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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

LIVRO: "Novas Cartas Portuguesas"



LIVRO: “Novas Cartas Portuguesas - Edição anotada”,
de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa
Organização | Ana Luísa Amaral
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2019 (4ª edição anotada; 12ª edição do texto)


Terceira Carta V



Minhas irmãs:

Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?”

Assombroso. Não encontro melhor termo para expressar o sentir sobre as “Novas Cartas Portuguesas”, de tal forma Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa se mostram firmes e livres ao escrever o que escreveram, no tempo em que o escreveram. O tempo é o da longa noite do fascismo, numa fase de estertor do Estado Novo, particularmente audível quando confrontado. E logo por mulheres. Mulheres. Que trocam os filhos e os maridos no recato do lar pela escrita, ousando publicar um livro “de conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública.” Mulheres que não hesitam no momento de se afirmarem inteiras, senhoras de si e do seu corpo. Que não se escondem em eufemismos e não recuam perante palavras “proibidas”, como “vagina” ou “clitóris”, “menstruação” ou “masturbação”. Que assumem as suas “manhas” e proclamam a sua determinação e coragem num verdadeiro assalto aos dogmas seculares que envolvem a figura da mulher.

Escrito a seis mãos – as mesmas mãos referidas como as de três “aranhas astuciosas” –, as “Novas Cartas Portuguesas” começaram a ser pensadas menos de um ano antes da sua publicação. Com a chancela da editora Estúdios Cor, da qual Natália Correia era directora literária, o livro conheceria a luz do dia em Abril de 1972 mas viria a ser apreendido quase de imediato pela censura. Movido processo pelo regime contra as “Três Marias”, “por atentado violento à moral e aos bons costumes”, o caso galgou fronteiras, juntando o protesto de figuras como Doris Lessing, Jean-Paul Sartre, Marguerite Duras, Simone de Beauvoir ou Christiane Rochefort e amplificando a mensagem ideológica e política subjacente àquilo que constitui um verdadeiro manifesto feminista. O 25 de Abril apanharia de surpresa juízes e rés e o processo viria a ser arquivado, mas até hoje sobram ecos deste estrondoso “murro na mesa”, a voz erguida contra a repressão ditatorial, o poder do patriarcado católico, a violência sobre a mulher, as injustiças da guerra colonial ou a situação de emigrantes, refugiados ou exilados no mundo e “retornados” em Portugal.

As Novas Cartas têm como ponto de partida uma obra clássica da literatura francesa seiscentista que reúne cinco curtas cartas de amor, publicada e traduzida anonimamente e cuja autoria permanece envolta em polémica. As autoras elegem-na pela imagem feminina que nela se apresenta, a de uma freira num Convento em Beja, estereótipo da mulher que, enclausurada e abandonada, mergulha a dor na relação desfeita com um cavaleiro francês de quem se apaixonara. A partir daqui, as autoras irão tomar posse dos ambientes e da própria linguagem da obra original, desenvolvendo um conjunto de cartas nas quais sobressaem a diversidade de géneros literários e a diferença de abordagens. Textos há que se demarcam do conjunto, oferecendo-se a uma análise individualizada pelo seu impacto e alcance. Há poemas de um lirismo esmagador, senhores de figurar em qualquer antologia. Pelo meio, oferecem-se passagens quase codificadas, herméticas, indecifráveis. Mas é no todo que reside o fascínio da obra, o perceber o pensamento coerente assente na soma das partes, a cumplicidade que espreita no virar de cada página, a mensagem convergente na afirmação do eu, sem distinção de género, raça ou classe.

O livro, porém, não cabe apenas nesta vertente política e sociológica, onde o feminismo desfralda bem alta a sua bandeira. Há nele um enorme interesse enquanto objecto literário, quer pela forma como é resgatado o género epistolar, quer pela própria experiência de criação comum. De enorme diversidade e riqueza, as Novas Cartas oferecem-nos citações directas de obras variadas, poemas inspirados nas cantigas de amor e de amigo, referências a figuras míticas, histórias bíblicas, neologismos ou jogos de palavras, com referências que vão de Camões a Alexandre O’Neill, passando por Bernardim Ribeiro, José Cardoso Pires, Lewis Carroll, Alberto Moravia e William Shakespeare, entre muitos outros. Em simultâneo, as autoras interrogam-se (e interrogam-nos) sobre o acto da criação, sobre o poder da palavra. Nesta edição anotada, uma palavra ainda para o extraordinário trabalho de organização de uma equipa liderada por Ana Luísa Amaral e que oferece ao leitor um conjunto significativo de notas intertextuais e outras que em muito enriquecem a leitura e compreensão da obra. Assombroso!

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