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quarta-feira, 13 de outubro de 2021

LIVRO: "Cartografias de Lugares mal Situados (10 Contos da Guerra)"



LIVRO: “Cartografias de Lugares mal Situados (10 Contos da Guerra)”,
de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Relógio D’Água Editores, Junho de 2021


“Não sabiam desistir. É o que lhe temos vindo a dizer, senhora jornalista, embora vindos de partes distintas do planeta, eram demasiado parecidos. Na força física e na obstinação. Não se rendiam, não aceitavam empates nem complacências. Nem quando vieram as retroescavadoras retirar a areia, os familiares sepultar o que restava dos seus cadáveres, desidratados e mumificados com areia por fora e por dentro, e os esquadrões antibombas desinfestar quase todo o território. A guerra tinha acabado mas não para eles. Continuaram a defender os seus postos. Tal como haviam sido oficiados.”

Este breve excerto remete para a cartografia de um lugar mal situado que Ana Margarida de Carvalho designa por “primeira linha de fogo”. De um lado a jornalista, do outro a população. No centro a “casa bexigosa”, uma casa cravada de marcas de balas, agora destruída, pedaços de corpos dos seus dois habitantes espalhados, “uma perna para um lado ainda com a anca agarrada, as tripas para o outro”. A população é árabe. Falam do calor e do leite que coalha nos estômagos, do arame farpado que só os gatos conseguem atravessar, de minas anti-pessoais a mais ou a menos. Há chá de hibisco num samovar, sente-se-lhe o aroma intenso. As conversas distraem-se, “a gente desmemoria-se, é inevitável, não há como combater o peso do presente”. Quando regressam aos velhos e ao casebre bexigoso, é para falar dos litígios ancestrais e íntimos de dois alfaiates praticamente cegos do lado de cá do deserto.

Depois de “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato” ou “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, Ana Margarida de Carvalho volta a impressionar-me com a acuidade do seu olhar e a riqueza da sua escrita. O conto sobre o qual, de forma breve, me debruço no parágrafo anterior, é paradigmático disso mesmo. Há nele a força da História que se impõe como uma marca de inevitabilidade. Há gente que carrega às costas os despojos de uma conflitualidade sempre presente. Há lugares cuja cartografia não permite distorções, de tão exactos e únicos que são. Há, sobretudo, a coragem de lutar contra a adversidade e seguir em frente, “que a vida é só uma e não nos deixa tempo para angústias”. E isto tanto é válido agora como há duzentos anos, na aflição de quem foge ao invasor francês, de quem se faz ao mar numa noite escura ou de quem se confina, tomado de pânico por uma pandemia que alastra como uma nuvem tóxica e mortal.

Ao longo destes “10 Contos da Guerra”, a autora explora a bestialidade, o absurdo e a maldade que se espalham em cada conflito, pondo a nu o pior da natureza humana. O seu olhar rasga fronteiras, entra nas casas e penetra no íntimo das pessoas, expondo-o mais as suas feridas de guerra. De súbito, os actos heróicos da resistência francesa ficaram lá longe, sobrando umas mãos como tentáculos desarticulados de um polvo seco; os ecos da Guerra Civil de Espanha diluem-se no toque rijo e são de uma prótese de madeira; a Guerra da Síria é um homem com cheiro a salgado, olhos de urgência e dedos de ganância. Traçado o mapa, avançamos por estes lugares mal situados com o medo de quem teme pisar uma mina, o passo suspenso da cegonha, incapazes de passar ao lado do horror, de o olhar nos olhos. Este livro vem lembrar-nos que o mundo real não se faz apenas do assombro de Muralhas da China, Pirâmides do Gizé, praias do Caribe ou quadros de Caravaggio. Há gente a viver debaixo de escombros e lugares cujos mapas importa não esquecer.

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