LIVRO: “Todas as Crónicas”,
de Clarice Lispector
Texto original | “Todas as Crônicas” (2018)
Prefácio | Marina Colasanti
Organização e posfácio | Pedro Karp Vasquez
Pesquisa textual | Larissa Vaz
Ed. Relógio d’Água Editores, Dezembro de 2018
“Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de… E para isso fora necessário um menino magro e escuro… E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.”
Idealmente, este livro deveria ter sido lido ao correr do tempo, fazendo coincidir as datas nele inscritas com o momento presente, descontada a diferença de praticamente meio século sobre a publicação das crónicas em jornais e revistas da época. Haveria aqui leitura para uma boa meia dúzia de anos, mas evitaria a natural saturação de temas que coincidem e se repetem com alguma frequência. Por outro lado, sobrar-me-ia tempo para absorver o pensamento da autora naquilo que nele há de mais intenso e profundo, de mais realista, de mais poético, também. Mas assim, lido em “douda correria” no curto espaço de uma semana, “Todas as Crónicas” deixa-me uma sensação de incapacidade em determinar a equivalência entre o todo e a soma das partes. Sobretudo quando essas partes se mostram tão diversas do ponto de vista formal e dos próprios assuntos abordados, pedindo ao leitor um esforço de análise e convergência, quando não de coerência.
“Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está-se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?”. É com esta confissão ao seu amigo Rubem Braga que Clarice Lispector abre uma das suas crónicas mais interessantes, porque mais despojada. Com ela, as dúvidas do leitor quanto à verdade dos textos desfazem-se, a autora confirmando-se numa escrita muito bela, a crónica fluindo “ao correr da máquina”, exprimindo com paixão o olhar intenso e agudo sobre si própria e sobre o seu mundo. Este dar e dar-se será um elo comum a todas as crónicas, sejam elas íntimas ou mundanas, conversas com gente comum ou entrevistas com grandes artistas, retratos do quotidiano ou quadros numa galeria. A marca de personalidades como o futebolista Zagallo, o matemático Leopoldo Nachbin, o actor Paulo Autran, a escritora Nélida Piñon, o cantor Chico Buarque, o desenhista Lara ou o paisagista e pintor Roberto Burle Marx, entre tantos outros, fica gravada nas crónicas de Lispector, tal como ficam gravadas as marcas de gente comum como um chofer de taxi, uma mulher no autocarro ou um menino pedindo esmola.
Baseando as suas Crónicas em registos do quotidiano, Clarice Lispector mostra empenho em, através da sua escrita, assumir a defesa de causas como a falta de acesso à cultura ou à educação, a pobreza e a fome. Estou certo que a grande popularidade que granjeou com estes seus escritos, sobretudo com a sua coluna semanal no Jornal do Brasil, em muito fica a dever ao olhar agudo e sensível sobre as desigualdades e as injustiças mas também a um certo espírito “voyeur” alimentado pelas portas abertas à intimidade, pelas respostas às muitas cartas que recebia ou pela polémica que alimentava a propósito de gestos ou atitudes menos agradáveis. Suspeito que a aceitação das longas incursões nos meandros da arte e dos artistas não tivesse a mesma receptividade e fosse ide igual modo entendida pela generalidade dos leitores, mas registo o esforço da cronista em elevar o conhecimento e despertar a sensibilidade do seu povo. Ficam ainda preciosas reflexões quanto ao labor da escrita, da sua génese e diversidade, dos veículos que a fazem chegar ao público, do próprio público e da sua apreciação crítica. Um livro fundamental para a compreensão do universo de uma grande escritora e dos seus infindáveis recursos.
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