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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

LIVRO: "Pequenos Delírios Domésticos"



LIVRO: “Pequenos Delírios Domésticos”,
de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Relógio D’Água Editores, Outubro de 2017


“Só pergunta quem ama, só indaga quem anseia, só quer saber quem deseja. Mas eu tenho a aflição da bruma, renego a limpidez, o sol que já nasceu, os outros que me ouvem com os olhos. Este barco é um cemitério de corpos vivos. E num barco à deriva, todos se sentem matéria pesada, a maldição física da aceleração em queda livre, como a estupida maçã. E no entanto, todos eles me parecem tão ocos, de ossos aguçados a quererem romper a pele, que quase poderiam flutuar neste mar, que já tudo vai caroço de um fruto raivosamente tragado, chupado, sorvido de todos os sucos. É isso. Somos um caixote de caroços, lançados fora, náufragos dos nossos próprios corpos. E o mar, mesmo que não fertilize, está com uma disposição caridosa de acolher.”

Em Outubro de 2017, o fogo entrou pela terra adentro. Ceifou árvores, florestas inteiras, casas e alfaias agrícolas, décadas de trabalho, dezenas de vidas. Na aldeia do Couto do Mosteiro, em Santa Comba Dão, a casa de família de Ana Margarida de Carvalho foi uma das que não escapou à fúria cega das chamas. De meados do século XIX, do tempo dos seus trisávos, a casa guarda hoje as paredes graníticas ao alto, no seu interior apenas escombros, despojamento e devassidão. Dela restam memórias em forma de cheiros, de sons, de cores, de palavras ciciadas ou de gritos felizes das crianças, do toque das mãos da velha criada ou do estalar do trovão cada vez mais próximo. É esta casa – o que foi e o que é - o ponto de partida e chegada de “Pequenos Delírios Domésticos”, primeira incursão da escritora no mundo do conto.

Colando o título deste seu livro ao de uma canção de Sérgio Godinho, do álbum “Tinta Permanente” (1993), Ana Margarida de Carvalho oferece-nos um conjunto de contos fortemente marcados por esta noção de casa enquanto ideia de território, espaço de pertença, real e concreto ou do domínio da memória, apenas. Nela vivem, a ela chegam ou dela partem figuras como Manuel, um pouco resoluto bombista-suicida, a sobrevivente Andreia, o deslembrado Saaid, o ensimesmado Jorge ou o esquecido Jaime. Com eles trazem histórias de uma tristeza imensa, de pura resignação ou de seguir com a vida em frente como quem arrasta o mundo atrás de si. É neles que a autora encontra os pretextos para falar de temas tão actuais como os extremismos, o preconceito, a solidão, a intolerância, a falta de solidariedade ou a estupidez do ser humano, doença que avança para a cronicidade e que vai minando por dentro a nossa sociedade.

Não poderia terminar esta breve recensão crítica sem dedicar uma palavra a “Chão Zero”, conto de abertura do livro e que o marca de forma indelével, como uma dor em moedeira que está lá mas da qual nos distraímos, ou porque concentrados em algo que reclama o máximo das nossas energias ou porque há dores que se sobrepõem umas às outras, trazendo com elas o primado do mais forte. Como um lamento (ou será um grito?), “Chão Zero” é de uma verdade e de uma intensidade tocante, que nos dilacera e faz sofrer, ao mesmo tempo que expõe, de forma clara, a extraordinária qualidade da escrita de Ana Margarida de Carvalho. “Quase tudo o que ler a partir daqui é mentira”, adverte-se o leitor na volta do conto. Talvez não seja bem assim, entre a mentira e a verdade uma linha tão ténue que só olhos atentos e cabeça fria conseguem descortinar. Mas não deixa de ser uma bela metáfora destes estranhos dias que correm.

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