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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

LIVRO: "Natureza Urbana"



LIVRO: “Natureza Urbana”,
de Joana Bértholo
Ed. Relógio D’Água Editores, Abril de 2023


“Reparei que, no parque, alguns pássaros adicionavam aos seus ninhos elementos de plástico e de metal. Via-os passar com um pau de gelado no bico, um porta-chaves reluzente, um pedaço de plástico azul que terá sido parte de um brinquedo. Lixo, diríamos. Nós recolhemos a folhagem e os galhos com que eles constroem as suas casas, para fazer as nossas coisas; e eles, por sua vez, vinham buscar as nossas coisas para construir as suas. Poderia ser o começo de uma história interminável.”

Quem já passou centenas de vezes num determinado lugar e só agora viu, verdadeiramente, o que nunca tinha visto - e creio que muitos de nós, se não mesmo todos, já experimentámos essa sensação quase desconcertante -, vai gostar deste “Natureza Urbana” e daquilo que ele nos reserva. O assunto não é novo na escrita de Joana Bértholo, uma autora que vem chamando a atenção, livro após livro, para abrirmos os olhos e estarmos atentos àquilo que se passa à nossa volta. Aprender a andar devagar será um bom princípio para quem ambiciona poder olhar as coisas e julgá-las de forma completa e sem interrupções. Acordar tranquilamente e pensar que podemos, simplesmente, ficar quietos, é também uma bela forma de olharmos o nosso interior, ao encontro daquilo que verdadeiramente somos. O tempo, ou aquilo que dele fazemos, mostra-se determinante neste olharmos as coisas e olharmo-nos a nós próprios. Tomemos, pois, o nosso tempo, saboreemos a merecida pausa, reivindiquemos o direito à desconexão. É nesse momento que este conto começa.

“Como foi que vim aqui parar?” Desta forma começa Joana Bértholo este seu pequeno-enorme conto, sugerindo que alguém, num lugar específico, tenha uma história para partilhar. Saberemos que esse alguém é uma mulher, tem trinta e seis anos, vem de perder a mãe e o emprego. Falta-lhe tudo, menos tempo. Um Senhor da Funerária e uma Senhora do Centro de Emprego serão as primeiras pessoas a mostrar-lhe que, além de tempo, afinal há outras coisas que também possui. Da ambição inicial de poder olhar as coisas com todo o vagar, ao sonho de tornar-se uma pessoa conhecedora do mundo que a rodeia e das palavras certas para o definir - mesmo que indecisa quanto ao querer “saber muita coisa sobre poucas coisas ou qualquer coisa sobre muitas coisas” - vai um pequenino passo, tornado enorme com a descoberta da Biblioteca. Ou melhor, do Bibliotecário.

“Natureza Urbana” é um livro de uma bondade imensa. Com palavras muito simples, Joana Bértholo fala-nos do nosso quotidiano e de como ideias sinuosas e complexas o podem ser apenas na aparência. Tal como a figura principal do conto, também nós percebemos que, no essencial, a ideia de campo, de natureza, não difere muito das matérias que compõem as cidades que habitamos. Que a cidade, no fundo, é o campo reordenado de uma maneira que nos parece artificial, mas que não deixa de ser essencialmente natural e que merece ser amada por isso. Servirá de começo para uma grande aventura? Talvez o livro não responda a esta questão, mas levanta outras que nos obrigam a pensar e, mais do que a pensar, a ver as coisas com olhos de ver. A ver como a Natureza não é um lugar longínquo, um lugar que se define por não ser cidade. Como a nossa pele estalada pelo sol não difere muito da casca de uma Euphorbia. Como estão enganados aqueles que julgam que as árvores estão quietas Como pronunciar a palavra “andorinhão” pode ser o princípio de uma bela amizade.

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