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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

LIVRO: "A Lição do Sonâmbulo"



LIVRO: “A Lição do Sonâmbulo”,
de Frederico Pedreira
Ed. Companhia das Ilhas, Abril de 2020


“Gostaria de guardar à chave, numa caixa dentro do armário, a tal certidão de baptismo do meu avô assinada pelo Sr. Pessoa. Nunca me preocupei em revolver o insondável monte de papelada que o meu avô guardava nas dezenas de gavetas do seu escritório, até porque sei que ficaria estonteado com a irritante profusão de parafusos, pregos, porcas e demais acessórios metálicos, entre moedas e pequenos tesouros acobreados, que ele fechava em diminutos compartimentos, oleosas gavetinhas, como se os escondesse em matrioscas que nunca cessassem de surpreender na sua gravidez de origem e sucessão.”

Não me recordo de um livro em que o autor abusasse tanto dos períodos anormalmente longos como este “A Lição do Sonâmbulo”. A estrutura sintática do livro assenta precisamente nesse discorrer sem fim à vista sobre um qualquer assunto, o autor não raramente desviando-se do fio condutor (se assim lhe posso chamar) para voltar a ele bem mais à frente com um intencional “como ia dizendo”. É irritante? É. Mas talvez importe atentar nisto não tanto sob o ponto de vista gramatical, como se de uma falha se tratasse, mas como um recurso estilístico irmão da oralidade, da nossa forma mais genuína de falar, as ideias a intrometerem-se umas nas outras, a pontuação assaltada por nós cegos, o retomar dos assuntos lá muito à frente, isto se já não os tivermos esquecido. Quem nunca se perdeu numa conversa que atire a primeira pedra.

Regressando à infância e ao início da adolescência, Frederico Pedreira desenha uma linha do tempo pontuada de notas doces e delicadas. A casa dos avós é o centro da acção e há no ar uma nota constante de felicidade. No quintal corre-se, joga-se à bola e ensaiam-se lutas que são um misto de karaté, sumo e luta livre. Lá dentro, com uma paciência de Job, a avó é a grande líder de uma casa onde, a ajudá-la, há uma criada cleptomaníaca. O avô, as tias e os primos completam a buliçosa linha da frente, os pais muito pouco presente, numa retaguarda cujas memórias têm tanto de bom como de escasso. É neste ambiente de novelas ao jantar, romarias ronceiras até ao Guincho, estantes repletas de livros, uma encantatória cassete de video com o desafio entre o AC Milan e o Benfica da final da taça dos campeões europeus e cigarros fumados às escondidas, que os dias se sucedem e, com eles, a maravilha da descoberta de par com as desilusões próprias de uma idade em que o sonho começa a afastar-se da própria vida.

Mostrando o tempo como experiência humana, Frederico Pedreira oferece-nos um retrato das suas vivências onde predominam os tons mais quentes. Temperada por um certo pragmatismo, é a nostalgia que se impõe, convidando o leitor a encontrar paralelismos nas suas próprias recordações. A irritação dos longos períodos dissipa-se à medida que vai crescendo a identificação com a figura do narrador. Sem grande esforço, descubro uma “casa verde” onde a memória, a genealogia e a história se fundem numa conjunção de improváveis matizes. Pela mão do autor - ou empurrado por ele - é a essa casa que regresso. De um lado, a figurinha de criança a brincar às caricas no cimento do pátio, a festa que era o tio Ferraz a comer umas tripas feitas pela mãe, o Sérgio Godinho a rodar no gira-discos “com um brilhozinho nos olhos” ou os três golos do Paolo Rossi ao Brasil no Mundial de 82; do outro, a minha sombra já adulta, amachucada a um canto do quarto.

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