CONCERTO: 6.ª de Mahler
Orquestra Gulbenkian
Direcção | Lorenzo Viotti
Fundação Calouste Gulbenkian - Grande Auditório
18 Fev 2023 | sab | 19:00
A 6ª Sinfonia em Lá menor de Gustav Mahler é uma peça mítica. Nalgum momento da sua composição, talvez Mahler lhe tenha atribuído o título de “Trágica”. Talvez algumas passagens sejam consagradas à sua esposa Alma, retratando-a. Talvez possa ser “a primeira obra niilista da história da música”, como a descreveu o maestro Wilhelm Furtwängler. Talvez. Do que não restam dúvidas é que se trata de uma peça expressivamente sombria, que se fecha na desesperança e na noite escura da alma. Mais significativamente, é uma obra com um cunho profeticamente autobiográfico, sobretudo no seu último andamento, aquele pesadelo emocional, hipnótico e alucinante, com a duração de meia hora. Revendo a peça em 1906, Mahler decidiu eliminar o terceiro dos golpes do movimento – literalmente, uma marretada numa caixa gigantesca com um maço de madeira –, tentando assim escapar a um terceiro lance fatal do destino. A revisão revelou-se inútil: em 1907, o compositor teve que enfrentar a morte da filha, lidar com o fim do seu relacionamento com a Ópera Estatal de Viena e aceitar o diagnóstico de um problema cardíaco que viria a vitimá-lo quatro anos mais tarde.
Um “Allegro energico, ma non troppo” abre a Sinfonia com o passo sombrio de uma marcha, contrastando com uma segunda ideia principal magnificamente lírica (o suposto “tema de Alma”). Todo o andamento é tomado pela repetição, tal como nas sinfonias clássicas, e a trajetória desse movimento termina num tom triunfal que o resto da obra se encarregará de não confirmar, tornando-a caprichosamente devastadora. A peça, de resto, é um desafio constante às convenções, mesmo quando as cumpre. Mahler carrega a estrutura da peça de um tom abstracto, fazendo a música oscilar entre o abismo emocional e o topo da montanha. Algumas passagens mostram-se, inclusivamente, exteriores à moldura da peça, o que é literalmente verdade nos chocalhos que ressoam como a representação de uma esperança indescritível de estabilidade emocional que a música almejará sem conseguir alcançá-la. O “scherzo” apresenta algo de grotesco, ao mesmo tempo infantil e antiquado, mas é no “Finale: alegro moderato” que a alquimia das micro e macroestruturas musicais é mais vívida, e em que todos os principais momentos da arquitectura desse andamento tremendo põem o espectador à prova.
Não podemos avaliar a “Trágica” de forma convencional. Interpretá-la de um ponto de vista autobiográfico e ver nos seus compassos finais o desaparecimento de toda e qualquer esperança, é limitar o seu poder e alcance. Estaremos a dizer que o que ali está representado é alguém distante de nós, o próprio Mahler. Em vez disso, importa que a peça desça à plateia, implicando o espectador naquilo que encerra de dramático. Descobrimos, então, que a Sinfonia tem um poder catártico e de afirmação da vida ao confrontar-nos com os limites da existência, que não apenas musical e sinfónica. No seu desenvolvimento, cria extremos sonoros que ainda são, mais de um século depois, absolutamente únicos. Eles são evidentes sobretudo nas paisagens sonoras oníricas da abertura do “Finale”, crescentes de intensidade, a roda da música e a roda da vida fundidas. Então vemos que a música se dissolve lenta e progressivamente, se desvanece num silêncio sepulcral e de grande intensidade dramática, abrindo espaço à interioridade reflexiva. Quedamo-nos, enfim, com essa que é a maior ironia de todas: que a mais externamente coerente das Sinfonias de Mahler, com os seus quatro andamentos instrumentais, se mostre a mais surreal, sonoramente imaginativa e emocionalmente perturbadora de todas.
[Foto: Fundação Calouste Gulbenkian | https://gulbenkian.pt/musica/agenda/6-a-de-mahler/]
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