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sábado, 8 de janeiro de 2022

LIVRO: "O Meu Amante de Domingo"



LIVRO: “O Meu Amante de Domingo”,
de Alexandra Lucas Coelho
Ed. Editorial Caminho, Novembro de 2014 (1ª edição); Fevereiro de 2020 (3ª edição)


“Tudo começaria com uma narradora que decide escrever depois de se apaixonar por um impostor. Eu não revelaria o que pusera fim abrupto à relação. Importante era a fúria, a luta armada, a pulsão de vida contra os filhos da puta. O livro seria uma espécie de antropofagia, ela comendo o inimigo para ficar mais forte, como uma tupi portuguesa no Verão de 2014. Estaria há pouco tempo no Alentejo, como eu, mas noutro Alentejo. Podia ser, por exemplo, arqueóloga, escavar enxovais de judeus na Serra de S. Mamede. Pouco importava se existia mesmo um Campo Arqueológico lá.”

Vejo “O Meu Amante de Domingo” como uma provocação. Imagino Alexandra Lucas Coelho a escrevê-lo com esse propósito, o de provocar (e de se provocar), ao mesmo tempo reflectindo sobre o acto da escrita, fascinante jogo de palavras com tanto de verdade como de fingimento, em cada lance um piscar de olho ao leitor em busca de cumplicidade. Uma provocação, portanto, mas daquelas provocações saudáveis, carregadas de humor e sarcasmo, a picar, a picar sempre, à espera de uma virgem ofendida que lhe caia na rede para lhe dizer, sem papas na língua, à moda de Canidelo: “Vai p’ró c@&@#€%!”. Um desplante cobrado com uma saborosa gargalhada por quem parte com todas as ganas ao encontro das convenções porque sabe que foram feitas para serem quebradas. Que se porta mal, porque sim. Que não se rende. E que assim, no meio do estardalhaço, mostra de que massa se fazem os livros.

“Não importa quem é o gajo, nem o que fez, mas o buraco que abriu”. O “gajo”, aqui, é o “caubói”, dezasseis anos mais novo que a heroína da nossa história. Na pele de uma revisora às voltas com a biografia de Nélson Rodrigues ou de uma arqueóloga que desenterra passados, acompanhamos as suas deambulações entre Lisboa e o Alentejo, armada de pás e picaretas a clamar vingança, o som e a fúria alimento para a mais devastadora e selvagem das punições. Enquanto maquina a sua vingança, um livro vai nascendo aos borbotões. Entretanto há um Lada Niva de 1994 a aguardar conserto numa garagem da Bobadela, uma gata chamada “Lolita” a quem é preciso dar de comer, uma cervical a necessitar de vinte piscinas, um Apolo em vias de ser engatado, a vida num minuto e um amante de domingo, “ex-marido de uma pasteleira de Coina, agora casado com uma santa”, que diz “póssamos, vareia,…” e que garante que “os problemas hadem ser resolvidos”.

Segundo romance de Alexandra Lucas Coelho, depois do inaugural “E A Noite Roda”, “O Meu Amante de Domingo” vem confirmar uma mulher segura nas suas convicções e uma enorme escritora. Confiante o suficiente para arriscar um exercício que corta com o estilo do livro anterior e com o seu tom hiperrealista, a autora faz questão de manter um olhar comprometido sobre aquilo que se passa à sua volta e de nos deixar reflexões substantivas em matéria de preconceito de classe ou de género, assédio sexual, violência física e psicológica, direito à privacidade, propriedade intelectual e outros. A ironia torna-se uma forte aliada na descrição das personagens, dos lugares e da própria acção, acentuando-lhes a improbabilidade e o desconcerto. A linguagem carrega-se de obscenidades para melhor vincar a “normalidade” de relações que de normal pouco têm. E há ainda um bónus nas várias leituras que o livro oferece ao convocar um conjunto significativo de autores e respectivas obras, convidando à desconstrução do romance. Um ano de leituras que se abre sob os melhores auspícios.

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