LIVRO: “A Visão das Plantas”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Relógio D’Água Editores, Novembro de 2019
“Nas manhãs nubladas, gostava de sair para ver o movimento. O seu vulto de sobretudo cinzento e chapéu alto de feltro passeava pela vila mudada e chamava a atenção dos mesmos que o haviam visto partir. A barba comprida, o rosto fechado, de poucos amigos, a pala de couro negro inspiravam aos habitantes aventuras misteriosas. O rumor dos vestidos arrastando-se nas ruas azedava-lhe o humor. Apenas aos meninos e às meninas que o olhavam de baixo, entre as saias compridas e, de vez em quando, lhe punham a língua de fora, lançava sorrisos.”
É sempre com redobrado entusiasmo que retiro da estante um livro de Djaimilia Pereira de Almeida, elegendo-o como a mais íntima das companhias nos dias que se avizinham. Que, no caso de “A Visão das Plantas”, até nem foram muitos, as menos de cem páginas a pedirem, pela riqueza das imagens e das mensagens que convocam, contenção na leitura, contrariada por esse entusiasmo único que só os grandes autores despertam e que faz com que as suas obras tendam a ser devorados num ápice. Assim foi com este livro, o interesse e prazer que desperta situando-se ao nível dos dois anteriores romances lidos da autora – “Luanda, Lisboa, Paraíso” e “As Telefones” -, a escrita cuidada, de uma riqueza descritiva invulgar, a confirmá-la como uma das minhas escritoras de eleição no panorama da nova literatura portuguesa.Em “A Visão das Plantas”, a autora colhe inspiração na personagem do capitão Celestino, uma das figuras que povoam a obra “Os Pescadores”, de Raul Brandão, através dele penetrando no mais fundo da alma humana e oferecendo, na mesma bandeja mas em copos diferentes, o sabor suave da calma e do apaziguamento e a insuportável poção do remorso e da culpa. Convidando o leitor a franquear os muros da casa e a adentrar o jardim do velho homem do mar, Djaimilia Pereira de Almeida dá-nos a conhecer um delicado mundo de cores e aromas onde os limões choram em ponto de pérola, o espantalho de braços abertos é como um arcanjo apaixonado pelo vento e as ameixas quase sabem a ananás dos Açores. Mas se espreitarmos bem, perceberemos o quanto de sombra se adensa por detrás da luz, a velha casa da rua dos choupos como o porão de escravos de um navio à deriva, o quintal como um mar outro, sem homens e sem tempo, e o passado como o rasto que as lesmas deixam ao subir as paredes da casa caiada.
Tirando o melhor partido de uma história muito simples, Djaimilia Pereira de Almeida coloca-nos perante a nossa própria finitude e mostra-nos o quanto de contraditório existe na figura humana, nas escolhas que faz como na forma de as pôr em prática. Descrevendo os momentos de uma vida que, por serem os derradeiros, não são por isso mais importantes do que todos os demais, a autora revela-se uma atenta e dedicada investigadora dos mistérios e segredos que cada um guarda dentro de si. Talvez as flores possam constituir a mais bela das metáforas, mostrando-se em todo o seu esplendor se alvo do melhor trato, mas não deixando de evidenciar a sua forma e as suas cores quando, altivamente, rompem entre as penedias, indiferentes à presença humana. Ou as crianças, a quem o reino dos céus pertence, apontando, com a sua inocência e ingenuidade, caminhos de redenção, mas habitadas já pelo germe do mal, pronto a revelar-se a qualquer momento.
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