LIVRO: “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”,
de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Relógio d’Água, Novembro de 2019
“(...) às vezes reparava num carreiro de formigas, não são muitas, é uma só, estava convencido, um insecto, muito comprido, muito rente, desmantelado, com milhões de patinhas, que não terminava nunca de passar, pelo menos a si nunca fora dado ver a última formiga que encerrava o carreiro, e já ia com 24 anos de olhos postos no chão, é porque isto é um bicho sem fim, (...)”
Como um carreiro de formigas, que se alonga e alonga até dar a volta ao mundo, assim são as palavras alinhadas ao correr de “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, prosa sem pausas, intensa, febril, que nos transporta a um certo Alentejo em finais da década de 1930, a Guerra Civil de Espanha a estender os estigmas do ódio, do terror e da morte ao lado de cá da fronteira, uma densa nuvem negra a atingir em breve a Europa e o Mundo. No espaço de um único dia, entre dois entardeceres, com Simão, Maria Angelina, Isidro, Maria Albinha, Constantino, Camilo, Maria Albertina e tantos outros, mergulharemos no mais fundo do fundo da alma das gentes, as mãos sujas de sangue, o ar carregado de poeira que um vento agreste teima em levantar.
É inegável a habilidade da autora em traduzir por palavras a angústia de quem carrega um fardo demasiado pesado, a arrogância no bico duma ave de rapina, os lamentos das mulheres que nada têm e nada querem, a raiva no ataque de uma matilha de cães ou o sabor do sangue cru que salpica do arpéu do atum. Estamos de novo em terrenos do genial “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”, naquilo que o livro tem de visceral, na poesia que se derrame de forma directa – “se já não pões a tanta insânia freio / não esperes de mim daqui adiante / que possa mais amar-te, mas temer-te / que amor, contigo, em medo se converte” – ou simplesmente se insinua, numa medalhinha com o nome do filho, num homem inundado de mar por dentro ou num Cristo negro de pescoço pendido.
É inegável a habilidade da autora em traduzir por palavras a angústia de quem carrega um fardo demasiado pesado, a arrogância no bico duma ave de rapina, os lamentos das mulheres que nada têm e nada querem, a raiva no ataque de uma matilha de cães ou o sabor do sangue cru que salpica do arpéu do atum. Estamos de novo em terrenos do genial “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”, naquilo que o livro tem de visceral, na poesia que se derrame de forma directa – “se já não pões a tanta insânia freio / não esperes de mim daqui adiante / que possa mais amar-te, mas temer-te / que amor, contigo, em medo se converte” – ou simplesmente se insinua, numa medalhinha com o nome do filho, num homem inundado de mar por dentro ou num Cristo negro de pescoço pendido.
Com tanto de inquietante e incómodo como de ameno e apaziguador, a escrita de Ana Margarida de Carvalho tem uma qualidade figurativa única, capaz de conferir um sentido global a uma espécie de bestiário, em que os significados se misturam e confundem. Nesse sentido, sugere-me a pintura de Hieronymus Bosch, na medida em que combina, de forma assaz convincente, a profunda religiosidade inerente à noção de bem e de mal, com o carácter social ou ético do pecado. Estabelecendo uma comparação com o quadro “As Tentações de Santo Antão”, por exemplo, percebemos que há tanto de grotesco – e, ao mesmo tempo, tanto de humano – na representação dos elementos que povoam o tríptico, como nas personagens que se desdobram à nossa frente, nas páginas do livro. Apenas com uma diferença: Neste livro, ninguém é tentado porque ninguém é santo!
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