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domingo, 17 de outubro de 2021

LIVRO: "De Noite Todo o Sangue É Negro"



LIVRO: “De Noite Todo o Sangue É Negro”,
de David Diop
Texto original | “Frère d’âme” (2018)
Tradução | Miguel Serras Pereira
Ed. Relógio D’Água Editores, Junho de 2021


“Pela verdade de Deus, eu, Alfa Ndiaye, último filho do homem velho, eu vi a difamação perseguir-me, seminua, sem vergonha, como uma rapariga de má vida. No entanto, os toubabs e os chocolates que viam a difamação perseguir-me, que lhe levantavam a tanga de passagem, que lhe beliscavam as nádegas a rir, continuaram a sorrir-me, a falar-me como se nada fosse, amáveis por fora, mas aterrorizados por dentro, até mesmo os mais rudes, até mesmo os mais duros, até mesmo os mais corajosos.”

É em França, em plena primeira Guerra Mundial, que se desenrola a acção deste livro. Fustigados pelo invasor alemão, os franceses defendem-se como podem em terríveis batalhas que provocam milhares de baixas. Potência colonizadora à data, a França tem nas suas fileiras um enorme contingente de soldados das colónias africanas, chamados genericamente de “senegaleses”, na sua grande maioria provenientes de regiões que integram hoje o território do Mali. Daí que “De Noite Todo o Sangue É Negro” comece por ser uma homenagem a esses homens que, arrancados ao trabalho nos campos, mal equipados, mal armados, enfrentando condições climatéricas duríssimas, se bateram com enorme coragem e espírito de missão por uma causa cujos fundamentos desconheciam, por um país que era o seu mas do qual não sabiam sequer onde ficava, qual a sua língua, a sua História, os seus modos e costumes.

Palco da acção do livro, o campo de batalha que David Diop estende das feridas hiantes da terra ditas trincheiras às fossas cavadas pelos obuses, cheias de uma lama sanguinolenta e infestadas de ratazanas que se banqueteiam com a carne dos mortos, vai muito além disso. Ele instala-se no coração do soldado negro, escuta-lhe as batidas taquicárdicas na hora de saltar da trincheira - a espingarda na mão esquerda e o machete na mão direita - e expor o corpo às balas. É aí que tem lugar a verdadeira guerra. É aí que se gera a consciência do porquê de cortar a carne inimiga, de decapitar, de estropiar, de esventrar. E é aí que se marcam as diferenças entre aqueles que apenas fazem teatro quando irrompem da terra com os seus gritos ridículos e os outros, tornados selvagens por reflexão. Uns regressam sempre vivos, sempre sorridentes, carregando consigo os saques de guerra selvagem. Os demais quedam-se espalhados na planície, o olhar vazio fitando um céu metálico de onde caem os grandes grãos de guerra que tudo apagam.

Galardoado com o International Booker Prize 2021, “De Noite Todo o Sangue É Negro” é um olhar perturbador sobre o que de mais terrível pode abrigar-se em cada um de nós. Percorrendo os caminhos da mente de um jovem soldado negro, David Diop mostra-nos o quanto a guerra é iníqua, espalhando o terror e a morte à sua volta e alterando de forma irrevogável o pensar e o viver daqueles que das suas mãos escapam. O ritmo lento da acção contrasta com a violência dos acontecimentos, mergulhando o leitor num ambiente doentio onde se misturam memórias de vidas simples com o desvario de uma mão cortada ou de um ventre aberto. As emoções vão-se derramando num crescendo até se fundirem num delírio místico, antecâmara da loucura onde coabitam o feiticeiro-leão, o reino-caverna e o caçador-salvador. As histórias falam de quem recusou ficar no meio de parte nenhuma debaixo de uma terra sem nome. As cicatrizes mostram-se no corpo e na alma.

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