LIVRO: “La Coca”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Quetzal Editores, Março de 2011; reimpresso em Novembro de 2013
“ - É. Falta a pesca porque faltam os homens, e os que vão pescar… - com uma expressão preocupada detém-se a meio da frase: - Não é da Polícia, pois não? A gente fala sem tomar tento, mas quando o Verão acaba por aqui só aparecem os da Judiciária e a malta que se mete no café.”
Quando, há pouco menos de três anos, com ele me cruzei pela primeira vez, J. Rentes de Carvalho constituiu uma extraordinária descoberta. “Montedor”, “O Meças” ou “Ernestina” deram-me a ver uma escrita cuidada, marcadamente autobiográfica, muito generosa do ponto de vista cénico, a vida olhada sob o filtro da memória e transformada em paisagens romanceadas de uma enorme consistência e verdade. Vieram depois “Com os Holandeses”, “Mazagram” e, muito recentemente, “No Pais do Solidó”, e fui sendo tomado pela desilusão. Destas leituras sobraram ideias repisadas sobre o inevitável embate entre portugueses e holandeses, deixando a descoberto a visão de um homem aparentemente mal-humorado, desagradável, agastado com ninharias, pouco à vontade com a realidade do presente, conservador, retrógrado. “La Coca”, porém, veio reconciliar-me com o autor.
Percorrendo os meandros do contrabando que, ainda hoje, unem o Minho e a Galiza, o livro remete para uma investigação jornalística levada a cabo pelo próprio autor. Narrado na primeira pessoa, “La Coca” vem mostrar-nos como se passou do tabaco e do whisky para o narcotráfico, a ganância a determinar esse desvio. Sem rodeios, aproximamo-nos de nomes como o Feio, o Tito Cadafé, Sito Miñanco, Oubiña, Galeano, o Zézé Cadaval, o Pepe Mustafá, o Laurestim, os Viriatos, os Charlines, todos iguais, todos parentes de sangue, tendo na vida apenas um fito, a riqueza, reconhecendo uma única lei, a sua própria. Viajando entre os dois lados da fronteira, o autor mostra-nos as casas luxuosas de quem, ainda ontem, esmolava pelas ruas, leva-nos a uma sala de audiências onde decorre o julgamento de um suspeito de narcotráfico, faz-nos perceber de que forma os traficantes exploram as falhas na lei, apresenta-nos as “voadoras”, os locais de embarque e desembarque da droga, os pontos de encontro dos indivíduos ligados ao tráfico, as artimanhas para ludibriar a vigilância da polícia.
Esta vertente de investigação na qual o livro assenta, bem como as revelações que encerra, não são, porém, os grandes trunfos de “La Coca”. Visitando os “locais do crime”, o autor reencontra-se com o seu próprio passado, a aventurosa adolescência entre Lanhelas e Gondarém, o Minho espraiado aos seus pés, os relâmpagos de memória “tão vivos como se os factos acabassem de acontecer”. Nessa viagem no tempo encontra o leitor o melhor de J. Rentes de Carvalho, as versões do passado agora “meigas como ternura de amante, embelecendo a lembrança, colorindo e tornando duradouro o que foi cinzento, o que foi fugaz”. Habilmente construído, “La Coca” vive de constantes saltos no tempo, confrontando versões antigas e modernas da mesma história, o passado desfilando em cenas que não são de vida vivida, antes painéis desbotados num panorama de artifício. O lado jornalístico deste livro dificilmente resistirá ao passar do tempo. Mas a ficção, tornada real à força de sonhada, essa subsistirá, trazendo-nos um sorriso ao rosto de cada vez que pronunciemos “La Coca”.
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