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quarta-feira, 1 de março de 2023

LIVRO: "Chamem-me Cassandra"



LIVRO: “Chamem-me Cassandra”, 
de Marcial Gala
Título original | “Llámenme Cassandra” (2019)
Tradução | Margarida Amado Acosta
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2023


“Chegarei a Angola qual pássaro invisível para o capitão, serei apenas mais um entre os milhares de soldadinhos cubanos de cabelos mais ou menos crespos e caras que se esforçam por deixar de ser imberbes. As minhas asas serão a pesada mochila verde nas minhas costas, ouvi-lo-ei arengar, largar os seus ‘pátria ou morte’, sendo eu o elemento nove do primeiro pelotão da segunda companhia, um infante entre outros infantes, só depois do Carlos despejar a terra de Angola sobre mim é que o capitão me olhará com outros olhos, ordenará ao tenente Amado que a seguir ao castigo me conduza até ao posto de comando, dir-lho-á sem qualquer explicação, não o olhará nos olhos ao dar a ordem, limitar-se-á a levantar um pouco de pó com o pé esquerdo, calçado com uma bota romena quase nova, e dirá:
     – Manda-me o pequeno soldadinho louro, preciso de falar com ele.”

De Cuba, pela pena de Marcial Gala, chega-nos um livro que é uma verdadeira preciosidade. Num contexto histórico, social e político bem definido – a intervenção cubana em Angola de apoio ao MPLA, na sequência da eclosão da guerra civil, em finais de 1975 –, esta é a história de Raúl Iriarte, mulher no corpo de um homem, com poderes divinatórios que fazem de si Cassandra e que, tal como esta, entregue à condenação de conhecer o futuro sem que alguém nela acredite. É assim que a iremos descobrir, Cassandra, Nancy, Olivia Newton-John ou Marilyn Monroe, na caribenha Cienfuegos ou na terra vermelha e quente de Cunene, maquilhada, de saltos altos e com um vestido de algodão russo comprado no mercado paralelo ou de camuflado verde e castanho, no seguimento do legado internacionalista de dar em dobro tudo o que os outros povos deram a Cuba quando foi preciso.

“Chamem-me Cassandra” é um livro particularmente duro e difícil. A morte faz-se anunciar desde o início e sabemos que não será benigna a forma como se apresentará. Narrada em momentos diferentes da vida de Rauli, a história converge numa candura quase virginal que faz da protagonista uma espécie de joguete às mãos dos deuses e de mártir às mãos dos homens. Trágica figura feminina vergada aos caprichos de Apolo, sempre com um sorriso no rosto – porque não sabe fazer outra coisa senão sorrir perante aquilo que a apavora –, buscando o conforto nos livros que ama, a tudo dizendo que sim, conquista-nos pela pureza e inocência que dela emanam e que chocam frontalmente com a maldade e a violência que a rodeiam desde que se conhece. Marcial Gala, porém, vai mais longe e, se a mitologia grega é invocada para alicerçar as bases metafóricas de uma história marcada pelo preconceito de género, pela discriminação e pela xenofobia, também o ideal cristão cabe nesta história por inteiro, com esse lado sacrificial de quem sabe que veio ao mundo para morrer pelos pecados dos outros.

O contexto social e político do livro concorre para reforçar sentimentos de desconfiança e de medo, quer pela vigilância apertada na ilha sob o regime de Fidel Castro, quer no confronto com as linhas avançadas da FNLA, da UNITA e das forças sul-africanas, sempre na eminência de uma emboscada ou de um ataque de larga escala. Neste ambiente terrivelmente hostil, empatizarmos com a figura de Cassandra é sentirmos a maneira torpe como o nosso pai nos acaricia a cabeça porque não gosta de nós, é provarmos o aço frio de uma pistola que um sargento prepotente nos enfia na boca, é sabermos que aquele que nos veste de mulher, nos bate com força no ventre e diz que o faz porque gosta de nós é o mesmo que se prepara para nos matar. “Chamem-me Cassandra” tem essa capacidade extraordinária de fundir um quotidiano tão particular como o de Cuba em plena euforia revolucionária com as figuras do classicismo grego e fazer com que o todo seja consistente e profundamente actual, ao mesmo tempo que chama a atenção para um conjunto de problemas que persistem nas nossas sociedades. Com imensa admiração pelo que conta e, acima de tudo, pela forma inteligente como o faz, considero “Chamem-me Cassandra” um dos livros mais estimulantes e inspiradores dos últimos anos. Absolutamente essencial!

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