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domingo, 12 de dezembro de 2021

LIVRO: "Maremoto"



LIVRO: “Maremoto”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Relógio D’Água Editores, Abril de 2021


“Se calhar é a morte que chega perto de mim, que me veio tirar a medida da farda, essa coisa de me encontrar em todo o lado onde olho. Nem assim a saudade acorda. Contemplo o meu passado como se visse um filme que não me comove. Perto da Fatinha, na Rua do Loreto, uma loja de velas lança na rua, nos dias de Inverno, uma luz quente de fogo. Então, no regresso à António Maria Cardoso, chego-me à montra. Velas de todas as cores e formas, pequenas, grandes, coloridas, brancas, douradas, azuis. Era a única coisa que gostava de levar comigo destas ruas. Uma vela para alumiar meu quarto.”

Chama-se Aurora, vive algures em Bissau e é a destinatária de uma longa carta, texto confessional assinado pelo seu pai, “Boa Morte da Silva, oriundo da província do Cunene, Sul de Angola, nascido em 1938, filho de Maria da Silva e pai desconhecido.” Nela, o homem fala do que é ser velho e preto, subir e descer vezes sem conta uma rua de vivos e mortos a arrumar carros, viver da caridade dos outros a guardar o que não está em perigo. Por companhia tem uma hérnia a querer rebentar-lhe no umbigo, um cão de nome Jardel por companheiro e, por vezes, Fatinha, uma jovem sem-abrigo que não diz coisa com coisa. Nas horas felizes, sobem ao Miradouro de Santa Catarina, vêem-se ao longe os navios no rio, comem uma boa merenda de pão com queijo e fiambre, enquanto crescem na boca os sorrisos com as cabriolices do Jardel. Nos outros, que são quase todos, é voltar a ser um espírito que habita as ruas, que anda com os pés e as pernas, que fala e respira, mas por quem as pessoas passam, circulam e nada vêem.

Rua acima, rua abaixo, Boa Morte sorve o aroma a castanhas assadas que se espalha no ar e envelhece de mãos vazias. Passa muito tempo sem haver carro que dê moeda. No dia seguinte não haverá dinheiro para a camioneta… É aqui que paro para pensar, para reflectir na minha atitude de, tomando a parte pelo todo, raramente dar uns trocos a quem me estende a mão. São actos de puro egoísmo que, bem vistas as coisas, é a mim que magoam. “Quem sabe se notavam que mudávamos de passeio para os evitar, mudar de passeio no qual ia a nossa morte e não a sua.” Também eu vejo essas pobres almas, eles sempre de manga curta, parece que nunca têm frio, elas andrajosas, vestindo longas saias, camisolas negras e rasgadas. Fazem-se rodear dos seus sacos e plástico cheios de coisas sem valor, tapam-se com caixotes, dormem ao frio e à chuva, nas entradas de prédios ou, quando a caridade toca a “gente grada”, nas paragens de metro, no coração da terra. Também eu não faço nada.

Com este seu “Maremoto”, Djaimilia Pereira de Almeida volta a segurar-nos pelos ombros e a abanar-nos repetidamente a ver se despertamos da nossa insensibilidade. Como uma onda que avança e tudo cobre à sua passagem, a narrativa obriga-nos a olhar Boa Morte e Fatinha como gente igual a nós, gente que sente e sofre, gente cujo único pecado foi ter nascido do lado errado da noite. No grande teatro da vida, com anjinhos a voar num céu pintado de azul e nuvens, Boa Morte, Fatinha e tantos iguais a eles são actores ante uma plateia vazia. Por muito nobre que seja o carácter de uns, por muito belos e inocentes que sejam os gestos de outros, ninguém paga para entrar, todos preferem continuar a viver a sua vida de mentira, dentro de muros cada vez mais altos, fazendo rolar por baixo da porta um ou dois euros “só para não ter chatices”. Numa escrita delicada, a autora pinta quadros belos na sua crueza, obrigando-nos a olhá-los de frente e a perceber que custa tão pouco trazer um pouco de conforto e de felicidade a quem nada tem. Um livro (mais um) memorável, de uma das mais significativas e marcantes vozes da literatura portuguesa contemporânea.

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