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sábado, 16 de outubro de 2021

LIVRO: "Seja o Que For"



LIVRO: “Seja O Que For”,
de Miguel Araújo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Agosto de 2020

“O No Name era um café normalíssimo. A trupe ficava por ali, de pé, a beber cerveja e a falar. Não tínhamos idade para descer as escadas para a Indústria. Nem interesse. Havia um televisor ao dependuro num canto, nisso o No Name era como todos os cafés. Alternative Nation, Headbanger’s Ball, MTV live, 120 Minutes, Beavis and Butthead. O Kurt Cobain aos gritos com aquele anjo enorme atrás, a loira queixuda do Headbanger’s Ball com cachos loiros e madeixas pretas, que dizia “Thhhrash”, a entrevistar o pessoal dos Alice in Chains, o Beavis e o Butthead a grasnarem o riff do Smoke on the Water. O Van Stralen numa mesa a fazer corridas de cigarros e de canecas de litro ao perde-paga. O Guerra a vomitar chili com carne depois de uma investida gloriosa”.

As crónicas quinzenais que Miguel Araújo vem mantendo desde 2017 na Revista Visão - a última, datada do passado dia 9, fala-nos da vida secreta dos objectos e é de leitura obrigatória -, voltam uma vez mais em forma de livro, depois de devidamente escrutinadas. Foi assim com “Penas de Pato - Ver a Vida a Passar da Varanda” [cuja crítica pode ser lida AQUI], volta a ser assim com “Seja O Que For”, segunda incursão do autor na prosa, o se lado optimista e de bem com a vida a sorrir-nos de novo. São quarenta e seis capítulos, quarenta e seis histórias do quotidiano que nos mergulham em “dias pequenos”, o acordar sempre à mesma hora, os pequenos-almoços, as idas para as escolas, a corrida, o chuveiro, o estúdio, os almoços, o estúdio, as idas à escola, os trabalhos de casa, os jantares, a cama (que amanhã é outro dia). Um ciclo diário, sempre igual - “lavar, sujar, voltar a lavar, pôr, repor, usar, deitar fora” -, uma rotina à qual Miguel Araújo dedica o melhor dos seus esforços e da qual extrai uma boa parte do melhor que a vida tem.

“Seja O Que For” poderia ser um livro de auto-ajuda? Obviamente que não. Não tem aquelas capas fatelas de tão coloridas, não nos atira à cara as palavras “poder”, “milagre”, “coragem” ou “f*da-se”, não tem aquelas citações em letra mais pequenina do Deepak Chopra ou as vinhetas a anunciar a milésima edição e os 50 milhões de exemplares vendidos. Mas é inspirador ao ponto de nos dizer que podemos sempre contar com a pequenez das nossas rotinas para que novas e boas ideias surjam e cresçam. Este livro é a prova disso mesmo. Distribuir pratos e talheres pela máquina de lavar, observar um gato morto nas ruas da Cantareira, escutar dois pares de americanos num restaurante da praia da Cordoama ou perceber o quanto uma casa-casa pode ranger e estalar, são nadas deste mundo que, paradoxalmente, nos mostram o quão rica e variada é a vida que nos cerca. Uma vida cuja única mossa que nos faz é não nos fazer mossa, assim nós queiramos e saibamos.

Neste revoltear dos tais “dias pequenos”, vistos também como “dias de missão”, há pormenores que fazem a diferença e ajudam a que as coisas não descambem. Desde logo esse cuidado com a saúde, própria e a de todos lá em casa, que é não ver noticiários. Depois, desligar a função de toque no telemóvel, o ónus da resposta imediata jogado para trás das costas. Ou ainda pender para pessoas que pendem para o mar, que não tocam em delícias ou salsichas, se demoram muito tempo no chuveiro, nunca ligam o ar condicionado do carro ou que, podendo, não falam. É aí que se encontram os “pouquíssimos, caríssimos, verdadeiros amigos”. É com eles que recordamos esse tão leal, nobre e invicto Centro Comercial Dallas mais a sua menos bem frequentada Ala Norte, nos emocionamos com um embrulho gigante em forma de bacalhau numa noite de consoada, trememos de aflição ao recordar o convívio de Carnaval da paróquia de Cristo-Rei com precisos 13 anos e meio de idade ou falamos do Gomes dos Recursos Humanos. E depois cantamos, na mão uma Super Bock, que mesmo que se acabe o stock a vida é boa (a vida é tão boa, a vida é mesmo boa) de se levar.

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