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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

LUGARES: Centro de Arte Moderna Gulbenkian



LUGARES: Centro de Arte Moderna Gulbenkian
Fundação Calouste Gulbenkian
Rua Marquês de Fronteira, Lisboa
Horários | Quarta a segunda, das 10:00 às 18:00 (sábado, das 10:00 às 21:00)
Ingressos | Centro de Arte Moderna (colecção do CAM e exposições temporárias) € 12,00; exposições temporárias CAM € 8,00; all-inclusive (Museu Gulbenkian, CAM e exposições temporárias) € 16,00


O novo Centro de Arte Moderna Gulbenkian (CAM) foi inaugurado no penúltimo fim de semana de Setembro. Ao longo de dois dias de festa, celebrou-se o encontro e a partilha, numa sinergia perfeita entre a arquitetura, a arte, as pessoas e a natureza. Aberto desde então à comunidade, apresenta uma programação que reflete a pluralidade e diversidade da produção artística contemporânea. O edifício que abriga o CAM foi redesenhado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, que colaborou com o arquiteto paisagista Vladimir Djurovic, para integrar na perfeição arquitectura e natureza. Kengo Kuma reimaginou completamente o anterior edifício do CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian, da autoria do arquitecto britânico Leslie Martin e inaugurado em 1983. A profunda reconfiguração do CAM teve como ponto de partida um projecto cuja ambição residiu em estabelecer uma maior ligação entre o edifício e a área alargada do Jardim Gulbenkian, pretendendo dissolver a fronteira entre estes dois espaços e propondo uma integração holística de todos os elementos da paisagem.

Kuma inspirou-se na tipologia Engawa, um caminho protegido pelo beiral do telhado, que não é totalmente interior ou exterior e que pode ser encontrado com frequência nas casas tradicionais japonesas. A grande pala coberta de azulejos brancos de linhas suaves e orgânicas, que agora marca a fachada do novo edifício, transforma a sua entrada principal numa zona de passagem entre o CAM e o jardim, pensada para a socialização de quem o visita. Um espaço que pode ser simultaneamente de protecção e descontração, de acolhimento e de liberdade. O conceito Engawa está também reflectido em várias características do edifício, desde a concepção de novos espaços expositivos à abertura de variados pontos de acesso. A transparência dos volumes e a forma como a luz natural incide no seu interior pretendem sublinhar a ideia do CAM como um centro de arte aberto e acessível, onde todas as pessoas são encorajadas a fazer deste o seu espaço.

Em colaboração com o arquitecto paisagista Vladimir Djurovic, foi reforçada a relação entre a natureza envolvente e o edifício, que está agora mais imerso na paisagem. A proposta de Vladimir Djurovic para o Jardim Sul desenvolve a visão dos arquitetos portugueses Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto para o jardim preexistente, utilizando espécies da vegetação autóctone. Foram esbatidas as zonas de transição entre o CAM e a área mais densa e arborizada do jardim, imprimindo ao conjunto uma maior unidade e harmonia. Com a extensão do Jardim e a sua abertura a sul à cidade, o edifício do CAM passa a ser a principal porta de entrada na Gulbenkian, possibilitando a quem visita a instituição o contacto com  uma oferta mais experimental e inovadora. O projecto proporciona também uma relação mais próxima entre o CAM e os restantes edifícios da Fundação Calouste Gulbenkian, bem como uma maior conexão com as zonas urbanas circundantes e com as comunidades que aí trabalham ou residem.

O projecto de arquitectura paisagista para a nova área do Jardim Gulbenkian funda-se na linguagem do jardim existente, expressão da paisagem portuguesa e de uma cultura ecológica e poética, adoptando este carácter tão marcante como inspiração para a nova expansão. O projecto propõe a criação de uma “mata urbana”, definindo uma nova frente paisagística da Fundação Calouste Gulbenkian, a sul. Uma paisagem resiliente, com um elevado índice de biodiversidade, proporcionando um ambiente onde as pessoas se sintam próximas da natureza e criando habitats para a vida selvagem, estabelecendo com o jardim original uma transição subtil, muito natural. O desenho do espaço é de base naturalista, integrando a vegetação existente e adicionando plantações de vegetação autóctone, incorporando caminhos sinuosos que atravessam esta “mata urbana”, conduzindo quem o visita ao CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian e, para lá deste, ao jardim existente.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

EXPOSIÇÃO: "Veneza em Festa"



EXPOSIÇÃO: “Veneza em Festa - De Canaletto a Guardi”
Fundação Calouste Gulbenkian - Galeria Principal
25 Ou 2024 > 13 Jan 2025


O Museu Calouste Gulbenkian e o Museo Thyssen-Bornemisza, depois da colaboração que desenvolveram em 2009 dedicada ao pintor francês Henri Fantin-Latour, voltam a promover um encontro de obras das suas coleções, motivada pelas afinidades que as caracterizam. Este novo projeto, que se inicia em Lisboa e continua em Madrid no início de 2025, tem como tema a pintura veneziana do século XVIII. O conjunto de obras reunidas nesta exposição oferece testemunho da atração que esta cidade milenar despertou entre os visitantes,  a que  entusiasticamente se juntaram dois grandes colecionadores do século XX: Hans Heinrich Thyssen-Bornemisza e Calouste Sarkis Gulbenkian. Pintores incontornáveis como Canaletto, Guardi, Bellotto e Tiepolo, autores de algumas das mais brilhantes composições do seu tempo, encontram-se entre os artistas selecionados para a exposição. As “feste”, celebrações realizadas na Sereníssima, as “vedute”, vistas panorâmicas de um determinado local, e os “capricci”, arquiteturas fantasistas fruto da imaginação dos artistas locais, por natureza todas elas motivos festivos, constituem o foco desta apresentação.

A cidade de Veneza é, no século XVIII, um centro cosmopolita para onde convergem viajantes de toda a Europa. À sua debilidade política e militar, a Sereníssima responde com a realização de cerimónias públicas faustosas, que celebram a sua antiga grandeza. No último século da sua história (inicia no século IX e termina em 1797 com a ocupação napoleónica), a República  vive uma época de extraordinária vitalidade criativa, que abarca múltiplas formas de expressão artística: a música, o teatro, a pintura, as artes decorativas e a arquitectura. Em 1703, Luca Carlevarijs publica uma série de gravuras em que os edifícios mais importantes da cidade são dispostos segundo critérios tipológicos. O momento estabelece, definitivamente, o nascimento da “veduta” veneziana. Embora o género tenha nascido no Norte da Europa, é em Veneza que atinge o seu apogeu com o surgimento de um grande número de pintores a dedicar-se à realização deste tipo de vistas urbanas. As condições que conduzem a esta conjuntura de sucesso justificam-se pela presença contínua de um público estrangeiro que se reúne na cidade para a paragem obrigatória do Grand Tour, a viagem educativa das elites da época.

Um género específico dentro do tema, as “feste”, destinado a celebrar acontecimentos como magníficas regatas ou visitas de soberanos ou de embaixadores europeus, conhece também o seu momento mais alto.  A cidade assume o papel de protagonista e é retratada como uma verdadeira obra de arte. Dois pintores contemporâneos, Giambattista Tiepolo e Canaletto, alcançam resultados surpreendentes. Este último dedica-se à pintura de “vedute”,  caracterizada por perspetivas amplas que realçam a singularidade de Veneza como “cidade da água” e celebram a sua espectacular cenografia arquitectónica. Francesco Guardi inicia a sua carreira de “vedutista” em meados da década de 1750. Para a realização das suas primeiras obras, o pintor apropria-se de protótipos iconográficos existentes e apresenta versões próprias caracterizadas por uma indiscutível vitalidade de execução. Longe do rigor geométrico de Canaletto, o mais novo dos dois artistas retrata arquiteturas banhadas de luz, numa linguagem pictórica cintilante; é o último pintor a imortalizar o esplendor das cerimónias na Sereníssima República de Veneza.

sexta-feira, 1 de março de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "As Mulheres de Maria Lamas"


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EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “As Mulheres de Maria Lamas”
Curadoria | Jorge Calado
Átrio da Biblioteca de Arte Gulbenkian
26 Jan > 28 Mai 2024


“Jovem mãe da Castanheira, Serra da Estrela. Tem 21 anos e este é o seu primeiro filho. O marido é caseiro, filho de caseiros; ela própria nasceu na serra e trabalha na lavoura desde pequenina. A maneira de pôr o xaile e de segurar com ele a criança é característica, não só daquela região, mas de quase todas as aldeias portuguesas. Também o lenço solto, sobre a cabeça, com as pontas atiradas para trás, é uma nota muito típica do vestuário das camponesas, nos momentos de folga. A casa que se vê ao fundo – a única, naquelas redondezas, que não é coberta de colmo, mas sim de zinco – destinava-se a posto de ensino, mas é actualmente utilizada como celeiro porque o posto fechou, por falta de frequência. Esta fotografia, feita no tempo das colheitas, reproduz o ambiente das eiras, com os montes de palha de centeio, que ficaram depois das malhas.”

Maria Lamas (1893 – 1983) foi uma combatente e uma lutadora resistente, que entrou na História como cidadã e que escreveu História como autora. Jornalista e escritora, pedagoga e investigadora, tradutora e fotógrafa, lutadora pelos direitos humanos e cívicos em tempos de ditadura, foi porventura a mais notável mulher portuguesa no século XX. O bem e a verdade, a igualdade e a felicidade, a liberdade e a justiça, a fraternidade, são valores pelos quais lutou abnegadamente. Humanista convicta, almejou uma sociedade mais justa, uma democracia plena, “uma política humana”. Militou civicamente e convictamente pela igualdade das mulheres, igualdade que defendia baseada na educação e na independência económica, através do exercício de uma profissão ou de um ofício. Escreveu poemas, crónicas, novelas, folhetins, recensões, romances e reportagens, nomeadamente “As Mulheres do Meu País” (1947-1950), documentário essencial dedicado “a todas as mulheres portuguesas” e obtido no convívio de Maria Lamas com mulheres de todas os estratos sociais nos anos 40.

Marco monumental do jornalismo e da literatura portugueses do século XX, “As Mulheres do Meu País” serve de tema e inspiração para a mostra patente no átrio da Biblioteca de Arte Gulbenkian – 149 fotografias do livro, mais de um quarto do total, são de sua autoria. O foco da presente exposição é, pois, a obra fotográfica de Maria Lamas, limitada mas notável. Nela se apresenta uma selecção de 65 imagens em provas de gelatina e prata, maioritariamente de pequenas dimensões, mas também algumas ampliações. Além destas, são expostas provas da época incluídas na obra “As Mulheres do Meu País” da autoria de Adelino Lyon de Castro, Firmino Santos, Artur Pastor, Maria T. Mendonça, Júlio Vidal e Casa Alvão, sendo ainda apresentados alguns objectos pessoais de Maria Lamas, bem como o seu retrato pintado por Júlio Pomar em 1954 e o busto em gesso esculpido, em 1929, por Júlio de Sousa. A secção destinada à sua obra literária e jornalística inclui exemplares de primeiras edições dos livros fundamentais, literatura infantil, poesia e ficção, traduções e algum jornalismo.

“Como fotógrafa, Maria Lamas oscila entre o trabalho taxonómico “O Homem (também a Mulher) do Século XX”, de August Sander, e o projecto do “New Deal” americano da Farm Security Administration. Se este gerou a “Mãe Migrante” de Dorothea Lange, Lamas deu-nos a “Jovem Mãe da Castanheira” e a “Velha Camponesa de Folgosinho”. As suas fotografias são directas, seguras e autênticas (como o trabalho que representam); vêm também arredadas de qualquer pretensão estética. Objectivas, no seu melhor! Aqui, o decisivo não é o instante, mas a mulher em acção, dona do seu corpo e dominando o seu instrumento de trabalho. Quanto às legendas, longas e detalhadas – o drama escondido por detrás da imagem – aproximam-na também da fotografia neo-realista americana”, diz o curador da exposição, Jorge Calado. É desta mulher extraordinária – que nunca usara uma máquina fotográfica… - que podemos ver a sua primeira exposição individual. Quase a celebrarmos meio século de liberdade, esta é uma exposição que assinala os 75 anos do início da publicação de “As Mulheres do Meu País” e que representa, em si mesma, uma justíssima homenagem a Maria Lamas.

quarta-feira, 15 de março de 2023

EXPOSIÇÃO: "Faraós Superstars"


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EXPOSIÇÃO: “Faraós Superstars”
Curadoria | Frédéric Mougenot, João Carvalho Dias
Fundação Calouste Gulbenkian – Galeria Principal
25 Nov > 06 Mar 2023


Embora tenha chegado ao fim, não dispenso este apontamento sobre a exposição “Faraós Superstars”, aproveitando para recordar uma mostra impactante e que chamou à Gulbenkian, ao longo de pouco mais de três meses, muitos milhares de visitantes (nos últimos dias os horários foram mesmo alargados para puderem corresponder ao interesse daqueles que pretendiam ainda ver a exposição). Centrada na figura do faraó e do lugar que este tem ocupado no nosso imaginário colectivo ao longo de cinco milénios, a mostra reuniu cerca de 250 obras de colecções tão importantes como as do British Museum, do Museu do Louvre, do Museo Egizio de Turim, do Ashmolean Museum de Oxford, do Musée d’Orsay, do Mucem de Marselha, da Biblioteca Nacional de Portugal, do Museu da Farmácia, entre outras, dando a ver antiguidades egípcias, iluminuras medievais, pinturas clássicas, documentos, obras históricas, mas também vídeos, música pop, bens de consumo e publicidade do nosso tempo. Um tão variado conjunto de obras convida a uma reflexão sobre a popularidade destas personagens históricas, e por vezes míticas.

Porque motivo alguns faraós são hoje autênticas celebridades, enquanto a memória de outros se perdeu na noite dos tempos? Khufu (Quéops, em grego), Nefertiti, Tutankhamon, Ramsés e Cleópatra continuam a ser nomes reconhecidos milhares de anos após a sua morte, mas poucos saberão quem foram Teti, Senuseret ou Nectanebo. “Faraós Superstars” procura responder à questão evocando, por exemplo, os fundadores do Império Novo, o rei Ahmés, a sua esposa Ahmés-Nefertari e o seu filho e sucessor Amen-hotep I, a quem é devida a reunificação do reino após mais de um século de divisão e a construção e restauro de numerosos monumentos. Mas encontramos aqui, também, a evocação dos “reis malditos”, a mulher-faraó Hatchepsut que criou um precedente perigoso para a transmissão masculina do poder, Akhenaton e sua esposa Nefertiti que tentaram uma reforma radical da religião e do poder, e também dos seus sucessores imediatos, nomeadamente Tutankhamon.

A cristianização do Egipto, no início da nossa era, assinalou o fim da civilização faraónica, cuja histórica mais recuada foi lentamente desaparecendo. A partir de 1822, porém, os egiptólogos começaram a compreender o significado dos hieróglifos e, progressivamente, os faraós foram resgatados do esquecimento. Os meios de comunicação e os museus, em plena ascensão no século XX, elevaram-nos ao estatuto de vedetas internacionais. Ao mesmo tempo, as suas imagens e os seus nomes serviram de base a definições identitárias, acabando por serem promovidos a símbolos patrióticos, impulsionados pelos movimentos nacionalistas que precipitariam a saída do Egipto do domínio britânico na década de 1920. As revoluções tecnológicas fizeram dos faraós ícones pop mundializados, simbolizando todos os aspectos que alimentam o nosso fascínio pelo Egipto antigo: Longevidade, personalização do poder, busca da imortalidade, materiais preciosos, referências bíblicas e mistérios. Os seus supostos vícios e virtudes inspiraram os escritores, enquanto a sua fama atraiu o público e persuadiu os consumidores.

[Texto compilado a partir dos materiais que acompanham esta exposição e que podem ser consultados em https://gulbenkian.pt/museu/agenda/faraos-superstars/]

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

CONCERTO: 6.ª de Mahler



CONCERTO: 6.ª de Mahler
Orquestra Gulbenkian
Direcção | Lorenzo Viotti
Fundação Calouste Gulbenkian - Grande Auditório
18 Fev 2023 | sab | 19:00


A 6ª Sinfonia em Lá menor de Gustav Mahler é uma peça mítica. Nalgum momento da sua composição, talvez Mahler lhe tenha atribuído o título de “Trágica”. Talvez algumas passagens sejam consagradas à sua esposa Alma, retratando-a. Talvez possa ser “a primeira obra niilista da história da música”, como a descreveu o maestro Wilhelm Furtwängler. Talvez. Do que não restam dúvidas é que se trata de uma peça expressivamente sombria, que se fecha na desesperança e na noite escura da alma. Mais significativamente, é uma obra com um cunho profeticamente autobiográfico, sobretudo no seu último andamento, aquele pesadelo emocional, hipnótico e alucinante, com a duração de meia hora. Revendo a peça em 1906, Mahler decidiu eliminar o terceiro dos golpes do movimento – literalmente, uma marretada numa caixa gigantesca com um maço de madeira –, tentando assim escapar a um terceiro lance fatal do destino. A revisão revelou-se inútil: em 1907, o compositor teve que enfrentar a morte da filha, lidar com o fim do seu relacionamento com a Ópera Estatal de Viena e aceitar o diagnóstico de um problema cardíaco que viria a vitimá-lo quatro anos mais tarde.

Um “Allegro energico, ma non troppo” abre a Sinfonia com o passo sombrio de uma marcha, contrastando com uma segunda ideia principal magnificamente lírica (o suposto “tema de Alma”). Todo o andamento é tomado pela repetição, tal como nas sinfonias clássicas, e a trajetória desse movimento termina num tom triunfal que o resto da obra se encarregará de não confirmar, tornando-a caprichosamente devastadora. A peça, de resto, é um desafio constante às convenções, mesmo quando as cumpre. Mahler carrega a estrutura da peça de um tom abstracto, fazendo a música oscilar entre o abismo emocional e o topo da montanha. Algumas passagens mostram-se, inclusivamente, exteriores à moldura da peça, o que é literalmente verdade nos chocalhos que ressoam como a representação de uma esperança indescritível de estabilidade emocional que a música almejará sem conseguir alcançá-la. O “scherzo” apresenta algo de grotesco, ao mesmo tempo infantil e antiquado, mas é no “Finale: alegro moderato” que a alquimia das micro e macroestruturas musicais é mais vívida, e em que todos os principais momentos da arquitectura desse andamento tremendo põem o espectador à prova.

Não podemos avaliar a “Trágica” de forma convencional. Interpretá-la de um ponto de vista autobiográfico e ver nos seus compassos finais o desaparecimento de toda e qualquer esperança, é limitar o seu poder e alcance. Estaremos a dizer que o que ali está representado é alguém distante de nós, o próprio Mahler. Em vez disso, importa que a peça desça à plateia, implicando o espectador naquilo que encerra de dramático. Descobrimos, então, que a Sinfonia tem um poder catártico e de afirmação da vida ao confrontar-nos com os limites da existência, que não apenas musical e sinfónica. No seu desenvolvimento, cria extremos sonoros que ainda são, mais de um século depois, absolutamente únicos. Eles são evidentes sobretudo nas paisagens sonoras oníricas da abertura do “Finale”, crescentes de intensidade, a roda da música e a roda da vida fundidas. Então vemos que a música se dissolve lenta e progressivamente, se desvanece num silêncio sepulcral e de grande intensidade dramática, abrindo espaço à interioridade reflexiva. Quedamo-nos, enfim, com essa que é a maior ironia de todas: que a mais externamente coerente das Sinfonias de Mahler, com os seus quatro andamentos instrumentais, se mostre a mais surreal, sonoramente imaginativa e emocionalmente perturbadora de todas.

[Foto: Fundação Calouste Gulbenkian | https://gulbenkian.pt/musica/agenda/6-a-de-mahler/]

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

LUGARES: Sala René Lalique | Museu Calouste Gulbenkian


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LUGARES: Sala René Lalique
Museu Calouste Gulbenkian
Av. de Berna, 45A, Lisboa
Horário | De quarta a segunda, das 10:00 às 18:00 (encerra à terça-feira)
Ingressos | Bilhete normal € 10,00 (entrada gratuita aos domingos a partir das 14:00)


Após um período de renovação, a sala do Museu Calouste Gulbenkian exclusivamente dedicada à produção joalheira e vidreira de René Lalique reabriu ao público. Nela é possível apreciar uma parte significativa das quase duas centenas de obras adquiridas por Calouste Gulbenkian directamente a René Lalique entre os anos de 1899 e 1927, nas quais é forçoso reconhecer tanto a prodigiosa imaginação do artista, como o gosto e a personalidade do coleccionador. René Lalique e Calouste Sarkis Gulbenkian conheceram-se em meados da década de 1890. Em carta dirigida a Suzanne Lalique-Haviland, em 1945, por ocasião da morte do artista, Gulbenkian manifestava à filha de Lalique o seu profundo pesar pelo desaparecimento do amigo: “O seu Pai era um amigo muito querido, e ao desgosto de o termos perdido junta-se o infinito pesar que sempre experimentamos perante o desaparecimento de um grande homem. A minha admiração pela sua obra única nunca cessou de aumentar ao longo dos cinquenta anos que durou a nossa amizade […] Orgulho-me de possuir, creio bem, o maior número de obras suas, que ocupam um lugar privilegiado entre as minhas colecções”.

De enorme valor e interesse, a colecção traduz, sobretudo no que diz respeito ao período Arte Nova, momento em que Gulbenkian assegurou a aquisição de algumas das mais célebres joias do genial criador, uma síntese da sua obra em cujo centro figura a imagem obsessiva da mulher. Adquirido por Gulbenkian em 1903, o peitoral “Libélula”, que Sarah Bernhardt terá usado em cena, e a que as asas articuladas em esmalte vitral conferem uma dimensão espectacular, resulta da simbiose de dois temas recorrentes do imaginário de Lalique: a figura feminina e o insecto em que esta se transforma e que dá origem a uma criatura híbrida. O broche em marfim “Figuras e Serpentes” é uma das quatro joias da Coleção Gulbenkian que fizeram parte da apresentação triunfal de Lalique na Exposição Universal de Paris, em 1900. A introdução de materiais inesperados na criação joalheira, como o marfim, o esmalte, o chifre ou o vidro, em detrimento da utilização de pedras preciosas, ilustra a importância do mestre na transformação da joalharia, que conheceu, através da originalidade das suas criações, uma verdadeira revolução.

Também na ourivesaria Lalique associou materiais como o vidro e a prata na concepção de um mesmo objecto. A jarra “Cardos”, igualmente presente na exposição de 1900, e o açucareiro “Serpentes”, em vidro soprado e patinado, numa montagem vazada em prata, envolta por serpentes entrelaçadas, tema recorrente na obra de Lalique, são exemplos representativos dessa integração de materiais. O pendente Rosto Feminino, de onde se suspende uma pérola barroca, de influência renascentista, encontra-se envolto por quatro papoilas abertas, flor emblemática no período Arte Nova, cuja simbologia se encontra associada ao mundo onírico. No diadema “Orquídeas”, uma sublime síntese da natureza, no qual se combinam chifre e marfim, Lalique recria literalmente uma natureza plasmada do real. Flor símbolo do movimento Arte Nova, a orquídea assume, no centro do diadema, total protagonismo. O diadema “Haste de Macieira”, um dos vinte e sete objetos em chifre conservados na Colecção realizado nesse material, demonstra igualmente a constante inspiração de Lalique num inesgotável e maravilhoso repertório botânico, que o acompanhou ao longo de toda a carreira.

A procura da transparência foi, desde muito cedo, uma preocupação primordial para Lalique. A gargantilha “Gatos”, em cristal de rocha, é disso exemplo. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1922, ficou operacional a sua fábrica vidreira, na localidade de Wingen-sur-Moder. A atividade do «industrial criador» – Lalique abandonara a criação joalheira em 1912 –, voltou-se definitivamente para a produção de objectos em série, em vidro moldado-prensado. Encomendas destinadas a projetos de arquitectura ou de decoração, identificados com uma clara ideia de modernidade, foram realizadas na fábrica da Alsácia. Em 1925, por ocasião da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, em Paris, Lalique conheceu uma vez mais o aplauso do público e da crítica com a apresentação das suas criações em vidro, a que chamou a “matéria maravilhosa”. Também no estilo Art Déco o artista encontrou resposta para as aspirações de uma nova era de optimismo e de consumo, e contribuiu, de forma decisiva, para a transformação da arte do vidro.

terça-feira, 15 de março de 2022

EXPOSIÇÃO: "Moldada na Escuridão"


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EXPOSIÇÃO: “Moldada na Escuridão”,
de Hugo Canoilas
Curadoria | Rita Fabiana
Museu Calouste Gulbenkian – Galeria de Exposições Temporárias
18 Fev > 30 Mai 2022

E se, como por magia, nos víssemos a passear nas profundezas do mar, envoltos numa densa e pesada escuridão, sentindo ao nosso redor uma miríade de animais marinhos dotados de luz própria? E pudéssemos ver a forma como microorganismos associados a fontes hidrotermais constroem estranhos habitats que partilham com invertebrados anelídeos de dimensões gigantescas? Ou pisássemos um solo formado por extensos tapetes microbianos nos quais revolteiam peixes albinos e cegos e muitos caranguejos pequenos e brancos? Hugo Canoilas oferece-nos essa possibilidade sem que para tal seja necessário descer a dois mil e quinhentos metros de profundidade a bordo do submergível Alvin. Basta que, munidos de curiosidade q.b. e uma boa dose de imaginação, espreitemos a exposição “Moldada na Escuridão” e nos entreguemos a um mundo de fascínio e beleza ímpares.

Hugo Canoilas foi convidado pelo Centro de Arte Moderna para realizar um projeto para a galeria de exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian. A exposição e instalação “Moldada na Escuridão” propõe uma experiência sensorial e imersiva, prosseguindo uma investigação iniciada pelo artista em 2020, em torno do Oceano e da vida nos fundos marinhos, um dos territórios da Terra mais omnipresente, ainda que o mais desconhecido. Canoilas utiliza este paradoxo para destacar os limites do conhecimento e a complexidade da relação da cultura ocidental com a natureza. O título da exposição alude ao texto “The Gray Beginnings”, estudo científico que narra de forma poética a formação do oceano, berço da vida na Terra, constituindo um dos capítulos da obra “The Sea Around Us” (1950), da autoria de Rachel Carson, escritora, bióloga marinha e figura seminal do movimento ambientalista de meados do século XX.

Com esta exposição, Hugo Canoilas convida o visitante a entregar-se a uma experiência total do corpo e do espaço. A escuridão da galeria dramatiza os fundos dos oceanos e o seu potencial de assombro e de desconhecido, subalternizando a visão e criando as condições para a emancipação dos outros sentidos. No chão da galeria, esculturas em vidro e resina acrílica e objetos têxteis constroem camadas que se acumulam e se sobrepõem, como estratos sedimentados. A galeria abriga um conjunto de ecossistemas, em que cada objeto-coisa-criatura age sobre o outro, perde a sua autonomia e identidade única. O artista cria uma circulação fluída entre os objetos, mas também entre os processos do fazer da pintura e da escultura, utilizando formas de fixação natural, sem molde, acolhendo o imprevisto e os efeitos intrínsecos às qualidades da matéria e dos materiais que incorpora nos seus trabalhos, mimetizando também aqui os processos criativos na natureza.

terça-feira, 8 de março de 2022

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "As Bravas"


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EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “As Bravas”, 
de Paulo Pimenta, a partir de um projecto PELE
Fundação Calouste Gulbenkian – Átrio da Biblioteca de Arte
28 Jan > 25 Abr 2022


“Ser Brava é a gente firmar-se naquilo que está a fazer, no que está a dizer e naquilo que quer ser.”

Criação colectiva concebida no âmbito do projeto ENXOVAL – Tempo e Espaço de Resistência, cruzando grupos comunitários do Porto e Amarante, “As Bravas” aposta na ideia do enxoval enquanto representação social da condição feminina que atravessa diferentes gerações. Bordado a muitas mãos, este é um “enxoval” diferente, nascido da vontade de homens e mulheres em questionar e transformar os estereótipos de género, abrindo espaços de liberdade e inspirando a vontade de mudança. Empenhadas em “limpar” a camada de invisibilidade que cobre as histórias de muitas mulheres, “As Bravas” dão-se a conhecer, trazendo com elas as histórias de heroínas da vida real, fortemente inspiradoras, que importa inscrever na nossa história e na nossa memória coletiva.

Entre as várias formas de dar visibilidade ao projecto e de espalhar a sua mensagem, encontramos esta belíssima exposição de fotografia, da autoria de Paulo Pimenta, e que por estes dias ocupa o espaço do Átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Uma grande parte das imagens tem como elemento comum um manto cosido de retalhos vivos dos caminhos que fazem parte do quotidiano e da sabedoria destas mulheres, um manto que pode ser apreciado numa das paredes do átrio e que, também ele, foi crescendo, florescendo e secando ao longo do processo de criação. Nessas mesmas paredes, singelos, livres, inspiradores, encontramos os testemunhos da mulher que sonhava casar e ir para a “rua do mel” e que hoje sonha aprender a ler, da outra que adora estar no centro de convívio com as amigas por viver sozinha num lugar da aldeia onde não vive mais ninguém ou da outra, ainda, que recorda o momento em que foi a pé buscar a arca que o pai mandou fazer para o seu enxoval, trazendo-a à cabeça o caminho todo.

Esta exposição é uma celebração das Bravas, figuras mitológicas vivas, arquétipos da natureza na sua forma mais bela e mais crua. Guardiãs de pés descalços e de lembranças de tempos duros, de histórias e cantigas do passado, mas com o futuro no olhar, as Bravas são a Iara Lino e a Alexandra Mendes, a Catarina Vaz e o Marco Gomes, a Lucelina Rosa e a Gina Nogueira, a Vitória Babo, o João Carvalho e muitos outros, homens e mulheres que sussurram memórias silenciadas e cantam para espantar a solidão dos dias, que lutam e resistem, que clamam: “Por isso escutem-nos com atenção / Somos muitas, valentes e plurais / Continuaremos juntas na luta / Até sermos livres e iguais!” Para ver até ao próximo dia 25 de Abril!

sábado, 26 de fevereiro de 2022

CONCERTO: Requiem de Fauré



CONCERTO: Requiem de Fauré
Coro e Orquestra Gulbenkian
Maestro | Hannu Lintu
Soprano | Cecília Rodrigues
Barítono | André Baleiro
Fundação Calouste Gulbenkian
25 Fev 2022 | sex | 19:00


Não é raro emocionar-me com uma obra do repertório clássico, mas nunca como ontem, no belíssimo espaço do Auditório 3 da Fundação Gulbenkian. Foi em estado de profunda comoção, doridamente, que escutei, primeiro, a versão de Lili Boulanger do “Pie Jesu” e, logo de seguida, essa verdadeira pedra angular da renovação da música litúrgica francesa, escrita por Gabriel Fauré entre 1887-1888, o seu “Requiem”. Razões para tal, foram essencialmente duas, a primeira das quais teve a ver com a enorme ligação que tenho a esta peça, escutada pela primeira vez num momento inesquecível, na medieval Abadia de Sisteron, com Michel Corboz à frente do Ensemble Vocal de Lausanne. A segunda, pelo terrível momento que vivemos, a invasão russa da vizinha Ucrânia a preencher os nossos dias de dor e incerteza, as emoções ao rubro perante a beleza de uma melodia divinamente inspirada e que faz dos céus um local de paz e repouso eterno para os justos.

Composto em 1918 por Marie-Juliette Olga Lili Boulanger, o “Pie Jesu” é uma pérola no seio do valioso conjunto de obras escritas pela compositora parisiense entre 1911 e 1918. De acordo com as “Mémoires” da pedagoga Nadia Boulanger, irmã da compositora, o “Pie Jesu” foi-lhe ditado por Lili, já acamada e a poucos dias da sua morte, aos 25 anos. Escrito para soprano, quarteto de cordas, harpa e órgão, baseia-se no andamento homónimo do “Requiem” de Fauré, parcialmente citado na melodia vocal. Linhas cromáticas ascendentes e descendentes, no órgão, marcam o tecido contrapontístico, bem como os lamentos pungentes confiados aos instrumentos de cordas, de grande complexidade harmónica. Pressente-se um abandono inelutável até aos compassos finais, aí repousando, tranquilamente, sobre a palavra Amen. Coube a Cecília Rodrigues a interpretação vocal desta pequenina peça de apenas cinco minutos e a sua prestação foi exemplar.

O “Requiem”, com toda a carga emocional que o envolve, foi um momento absolutamente único, o coro perfeitamente equilibrado, a orquestra dando o acompanhamento perfeito e os solistas, também eles, ao mais alto nível. Sobre a peça, recorde-se que Fauré idealizou um universo pautado por uma vocalidade de inspiração gregoriana, e uma textura orquestral intimista, com um panejamento harmónico de pendor impressionista, contrariando o estilo então em voga, o lirismo do bel canto italiano e a imponência estrutural e harmónica da tradição sinfónica alemã. Nele ressalta o andamento central, “Pie Jesu”, sereno e contemplativo, súplica para que os mortos possam receber o descanso eterno. Perante a crítica de que o seu Requiem era “uma canção fúnebre de embalar”, Fauré responderia: “Mas é assim que eu vejo a morte, uma entrega feliz, uma aspiração à felicidade celestial”. Arrebatador.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Manoel de Oliveira Fotógrafo"


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EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Manoel de Oliveira Fotógrafo” 
Curadoria | António Preto 
Átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
29 Out 2021 > 17 Jan 2022


As mais de cem fotografias que compõem a exposição “Manoel de Oliveira Fotógrafo”, e que podem ser vista no átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, são uma das grandes surpresas que o arquivo pessoal do realizador, integralmente depositado em Serralves, reservava. Produzidas entre finais de 1930 e meados dos anos 1950, estas imagens, guardadas durante várias décadas e na sua maioria inéditas, revelam uma faceta desconhecida de Oliveira e abrem novas perspectivas sobre a evolução da sua obra.

A passagem do cineasta pela imagem estática é uma etapa determinante do seu percurso. Em diálogo tanto com o pictorialismo como com o construtivismo e com as influências da Bauhaus, as suas fotografias estão a meio caminho entre a exploração dos valores clássicos da composição e o espírito modernista que animou toda a primeira fase da sua produção cinematográfica. Documentais ou encenadas, simples olhares sobre as gentes e a paisagem ou complexos exercícios de experimentação de luz e sombra sobre naturezas mortas, as imagens de Manoel de Oliveira têm a marca do génio do seu autor e são o reflexo da paixão pela fotografia enquanto arte de congelar o momento.

As imagens agora expostas, com curadoria de António Preto, adicionam, certamente, um novo capítulo à história da fotografia portuguesa dos anos 40. Mas elas constituem, também, um precioso instrumento para enquadrar o modo como Manoel de Oliveira passa a assegurar, durante um período de dez anos, a direcção de fotografia dos seus próprios filmes, bem como para contextualizar, numa perspectiva mais ampla, o rigor de composição que caracteriza o seu cinema. Olhando para estas imagens, não interessará muito saber onde começa o fotógrafo e onde acaba o cineasta. Importará, sim, questionar o modo como esta convivência entre dois dos de ver e de pensar se corporiza na obra de Manoel de Oliveira. Todas as fotografias expostas pertencem ao Acervo de Manoel de Oliveira, Casa do Cinema Manoel de Oliveira - Fundação de Serralves, Porto, e podem ser vistas até ao próximo dia 17 de Janeiro.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

EXPOSIÇÃO: "Hergé"



EXPOSIÇÃO: “Hergé”
Curadoria | Ana Vasconcelos, Nick Rodwell
Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian
01 Out 2021 > 10 Jan 2022


Na arte, como na vida, muitos são chamados mas poucos os escolhidos. Vem isto a propósito de Georges Prosper Remi (1907 – 1983), a quem a exposição “Hergé” é dedicada. “Hergé”, quero vincar, e não “Tintin”, por muito que criatura e criador sejam indissociáveis. Mas é importante que isto seja dito para que não se lavre no erro de ir à espera de ver uma coisa quando é de outra que se trata. Daí a necessidade de dirigir o foco para o criador, através do qual chegaremos à criatura, esse jovem repórter de espírito aventureiro e curioso que vem fazendo as delícias de gerações de leitores do mundo inteiro. “Hergé” é um convite à fruição da arte de um criador de génio, que tanto se sentiu à vontade na ilustração e na banda desenhada, como na publicidade, na imprensa, no desenho de moda ou nas artes plásticas. Cruzando pranchas originais, pinturas, fotografias, documentos de arquivo e outros tesouros do Museu Hergé, este é um fascinante percurso de descoberta de uma personalidade artística de referência do século XX.

Distribuída por nove núcleos, “Hergé” oferece uma visão poliédrica do trabalho do artista, mas também de toda a complexidade da sua biografia e dos tempos conturbados em que viveu. Para se compreender que o destino de Hergé mudou para sempre a 10 de janeiro de 1929 com o aparecimento de Tintin, importa recuar às origens, a um Georges Remi ainda criança que só sossegava em frente a uma folha de papel, com as mãos ocupadas a desenhar. Este gosto por contar histórias e ilustrá-las acompanhou-o toda a vida e foi-se desenvolvendo até assumir a forma de arte. Das influências reconhecidas pelo próprio autor aos primeiros desenhos significativos, dos “pecados da juventude” às pranchas conseguidas, da pré-publicação no Le Boy-Scout aos álbuns na Casterman, das técnicas de reprodução aproximativa à bela impressão sobre papel de qualidade superior, de tudo isto a exposição dá conta, permitindo perceber a evolução do processo criativo que levará o jovem Georges Rémi a tornar-se Hergé, pai da banda desenhada europeia.

Aos olhos do visitante não passará despercebida a faceta de colecionador e amante das várias correntes artísticas da sua época – da pop art ao abstrato, passando pelo minimalismo –, mas também o seu interesse por civilizações antigas e pelas chamadas artes primitivas. A integração destes seus gostos no desenho dá azo a um jogo feito de paixão e desafio. Por outro lado, há em Hergé uma extraordinária capacidade de representar a realidade por um lado, de uma forma inventiva, mas por outro, tão familiar que o leitor pode facilmente projetar-se neste universo criado a partir do zero. Ou talvez não. Se os elogios à amizade e aos grandes valores morais são uma constante do seu trabalho, nele encontramos também as visões estereotipadas e ofensivas das populações africanas ou o mais primário anticomunismo. Basta atentar nas primeiras aventuras de Tintin e seu cão Milou no país dos sovietes (álbum de 1930) ou no Congo (um ano mais tarde), para vermos o quão questionável pode ser o seu teor ideológico. Aqui temos um Hergé politicamente muito incorreto, leia-se mesmo reacionário e preconceituoso.

De sala em sala, de surpresa em surpresa, o visitante vai-se embrenhando num mundo de sonho e fantasia, ao mesmo tempo recorrendo às suas memórias de um tempo em que a chegada de mais um fascículo do Tintin era um dia de festa. Poder apreciar a parede com fascículos do Le Petit Vingtième, evocação do Hergé desenhador e ilustrador durante os anos 1930 é uma felicidade. Como o são os exemplos que dão conta da apropriação de uma série de métodos característicos do romance, mas também de alguns “truques” próprios da linguagem cinematográfica, assim como a verdadeira lição de grafismo que os documentos expostos proporcionam: a simplicidade da mensagem, o “lettering”, a distribuição, a repartição dos espaços, a passagem a cor; toda uma série de características e de particularidades que reencontramos nos princípios fundamentais próprios da linha clara. A exposição chega ao fim com “O nascimento de um mito”. Estranha-se a opção dos curadores por esta aparente inversão cronológica, um gesto de agitação e rebeldia que obriga o visitante a “revisitar” a história e, quiçá, a “refazê-la”. Mas não é isso que, em qualquer circunstância, devemos ousar?

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

CONCERTO: "El Amor Brujo"



CONCERTO: “El Amor Brujo”
Orquestra Gulbenkian
Direcção | Lina González-Granados
Concertos de Domingo
Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
14 Nov 2021 | dom | 12:00 


Os “Concertos de Domingo” da temporada 2021/2022 arrancaram ontem com um programa especialmente virado para a cultura cigana e espanhola. Dirigida pela maestrina colombiana Lina González-Granados, a Orquestra Gulbenkian apresentou-se ante um auditório praticamente lotado, interpretando com entusiasmo um conjunto de peças que tiveram na Suite de “El Amor Brujo” o seu ponto mais alto e que incluíram, ainda, obras dos compositores Camille Saint-Saëns e Maurice Ravel. Antes mesmo de darmos lugar à Orquestra, vale a pena começar pelo princípio e por essa “sinalização bacteriana” que uniu a Música e a Ciência numa apresentação brilhante de Karina Xavier, investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência. Foi um raro momento de conhecimento e aprendizagem, que tirou partido da linguagem musical para nos falar do quão frutíferas podem ser as relações entre bactérias e hospedeiros. E que nos deixou a reflectir sobre o futuro da própria Humanidade numa altura em que se percebe que há um conjunto de bactérias ameaçadas de extinção.

O “Prélude”, seguido do “Rigaudon”, duas das seis peças da suite “Le Tombeau de Couperin”, de Maurice Ravel, deu início ao concerto, visitando a atmosfera romântica de finais do século XIX e início do século XX (a obra foi estreada em 11 de Abril de 1919 e o seu sucesso foi tal que teve de ser bisada na íntegra). Persistindo na via romântica, “Introdução e Rondó Caprichoso, em Lá menor, op. 28”, de Camille Saint-Saëns, ocupou o espaço seguinte do programa. É sabido que Saint-Saëns tinha um enorme fascínio pela técnica encantatória do violinista Pablo de Sarasate, tendo esta peça sido criada com a sua exactidão e virtuosismo em mente. O solista em palco na Gulbenkian foi Cristian Grajner de Sá, apontado por muitos como uma das grandes estrelas futuras do violino e que acrescentou graça e encanto a uma composição absolutamente deliciosa. Grajner de Sá regressaria para a peça que encerrou o concerto, “Tzigane”, de Maurice Ravel, sendo obrigado a vir três vezes ao palco para receber as ovações do público, de tão tocante que foi a sua interpretação.

Falemos, enfim, da Suite de “El Amor Brujo”, a peça de maior fôlego do programa, que teve como solista a mezzo-soprano Maria Luísa de Freitas. Foi um momento recheado de fulgor e graça, que a todos seduziu. Partindo da lenda de um homem cigano que, depois de morto e tomado pelos ciúmes, boicota as tentativas da sua amada de encontrar um novo amor, Falla soube integrar a música tradicional espanhola na sua criação, contaminando as suas notas com os ritmos e os acordes exuberantes e de emoções extremas próprios do flamenco. Solista e Orquestra brilharam a grande altura, sabendo valorizar uma partitura de uma sonoridade deslumbrante, reforçada pelas melodias vindas do canto jondo. Uma peça que começou por ser o suporte de um bailado e se converteu num dos ícones da música clássica. O aplauso final é endereçado a Vera Dias, fagotista da Orquestra Gulbenkian que ontem assumiu o papel de comentadora e que tão bem nos soube deixar as “pistas” para a fruição plena de momentos intensos e envolventes de grande música.

[Foto: Leona Campbell | gulbenkian.pt/]

segunda-feira, 2 de março de 2020

CONCERTO: Solistas da Orquestra Gulbenkian | Ludwig van Beethoven



CONCERTO: Solistas da Orquestra Gulbenkian 
Ludwig van Beethoven 
Programa | “Trio para Cordas, em Ré maior, op. 9 n.º 2”, “Septeto para Sopros e Cordas, em Mi bemol maior, op. 20” 
Intérpretes | Maria Balbi (violino), Leonor Braga Santos (viola), Varoujan Bartikian (violoncelo), Manuel Rego (contrabaixo), Iva Barbosa (clarinete), Ricardo Ramos (fagote), Kenneth Best (trompa) 
Fundação Calouste Gulbenkian – Grande Auditório 
23 Fev 2020 | dom | 12:00


A verdadeira arte permanece imperecível, disse Ludwig van Beethoven (1770 – 1827), sendo esta uma citação que se aplica integralmente à sua música. Ele foi um humanista, um incompreendido na sua maneira de pensar, um visionário musical - e ainda é um dos compositores mais tocados no mundo de hoje. Mesmo perdendo progressivamente a audição quando ainda não tinha 30 anos, Beethoven não deixou de compor. Algumas das suas obras mais famosas foram escritas quando estava praticamente surdo, nomeadamente a 9.ª Sinfonia, concluída em 1824, cujo último movimento exalta os ideais europeus de liberdade, paz e solidariedade e é, desde 19 de Janeiro de 1972, o Hino da União Europeia. No ano em que se celebra o 250.º aniversário do nascimento do compositor, percebemos o quanto Beethoven tem de popularidade e de relevância através da multiplicidade de eventos que se desenrolam em todas as partes do mundo, não apenas no campo da música, mas também na dança, no teatro, na pintura e numa série de projectos artísticos tendentes a assinalar a efeméride. As salas portuguesas não são excepção e, uma vez mais, tivemos o privilégio de escutar a música de Beethoven, desta vez no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, numa interpretação do “Trio para Cordas, em Ré maior, op. 9 n.º 2” e do “Septeto para Sopros e Cordas, em Mi bemol maior, op. 20”, pelos Solistas da Orquestra Gulbenkian.

No início de 1798, quando Beethoven compôs os seus três Trios para Cordas, op. 9, a sua reputação em Viena não estava ainda consolidada. Embora se tivesse já destacado em vários dos principais salões aristocráticos da cidade como pianista virtuoso, tocando a sua própria música e improvisando, não era fácil ao jovem compositor fugir da sombra dos génios de Mozart e Haydn. Percebe-se, pois, que o Divertimento para Trio de Cordas K. 563, de Mozart, tivesse servido de modelo para os trios de Beethoven, embora isso não lhe retire qualquer valor. Em particular o segundo trio do Opus 9, cujo modelo em quatro andamentos se funda em Haydn, é uma peça brilhante, o violino de Maria Balbi a envolver o público. O “allegretto” de abertura é marcado por um impulso fortemente lírico na escrita para o violino, mas o acompanhamento incessante empresta ao movimento uma atmosfera inquieta. O segundo movimento, com o seu ritmo fluente, mergulha-nos numa dança misteriosa. Um “Menuetto” animado leva-nos até ao “Rondo” final, no qual Beethoven atribui o tema principal ao violoncelo.

É sabido que o “Septeto para Sopros e Cordas, em Mi bemol maior, op. 20”, de Beethoven – escrito para um ensemble de de violino, viola, violoncelo, contrabaixo, clarinete, fagote e trompa – foi uma das seus mais célebres e frequentemente executadas obras durante o século XIX. Composto em 1799 e dedicado à imperatriz Maria Teresa, a peça teve um sucesso imediato o que, paradoxalmente, irritou o compositor que viria a criticar a sua suposta falta de estilo, alegando não ser digna de atenção. E foi precisamente esta peça que os Solistas da Orquestra Gulbenkian interpretaram maravilhosamente, a mistura harmoniosa das cordas e dos sopros a prenderem a atenção do vasto auditório.

Tal como a peça anterior, também este Septeto deve muito aos modelos de Mozart, embora não se inspire em nenhuma peça em particular. Os dois primeiros movimentos trazem-nos sobretudo as melodias delicadas e serenas extraídas do violino e do clarinete. O trabalho a solo dos restantes instrumentos evidencia-se nos andamentos seguintes, sobretudo o clarinete e a trompa no trio que preenche o terceiro andamento – “Tempo di menuetto – o mais popular do Septeto à data da sua apresentação. O “Andante” que preenche o quarto andamento tem, na sua estrutura melódica, uma importância enorme na História da Música, visto representar uma peça clássica que serve de modelo à arte folclórica. As cinco variações do tema são apresentadas, cada uma, numa combinação diferente de instrumentos e um maior desenvolvimento do tema leva a uma conclusão repentina e inesperadamente abrupta. Segue-se um Scherzo “Allegro molto e vivace” com uma secção de trio apenas, dominada pelo violoncelo. O “Andante com moto alla marcia” final inclui uma série de incursões surpreendentes, duma sombria, quase fúnebre introdução a um “Presto” agitado, sério e divertido ao mesmo tempo.

[Foto: Solistas da Orquestra Gulbenkian © Gulbenkian Música - Jorge Carmona | gulbenkian.pt]

domingo, 22 de dezembro de 2019

CONCERTO: "Oratória de Natal", de Johann Sebastian Bach



CONCERTO: “Oratória de Natal” / “Weihnachtsoratorium”, BWV 248,
de Johann Sebastian Bach
Coro Gulbenkian
Orquestra Gulbenkian
Maestro | Michel Corboz
Soprano | Ana Quintans
Mezzo-Soprano | Marianne Beate Kielland
Tenor | Benedikt Kristjánsson
Barítono | Hugo Oliveira
Solistas | Marcelo Giannini (órgão), Priscille Reynaud (violino), Ana Filipa Lima (flauta), Pedro Ribeiro, Alice Caplow-Sparks (oboés e oboés de amor), Paulo Guerreiro, Kenneth Best (trompas), Varoujan Bartikian (violoncelo), Domingos Ribeiro (contrabaixo), Vera Dias (fagote)
Programa | Cantata II (“Para o Segundo Dia de Natal”), Cantata IV (“Para a Festa da Circuncisão de Cristo”), Cantata V (“Para o Primeiro Domingo do Ano Novo”)
Fundação Calouste Gulbenkian – Grande Auditório
14 Dez 2019 | sab | 19:00


No dia 17 de Dezembro de 1969, o maestro suíço Michel Corboz, na altura com 35 anos, estreava-se a dirigir o Coro Gulbenkian. O Grande Auditório da Fundação tinha sido inaugurado apenas dois meses antes e o programa era composto por obras de Johann Sebastian Bach e Claudio Monteverdi. Juntavam-se ao Coro a Orquestra de Câmara Gulbenkian e um quarteto de intérpretes femininas: as sopranos Wally Staempfli e Yvonne Perrin, a cravista Christiane Jaccottet e a violoncelista Maria de Macedo. No final, quando o maestro desceu a batuta e agradeceu os aplausos do público que enchia a sala, dificilmente imaginaria que, 50 anos depois, estaria novamente no púlpito do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian a dirigir o programa de Natal.

A obra escolhida para celebrar não apenas a quadra festiva mas também a longa ligação de Michel Corboz ao Coro Gulbenkian, a Oratória de Natal de Johann Sebastian Bach, representa uma das mais majestosas criações do mestre alemão. Composta em Leipzig nos finais de 1734, a peça está dividida em seis cantatas, cada uma celebrando uma das festas que pontuavam os treze Dias de Natal no calendário luterano: o Nascimento de Jesus (dia de Natal); a Anunciação aos Pastores (26 de dezembro); a Adoração dos Pastores (27 de dezembro); a Festa da Circuncisão (dia de Ano Novo); a Viagem dos Reis Magos (1.º domingo depois do Ano Novo) e a Festa da Epifania (Adoração dos Reis Magos, 6 de janeiro).

No programa apresentado ao final da tarde de sábado foram interpretadas as cantatas II, IV e V, com a soprano Ana Quintans, a meio-soprano Marianne Beate Kielland, o tenor Benedikt Kristjánsson e o barítono Hugo Oliveira em palco, para além do Coro e Orquestra Gulbenkian. À frente de todo o elenco esteve um maestro que não gosta da palavra dirigir – por lhe sugerir a ideia de imposição –, preferindo, antes, o termo “animar”, no sentido de dar alma a uma obra. Um maestro que diz também que o seu som preferido é a voz, que o seu compositor favorito é Bach (e os compositores que nele se inspiraram) e ainda que a virtude a que aspira é a simplicidade. Com todos estes ingredientes reunidos, o tempo do concerto foi um tempo de fruição: da música, da harmonia das vozes, do conforto de uma sala magnífica e do espectáculo dos jardins da Fundação sob uma fina camada de chuva. Um vislumbre do Céu em vésperas de Natal.

[Foto: Márcia Lessa | facebook.com/gulbenkianmusica/]