sem vergonha, como uma rapariga de má vida. No entanto, os toubabs e os chocolates que viam a difamação perseguir-me, que lhe levantavam a tanga de passagem, que lhe beliscavam as nádegas a rir, continuaram a sorrir-me, a falar-me como se nada fosse, amáveis por fora, mas aterrorizados por dentro, até mesmo os mais rudes, até mesmo os mais duros, até mesmo os mais corajosos.”

É em França, em plena primeira Guerra Mundial, que se desenrola a acção deste livro. Fustigados pelo invasor alemão, os franceses defendem-se como podem em terríveis batalhas que provocam milhares de baixas. Potência colonizadora à data, a França tem nas suas fileiras um enorme contingente de soldados das colónias africanas, chamados genericamente de “senegaleses”, na sua grande maioria provenientes de regiões que integram hoje o território do Mali. Daí que “De Noite Todo o Sangue É Negro” comece por ser uma homenagem a esses homens que, arrancados ao trabalho nos campos, mal equipados, mal armados, enfrentando condições climatéricas duríssimas, se bateram com enorme coragem e espírito de missão por uma causa cujos fundamentos desconheciam, por um país que era o seu mas do qual não sabiam sequer onde ficava, qual a sua língua, a sua História, os seus modos e costumes.

Palco da acção do livro, o campo de batalha que David Diop estende das feridas hiantes da terra ditas trincheiras às fossas cavadas pelos obuses, cheias de uma lama sanguinolenta e infestadas de ratazanas que se banqueteiam com a carne dos mortos, vai muito além disso. Ele instala-se no coração do soldado negro, escuta-lhe as batidas taquicárdicas na hora de saltar da trincheira - a espingarda na mão esquerda e o machete na mão direita - e expor o corpo às balas. É aí que tem lugar a verdadeira guerra. É aí que se gera a consciência do porquê de cortar a carne inimiga, de decapitar, de estropiar, de esventrar. E é aí que se marcam as diferenças entre aqueles que apenas fazem teatro quando irrompem da terra com os seus gritos ridículos e os outros, tornados selvagens por reflexão. Uns regressam sempre vivos, sempre sorridentes, carregando consigo os saques de guerra selvagem. Os demais quedam-se espalhados na planície, o olhar vazio fitando um céu metálico de onde caem os grandes grãos de guerra que tudo apagam.

Galardoado com o International Booker Prize 2021, “De Noite Todo o Sangue É Negro” é um olhar perturbador sobre o que de mais terrível pode abrigar-se em cada um de nós. Percorrendo os caminhos da mente de um jovem soldado negro, David Diop mostra-nos o quanto a guerra é iníqua, espalhando o terror e a morte à sua volta e alterando de forma irrevogável o pensar e o viver daqueles que das suas mãos escapam. O ritmo lento da acção contrasta com a violência dos acontecimentos, mergulhando o leitor num ambiente doentio onde se misturam memórias de vidas simples com o desvario de uma mão cortada ou de um ventre aberto. As emoções vão-se derramando num crescendo até se fundirem num delírio místico, antecâmara da loucura onde coabitam o feiticeiro-leão, o reino-caverna e o caçador-salvador. As histórias falam de quem recusou ficar no meio de parte nenhuma debaixo de uma terra sem nome. As cicatrizes mostram-se no corpo e na alma.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

LIVRO: "Cartografias de Lugares mal Situados (10 Contos da Guerra)"



LIVRO: “Cartografias de Lugares mal Situados (10 Contos da Guerra)”,
de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Relógio D’Água Editores, Junho de 2021


“Não sabiam desistir. É o que lhe temos vindo a dizer, senhora jornalista, embora vindos de partes distintas do planeta, eram demasiado parecidos. Na força física e na obstinação. Não se rendiam, não aceitavam empates nem complacências. Nem quando vieram as retroescavadoras retirar a areia, os familiares sepultar o que restava dos seus cadáveres, desidratados e mumificados com areia por fora e por dentro, e os esquadrões antibombas desinfestar quase todo o território. A guerra tinha acabado mas não para eles. Continuaram a defender os seus postos. Tal como haviam sido oficiados.”

Este breve excerto remete para a cartografia de um lugar mal situado que Ana Margarida de Carvalho designa por “primeira linha de fogo”. De um lado a jornalista, do outro a população. No centro a “casa bexigosa”, uma casa cravada de marcas de balas, agora destruída, pedaços de corpos dos seus dois habitantes espalhados, “uma perna para um lado ainda com a anca agarrada, as tripas para o outro”. A população é árabe. Falam do calor e do leite que coalha nos estômagos, do arame farpado que só os gatos conseguem atravessar, de minas anti-pessoais a mais ou a menos. Há chá de hibisco num samovar, sente-se-lhe o aroma intenso. As conversas distraem-se, “a gente desmemoria-se, é inevitável, não há como combater o peso do presente”. Quando regressam aos velhos e ao casebre bexigoso, é para falar dos litígios ancestrais e íntimos de dois alfaiates praticamente cegos do lado de cá do deserto.

Depois de “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato” ou “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, Ana Margarida de Carvalho volta a impressionar-me com a acuidade do seu olhar e a riqueza da sua escrita. O conto sobre o qual, de forma breve, me debruço no parágrafo anterior, é paradigmático disso mesmo. Há nele a força da História que se impõe como uma marca de inevitabilidade. Há gente que carrega às costas os despojos de uma conflitualidade sempre presente. Há lugares cuja cartografia não permite distorções, de tão exactos e únicos que são. Há, sobretudo, a coragem de lutar contra a adversidade e seguir em frente, “que a vida é só uma e não nos deixa tempo para angústias”. E isto tanto é válido agora como há duzentos anos, na aflição de quem foge ao invasor francês, de quem se faz ao mar numa noite escura ou de quem se confina, tomado de pânico por uma pandemia que alastra como uma nuvem tóxica e mortal.

Ao longo destes “10 Contos da Guerra”, a autora explora a bestialidade, o absurdo e a maldade que se espalham em cada conflito, pondo a nu o pior da natureza humana. O seu olhar rasga fronteiras, entra nas casas e penetra no íntimo das pessoas, expondo-o mais as suas feridas de guerra. De súbito, os actos heróicos da resistência francesa ficaram lá longe, sobrando umas mãos como tentáculos desarticulados de um polvo seco; os ecos da Guerra Civil de Espanha diluem-se no toque rijo e são de uma prótese de madeira; a Guerra da Síria é um homem com cheiro a salgado, olhos de urgência e dedos de ganância. Traçado o mapa, avançamos por estes lugares mal situados com o medo de quem teme pisar uma mina, o passo suspenso da cegonha, incapazes de passar ao lado do horror, de o olhar nos olhos. Este livro vem lembrar-nos que o mundo real não se faz apenas do assombro de Muralhas da China, Pirâmides do Gizé, praias do Caribe ou quadros de Caravaggio. Há gente a viver debaixo de escombros e lugares cujos mapas importa não esquecer.

terça-feira, 27 de julho de 2021

LIVRO: "A Íris Selvagem"



LIVRO: “A Íris Selvagem”,
de Louise Glück
Texto original | “The Wild Iris” (1992)
Tradução | Ana Luísa Amaral
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2020


“Sabes o que eu era, como vivia? Conheces
o desespero; então
o Inverno há-de fazer-te sentido.”

Conjunto de cinquenta e quatro poemas da autoria da Prémio Nobel da Literatura Louise Glück, com tradução de Ana Luísa Amaral, “A Íris Selvagem” é um passeio pelo bem cuidado jardim da autora, ao encontro dos canteiros floridos, de delicados arbustos e de árvores de maior porte, os seus matizes de verde pintalgados de todas as cores. É ver como toda esta variedade de plantas nasce e cresce, como se transforma com o correr do tempo e das estações, como se desafia em cor e viço, como se espreguiça ao sol ou definha na sombra, como parece perder a vida no final de cada ciclo para reaparecer num novo tempo, com mais força e mais querer. Mas é também escutar o vento que derruba e destrói, sentir a neve e os estios que tudo queimam, a terra húmida e fria que resiste a acolher a íris selvagem no seu seio. E, depois, escutá-la num fino lamento: “É muito duro sobreviver assim, / a consciência / sepultada na terra escura.”

Como os frutos da terra, pedindo tempo, esperando pelo momento certo para serem admirados em todo o seu esplendor e beleza, assim é a poesia de Louise Glück. Não é uma poesia do imediato, leve e solta, que ameaça desfazer-se em fumo antes mesmo de ser tocada, mas uma poesia orgânica, telúrica, visceral, despojada de vaidade, as raízes afundadas na terra árida - “(…) eu ainda não / flor, mas espinha somente, terra bruta / rasgando-me as costelas (…)” -, as plantas fustigadas pela ventania, desabrigadas, frágeis, sós, os seus ramos erguidos aos céus, a Deus, em busca de respostas. É uma poesia de grande coragem, que grita a sua dor nas interrogações que a si mesma se coloca. Uma poesia que sabe e nos diz que a eternidade não é apenas Verão, que tudo pode agora acabar e é urgente “(…) aprender a amar / o silêncio e o escuro.”

“Tempos houve em que acreditei em ti: plantei uma figueira. / Aqui, no Vermont, nesta terra / sem Verão. Foi um ensaio: Se a figueira vivesse, / isso queria dizer que existias.” Uma enorme espiritualidade atravessa todo o livro, cada um de nós feito de mesmo pó da terra em que nos tornaremos um dia. Por intermédio das suas plantas, Louise Glück mergulha no milagre da vida, o poema a unir o homem e a natureza, a expor feridas e cicatrizes, a arranhar a alma de uns e de outros. “Matinas” e “vésperas” surgem como interlúdios a esses poemas maiores que exaltam a vida e os seus mistérios. As questões multiplicam-se, mas cada vez serão mais as dúvidas do que as certezas. “Quem és tu na janela iluminada / agora escurecida pelo brilho trémulo das folhas / do viburno? / Será que sobrevives onde eu não passarei sequer / do meu primeiro Verão?”. Um livro essencial.

domingo, 20 de junho de 2021

LIVRO: "Uma Volta ao Mundo com Leitores - Acordo Fotográfico"



LIVRO: “Uma Volta ao Mundo com Leitores - Acordo Fotográfico”,
de Sandra Barão Nobre
Ed. Relógio D’Água Editores, Maio de 2017


“Malai. É o que sou agora. Estrangeira. Estou em Timor-Leste. Cheguei via Darwin. Na sala de embarque, pouca gente. No entanto, as pessoas suficientes para encher a pequena aeronave. A maioria, homens com ar de quem vai trabalhar. A viagem é curta. Ao fim de pouco mais de uma hora, começo a avistar os contornos de Timor da pequena janela do Embraer a hélices que me trouxe. A imagem é incrível… Como é possível que eu esteja a ver Timor? Como é possível que eu tenha esta sorte, esta benção? Como posso eu merecê-la?”

No propósito de escrever uma recensão crítica a cada livro que leio, começo sempre por eleger um breve excerto que tenha um significado especial no contexto da história e que, de alguma forma, me tenha marcado durante a leitura. Todavia, nunca até hoje tinha experimentado tanta dificuldade em eleger esse momento “vital”, de tal forma encontrei em “Uma Volta ao Mundo com Leitores - Acordo Fotográfico” uma profusão de descrições apaixonadas, visões impressivas e reflexões significativas, cada uma delas merecedora de citação. Nessa busca, reencontrei-me com muitas das passagens do livro, dando-me conta do quanto ele me prendeu do princípio ao fim. É que Sandra Barão Nobre escreve com o coração, coloca as suas emoções acima da razão e leva-nos com ela numa viagem à descoberta do mundo e de nós próprios, o sonho a comandar a vida. O resultado é um livro habilmente balanceado entre o simples apontamento de viagem e o sentir mais íntimo, o encontro com leitores ocasionais nos mais diversas locais e circunstâncias a dar azo a histórias de enorme significado e beleza e a irmanar-nos nessa comunidade tão especial daqueles que vêem no livro um referente e uma companhia para a vida.

Nascida em França em 1972, Sandra Barão Nobre enfrentou, aos 31 anos de idade, um tremendo desafio. “Passar seis meses a lutar contra um cancro, em isolamento, num pequeno quarto a que pouquíssima gente tinha acesso”, pôs toda a sua vida em perspectiva. Vencido o monstro, as viagens entraram numa espiral crescente na sua vida. Entretanto, criou o “Acordo Fotográfico”, um projecto que associa o mundo da fotografia ao mundo dos livros e através do qual a autora homenageia o acto de ler. Dar a volta ao mundo de mochila às costas transformou-se numa necessidade primordial. Partiu em Março de 2014. Começou por Salvador da Bahia e colocou na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, um ponto final no seu périplo de seis meses por catorze países. No peito um turbilhão de emoções: “Tristeza por ver terminar um dos períodos mais felizes e mais enriqueceres da minha vida, sabendo que teria energia suficiente para continuar por mais seis meses. Gratidão pelo privilégio que foi poder realizar um sonho, ainda que tudo me pareça um sonho. Felicidade também. (…) Na certeza de que já não sou a mesma, regresso a casa”. Em Maio de 2017, a volta ao mundo tomava, enfim, a forma de livro.

Cores, cheiros, sons e sabores. Oferecidos em doses generosas, são eles os principais ingredientes de “Uma Volta ao Mundo com Leitores - Acordo Fotográfico”, num apelo aos sentidos em salas de leitura com anjos suspensos, catedrais atoladas de lixo e cera de velas por todo o lado, cemitérios que são autênticos labirintos psicadélicos, o chamamento do muezim para as orações, budistas que acumulam muito mau karma, campos de arroz e búfalos de água, o nascer do sol por detrás de Angkor Wat, saladas de fruta que mais parecem açúcar, sapateiros acidentais, ciclistas trajando o equipamento da selecção portuguesa, viagens de tuk-tuk que duram uma eternidade, microletes decoradas com autocolantes enormes do Real Madrid, relâmpagos e trovões, o som da bátega e o cantar do bem-te-vi. A Emma e o Pedro Henriques, a Georgia e o Liu, o Michael Robotham e a Cassandra Clare, tornam-se tão reais como a Chimamanda Ngozi Adichie e o George R. R. Martin, o Howard Jacobson e o John Green, o Franz Kafka e o Edgar Morim. Então, de olhos fechados e coração cheio, temos a certeza de que ler e viajar são estradas para a felicidade.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

LIVRO: "Pequenos Delírios Domésticos"



LIVRO: “Pequenos Delírios Domésticos”,
de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Relógio D’Água Editores, Outubro de 2017


“Só pergunta quem ama, só indaga quem anseia, só quer saber quem deseja. Mas eu tenho a aflição da bruma, renego a limpidez, o sol que já nasceu, os outros que me ouvem com os olhos. Este barco é um cemitério de corpos vivos. E num barco à deriva, todos se sentem matéria pesada, a maldição física da aceleração em queda livre, como a estupida maçã. E no entanto, todos eles me parecem tão ocos, de ossos aguçados a quererem romper a pele, que quase poderiam flutuar neste mar, que já tudo vai caroço de um fruto raivosamente tragado, chupado, sorvido de todos os sucos. É isso. Somos um caixote de caroços, lançados fora, náufragos dos nossos próprios corpos. E o mar, mesmo que não fertilize, está com uma disposição caridosa de acolher.”

Em Outubro de 2017, o fogo entrou pela terra adentro. Ceifou árvores, florestas inteiras, casas e alfaias agrícolas, décadas de trabalho, dezenas de vidas. Na aldeia do Couto do Mosteiro, em Santa Comba Dão, a casa de família de Ana Margarida de Carvalho foi uma das que não escapou à fúria cega das chamas. De meados do século XIX, do tempo dos seus trisávos, a casa guarda hoje as paredes graníticas ao alto, no seu interior apenas escombros, despojamento e devassidão. Dela restam memórias em forma de cheiros, de sons, de cores, de palavras ciciadas ou de gritos felizes das crianças, do toque das mãos da velha criada ou do estalar do trovão cada vez mais próximo. É esta casa – o que foi e o que é - o ponto de partida e chegada de “Pequenos Delírios Domésticos”, primeira incursão da escritora no mundo do conto.

Colando o título deste seu livro ao de uma canção de Sérgio Godinho, do álbum “Tinta Permanente” (1993), Ana Margarida de Carvalho oferece-nos um conjunto de contos fortemente marcados por esta noção de casa enquanto ideia de território, espaço de pertença, real e concreto ou do domínio da memória, apenas. Nela vivem, a ela chegam ou dela partem figuras como Manuel, um pouco resoluto bombista-suicida, a sobrevivente Andreia, o deslembrado Saaid, o ensimesmado Jorge ou o esquecido Jaime. Com eles trazem histórias de uma tristeza imensa, de pura resignação ou de seguir com a vida em frente como quem arrasta o mundo atrás de si. É neles que a autora encontra os pretextos para falar de temas tão actuais como os extremismos, o preconceito, a solidão, a intolerância, a falta de solidariedade ou a estupidez do ser humano, doença que avança para a cronicidade e que vai minando por dentro a nossa sociedade.

Não poderia terminar esta breve recensão crítica sem dedicar uma palavra a “Chão Zero”, conto de abertura do livro e que o marca de forma indelével, como uma dor em moedeira que está lá mas da qual nos distraímos, ou porque concentrados em algo que reclama o máximo das nossas energias ou porque há dores que se sobrepõem umas às outras, trazendo com elas o primado do mais forte. Como um lamento (ou será um grito?), “Chão Zero” é de uma verdade e de uma intensidade tocante, que nos dilacera e faz sofrer, ao mesmo tempo que expõe, de forma clara, a extraordinária qualidade da escrita de Ana Margarida de Carvalho. “Quase tudo o que ler a partir daqui é mentira”, adverte-se o leitor na volta do conto. Talvez não seja bem assim, entre a mentira e a verdade uma linha tão ténue que só olhos atentos e cabeça fria conseguem descortinar. Mas não deixa de ser uma bela metáfora destes estranhos dias que correm.

domingo, 4 de outubro de 2020

LIVRO: "A Visão das Plantas"



LIVRO: “A Visão das Plantas”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Relógio D’Água Editores, Novembro de 2019


“Nas manhãs nubladas, gostava de sair para ver o movimento. O seu vulto de sobretudo cinzento e chapéu alto de feltro passeava pela vila mudada e chamava a atenção dos mesmos que o haviam visto partir. A barba comprida, o rosto fechado, de poucos amigos, a pala de couro negro inspiravam aos habitantes aventuras misteriosas. O rumor dos vestidos arrastando-se nas ruas azedava-lhe o humor. Apenas aos meninos e às meninas que o olhavam de baixo, entre as saias compridas e, de vez em quando, lhe punham a língua de fora, lançava sorrisos.”

É sempre com redobrado entusiasmo que retiro da estante um livro de Djaimilia Pereira de Almeida, elegendo-o como a mais íntima das companhias nos dias que se avizinham. Que, no caso de “A Visão das Plantas”, até nem foram muitos, as menos de cem páginas a pedirem, pela riqueza das imagens e das mensagens que convocam, contenção na leitura, contrariada por esse entusiasmo único que só os grandes autores despertam e que faz com que as suas obras tendam a ser devorados num ápice. Assim foi com este livro, o interesse e prazer que desperta situando-se ao nível dos dois anteriores romances lidos da autora – “Luanda, Lisboa, Paraíso” e “As Telefones” -, a escrita cuidada, de uma riqueza descritiva invulgar, a confirmá-la como uma das minhas escritoras de eleição no panorama da nova literatura portuguesa.

Em “A Visão das Plantas”, a autora colhe inspiração na personagem do capitão Celestino, uma das figuras que povoam a obra “Os Pescadores”, de Raul Brandão, através dele penetrando no mais fundo da alma humana e oferecendo, na mesma bandeja mas em copos diferentes, o sabor suave da calma e do apaziguamento e a insuportável poção do remorso e da culpa. Convidando o leitor a franquear os muros da casa e a adentrar o jardim do velho homem do mar, Djaimilia Pereira de Almeida dá-nos a conhecer um delicado mundo de cores e aromas onde os limões choram em ponto de pérola, o espantalho de braços abertos é como um arcanjo apaixonado pelo vento e as ameixas quase sabem a ananás dos Açores. Mas se espreitarmos bem, perceberemos o quanto de sombra se adensa por detrás da luz, a velha casa da rua dos choupos como o porão de escravos de um navio à deriva, o quintal como um mar outro, sem homens e sem tempo, e o passado como o rasto que as lesmas deixam ao subir as paredes da casa caiada.

Tirando o melhor partido de uma história muito simples, Djaimilia Pereira de Almeida coloca-nos perante a nossa própria finitude e mostra-nos o quanto de contraditório existe na figura humana, nas escolhas que faz como na forma de as pôr em prática. Descrevendo os momentos de uma vida que, por serem os derradeiros, não são por isso mais importantes do que todos os demais, a autora revela-se uma atenta e dedicada investigadora dos mistérios e segredos que cada um guarda dentro de si. Talvez as flores possam constituir a mais bela das metáforas, mostrando-se em todo o seu esplendor se alvo do melhor trato, mas não deixando de evidenciar a sua forma e as suas cores quando, altivamente, rompem entre as penedias, indiferentes à presença humana. Ou as crianças, a quem o reino dos céus pertence, apontando, com a sua inocência e ingenuidade, caminhos de redenção, mas habitadas já pelo germe do mal, pronto a revelar-se a qualquer momento.

domingo, 2 de agosto de 2020

LIVRO: "As Telefones"



LIVRO: “As Telefones”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Relógio D’Água Editores, Maio de 2020 


“Menina, vai dormir agora, mas fixa bem estas palavras, genro meu não é preto, não admito cá nenhum desses matumbos que andam aí e nem sabem o que é uma auto-estrada, não é auto-estrada que se diz aí?, não é escada rolante, é auto-estrada, era só o que me faltava! Dorme bem, filha, sim, a Mamã liga, como sempre, tchau, beijo, beijo...” 

Quando publicou “Esse Cabelo”, o seu romance de estreia, Djaimilia Pereira de Almeida referiu numa entrevista que “o ganho de procurar é procurar, interessando pouco ou nada o que se encontra”. E embora seja difícil contentarmo-nos com a incerteza quando procuramos saber quem somos, a resposta mais profícua, e a mais desconfortável, é chegar ao fim com uma pergunta, e outra, e outra. Seis anos volvidos, a escritora retoma a narrativa de “Esse Cabelo” naquilo que tem de busca da identidade, continuando a procurar e a achar mais perguntas do que respostas. Isso mesmo confirmamos em “As Telefones”, um livro que narra o viver e o sentir de Filomena e Solange, mãe e filha, seis mil quilómetros a separá-las, sensivelmente a distância que separa os subúrbios de Luanda dos subúrbios de Lisboa.

Longe do exercício voyeurista de quem fica à escuta do lado de fora, aquilo que Djaimilia Pereira de Almeida convoca em “As Telefones” é a imersão plena no corpo e na mente destas duas mulheres à conversa à medida que crescem, sobreviventes aos seus próprios silêncios como duas campeãs de mergulho olímpico. Só o auscultador sujo de dedadas de gordura, as cortinas laranja de flanela suja, o perfume que teima em permanecer nas coisas e cinco dentes de leite guardados num pedacinho de algodão são verdadeiros. Tudo o mais é fingimento, as recordações que contam uma da outra decalcadas das suas próprias recordações, firmes no balanço pelo veneno dos equívocos, os sonhos contados à pressa em chamadas matinais, como casas de pedra e cal nas suas vidas. Uma espécie de pacto, onde o importante é preservar as máscaras e deixar cair aos poucos a certeza daquilo que a cada uma pertence.

Descobrindo-se nesse ponto híbrido que é, ao mesmo tempo, memória, ensaio e ficção, “As Telefones” encerra uma reflexão profunda sobre as causas e consequências do distanciamento físico. Paradoxalmente, um livro que é um desfiar de desvios, imprecisões e omissões, resulta gigante na verdade que dele se derrama. Djaimilia Pereira de Almeida é tocante de honestidade e generosidade na forma como expõe uma realidade de contornos marcadamente pessoais e solidamente ligada ao fenómeno da diáspora. Ao leitor cabe o trabalho de catar as migalhas sobre a mesa, esfareladas pela mão da memória. De perceber o quanto da sua própria vida estará guardado numa caixa de madeira. E de partir em busca de respostas, cada vez mais certo da inutilidade da sua demanda. “Quantas vezes pode morrer uma mãe? Quantas vezes pode nascer uma filha?”

terça-feira, 3 de março de 2020

LIVRO: "O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça"



LIVRO: “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”,
de Ana Margarida de Carvalho 
Ed. Relógio d’Água, Novembro de 2019


“(...) às vezes reparava num carreiro de formigas, não são muitas, é uma só, estava convencido, um insecto, muito comprido, muito rente, desmantelado, com milhões de patinhas, que não terminava nunca de passar, pelo menos a si nunca fora dado ver a última formiga que encerrava o carreiro, e já ia com 24 anos de olhos postos no chão, é porque isto é um bicho sem fim, (...)” 

Como um carreiro de formigas, que se alonga e alonga até dar a volta ao mundo, assim são as palavras alinhadas ao correr de “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, prosa sem pausas, intensa, febril, que nos transporta a um certo Alentejo em finais da década de 1930, a Guerra Civil de Espanha a estender os estigmas do ódio, do terror e da morte ao lado de cá da fronteira, uma densa nuvem negra a atingir em breve a Europa e o Mundo. No espaço de um único dia, entre dois entardeceres, com Simão, Maria Angelina, Isidro, Maria Albinha, Constantino, Camilo, Maria Albertina e tantos outros, mergulharemos no mais fundo do fundo da alma das gentes, as mãos sujas de sangue, o ar carregado de poeira que um vento agreste teima em levantar.

É inegável a habilidade da autora em traduzir por palavras a angústia de quem carrega um fardo demasiado pesado, a arrogância no bico duma ave de rapina, os lamentos das mulheres que nada têm e nada querem, a raiva no ataque de uma matilha de cães ou o sabor do sangue cru que salpica do arpéu do atum. Estamos de novo em terrenos do genial “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”, naquilo que o livro tem de visceral, na poesia que se derrame de forma directa – “se já não pões a tanta insânia freio / não esperes de mim daqui adiante / que possa mais amar-te, mas temer-te / que amor, contigo, em medo se converte” – ou simplesmente se insinua, numa medalhinha com o nome do filho, num homem inundado de mar por dentro ou num Cristo negro de pescoço pendido. 

Com tanto de inquietante e incómodo como de ameno e apaziguador, a escrita de Ana Margarida de Carvalho tem uma qualidade figurativa única, capaz de conferir um sentido global a uma espécie de bestiário, em que os significados se misturam e confundem. Nesse sentido, sugere-me a pintura de Hieronymus Bosch, na medida em que combina, de forma assaz convincente, a profunda religiosidade inerente à noção de bem e de mal, com o carácter social ou ético do pecado. Estabelecendo uma comparação com o quadro “As Tentações de Santo Antão”, por exemplo, percebemos que há tanto de grotesco – e, ao mesmo tempo, tanto de humano – na representação dos elementos que povoam o tríptico, como nas personagens que se desdobram à nossa frente, nas páginas do livro. Apenas com uma diferença: Neste livro, ninguém é tentado porque ninguém é santo!

sábado, 10 de agosto de 2019

LIVRO: "A Saga de Selma Lagerlöf"



LIVRO: “A Saga de Selma Lagerlöf”,
de Cristina Carvalho
Ed. Relógio D'Água Editores, Outubro de 2018


“Tive sempre presente em mim a ideia e a certeza de que toda a literatura deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.”

Primeiro surgiu a ideia de escrever um livro que pudesse evocar a figura de Selma Lagerlöf, nascida na Suécia em 20 de Novembro de 1858 e desaparecida aos 81 anos, na mesma casa onde nasceu. Depois veio a viagem à Suécia e aos locais marcantes da vida da escritora – de Mårbacka, a sua casa, e das incríveis florestas ao longo do Lago Fryken, na província de Värmland, à cidade de Falun, onde Selma Lagerlöf viveu treze anos e escreveu alguns dos livros que compõem a sua notável obra. O resultado é este “A Saga de Selma Lagerlöf”, de Cristina Carvalho, um livro onde se procura descrever o quotidiano desta professora, política, sufragista e feminista, uma verdadeira mulher de causas e a primeira escritora a ser distinguida com o Prémio Nobel da Literatura, em 1909.

Se há aspecto que marca este “romance biográfico” é a honestidade da proposta, da qual resulta uma escrita intensa e emotiva. Relato vivo das múltiplas impressões e apontamentos de viagem ao país natal de Selma Lagerlöf, esta “saga” vai muito além do registo evocativo, repleto de imagens plenas de força e beleza. Ela é, sobretudo, um gesto de humildade perante a dimensão humanista e o exemplo de coragem da escritora sueca, por parte de quem com ela se identifica fortemente. Daí esta tão grande cumplicidade entre biógrafa e biografada expressa em palavras, daí este afago ao leitor que, guiado pelas mãos de ambas, se deixa introduzir num universo onde o onírico, o fantasmagórico e o misterioso transformam a vida em festa e a morte em surpresa.

Face a tão rica história de vida, é natural que o leitor possa sentir alguma frustração por não ver desenvolvidos certos tópicos, nomeadamente a relação amorosa que manteve com duas mulheres ou o embate com a ala conservadora da Academia Sueca e em particular com August Strindberg. A curiosidade pode sempre ser satisfeita com a consulta das fontes de pesquisa certas, mas seria muito mais interessante de ver tratados estes aspectos pela “voz” de Selma Lagerlöf. Também os momentos finais do livro e a descrição pormenorizada de Mårbacka, em jeito de visita guiada, destoam do conjunto da obra, mas no geral este é um livro que se lê com enorme interesse, contendo passagens primorosas do ponto de vista narrativo e de onde ressaltam os valores da grande escrita.

sábado, 17 de março de 2018

LIVRO: "Karen"



LIVRO: “Karen”,
de Ana Teresa Pereira
Ed. Relógio D'Água Editores, Julho de 2016


Este é um livro que ilustra na perfeição a ideia, mil vezes repetida, de que “quanto mais simples é uma história, maior é a arte de a contar”. Porque “Karen” é uma história simples – um leque reduzido de personagens, espaços perfeitamente demarcados, uma mulher com amnésia após um acidente, aquilo que se insinua como um triangulo amoroso – e porque consegue, através duma escrita engenhosa e particularmente visual, envolver completamente o leitor e obrigá-lo a prolongar o livro para lá da derradeira linha.

Carregando o livro de referências cinéfilas, Ana Teresa Pereira faz questão de nos mostrar ao que vamos logo nas páginas iniciais. Se os nomes de Deborah Kerr, Kathleen Byron, Maria Schell ou Marcello Mastroianni colocam a tónica no cinema, os romances de autores da primeira metade do século XX ou as séries policiais indiciam o carácter misterioso da história. O resto é isso mesmo, a história. Uma bela história, centrada na figura desta mulher que toda a gente trata por Karen mas que rejeita, intimamente, todas as evidências, ao mesmo tempo que assume uma duplicidade perturbadora. É para “Noites Brancas” e Visconti ou “Quando os Sinos Dobram” e Powell e Pressburger que a autora explicitamente remete, mas na realidade é na sombra de Hitchcock e de Daphne du Maurier que seguimos.

Lançado no campo do “thriller”, “Karen” é, todo ele, um manancial de pistas. Constantemente deparamos com apontamentos breves nos quais já tínhamos “tropeçado” algumas páginas atrás. É então que a sensação de “déjà-vu” se torna avassaladora, nela se identificando o leitor com a personagem principal do livro. Página após página, o romance vai-se construindo ao mesmo tempo que a estranheza e a inquietação se vão sedimentando. A dúvida cede lugar ao medo. Levando a tensão ao extremo, Ana Teresa Pereira remata com um golpe de génio, um flashback onde se reforçam semelhanças e percebem diferenças. Terminado o livro, consegue o leitor resistir ao apelo de voltar ao início?