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terça-feira, 11 de janeiro de 2022

EXPOSIÇÃO DE DESENHO: "vi uma cadela minha com lobos" | Jaime


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EXPOSIÇÃO DE DESENHO: “vi uma cadela minha com lobos”,
de Jaime
Curadoria | Ângela Magalhães
Centro de Arte Oliva
09 Out 2021 > 20 Mar 2022


Em 1980, a Fundação Gulbenkian apresentou uma exposição monográfica composta por setenta e quatro desenhos do artista Jaime Fernandes. No texto do catálogo produzido para o efeito, da autoria do médico e psicanalista João dos Santos, propunha-se uma contextualização do universo do artista: “Não é uma exposição de desenhos que aqui se mostra. Mostra-se Jaime e o seu mundo visionado através das teias que o limitam. Mostra-se como, segundo os seus escritos, “oito vezes morreu já Jaime” e como oito vezes renasceram nele fantasmas cativos desde a eternidade.” É este universo, com tanto de onírico como de perturbador, que mais de quatro décadas depois reencontramos em “vi uma cadela minha com lobos”, mostra que reúne quarenta e duas obras provenientes de diversas coleções particulares e de instituições nacionais e internacionais, como a Fundação Calouste Gulbenkian e a Collection de l’Art Brut de Lausanne e que se dão a ver, por estes dias, no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira.

Numa espécie de antecâmara do espaço expositivo, há um filme que importa ver. Tome-se o visitante de vagares porque “Jaime”, de António Reis e Margarida Cordeiro, é imperdível. Se, por um lado, estamos perante uma obra seminal da filmografia da dupla de cineastas, uma peça documental que encabeçou o movimento vanguardista do Novo Cinema português, por outro mergulha-nos, com um enorme sentido visual e poético, no universo de Jaime Fernandes, português nascido em 1900, na freguesia do Barco (Covilhã, Beira Baixa) a quem, aos 38 anos, foi diagnosticada esquizofrenia paranóide, levando ao seu internamento no Hospital Miguel Bombarda, onde viria a falecer três décadas depois. Daí que, ao penetrar na sala onde estão expostos os desenhos de Jaime, o visitante bata de frente com a enorme estranheza de estar a ser visto, mais do que estar a ver, a superfície curva onde se perfila a maioria das obras como uma secção do panóptico do “asilo de loucos” para o qual se sente transportado.

Atentando nos desenhos apresentados, são de pequenas dimensões, maioritariamente feitos com esferográficas coloridas sobre papel. Os animais ocupam um espaço importante do universo de Jaime, sendo possível identificar cães, aves, cabras, cobras e outros répteis, a par de criaturas pisciformes, ciclópicas, híbridas. Por outro lado, a figura humana presente nos desenhos de Jaime surge na maioria das vezes sozinha e há nela aspectos que são comuns a quase todos os desenhos em que está presente. São os casos das linhas estáticas do corpo e dos pés de perfil, dos braços erguidos, da forma das cabeças e da linha do cabelo. Estes elementos recorrentes, a par dos automatismos gráficos, como as tramas de linhas e as garatujas que preenchem os fundos, tornam o desenhar propício à dimensão simbólica, enigmática para o observador.

Fazendo um esforço de seguir com o olhar o movimento da mão do artista, quase parece possível perceber aquilo que foi o nascimento do desenho. Percorrendo cada linha, cada traço, ousando imaginar onde principiou, que primeiro toque lhe deu origem, o visitante torna-se cúmplice dos ritmos em trânsito, dos gestos caligráficos, rodopiantes, movimentos que abrem caminhos em todas as direcções e sulcam as linhas do papel. Linhas que se entremeiam camada a camada, fazendo emergir da trama uma superfície plana e profunda, onde figuras e fundo por vezes se confundem, enredados em si mesmos. O efeito é hipnótico, as emoções fluem a ponto de nos sentirmos, nós mesmos enredados nas linhas dos desenhos. Fica claro que a vida de Jaime é indissociável dos seus desenhos, confidentes, talvez, da meada do seu pensamento, feita de fio que ora desprende, ora emaranha. Se olharmos o tempo justo para estes desenhos, é a mão de quem os fez que assoma. E não está parada. Tão pouco silenciosa.

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