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terça-feira, 16 de novembro de 2021

EXPOSIÇÃO: "Hergé"



EXPOSIÇÃO: “Hergé”
Curadoria | Ana Vasconcelos, Nick Rodwell
Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian
01 Out 2021 > 10 Jan 2022


Na arte, como na vida, muitos são chamados mas poucos os escolhidos. Vem isto a propósito de Georges Prosper Remi (1907 – 1983), a quem a exposição “Hergé” é dedicada. “Hergé”, quero vincar, e não “Tintin”, por muito que criatura e criador sejam indissociáveis. Mas é importante que isto seja dito para que não se lavre no erro de ir à espera de ver uma coisa quando é de outra que se trata. Daí a necessidade de dirigir o foco para o criador, através do qual chegaremos à criatura, esse jovem repórter de espírito aventureiro e curioso que vem fazendo as delícias de gerações de leitores do mundo inteiro. “Hergé” é um convite à fruição da arte de um criador de génio, que tanto se sentiu à vontade na ilustração e na banda desenhada, como na publicidade, na imprensa, no desenho de moda ou nas artes plásticas. Cruzando pranchas originais, pinturas, fotografias, documentos de arquivo e outros tesouros do Museu Hergé, este é um fascinante percurso de descoberta de uma personalidade artística de referência do século XX.

Distribuída por nove núcleos, “Hergé” oferece uma visão poliédrica do trabalho do artista, mas também de toda a complexidade da sua biografia e dos tempos conturbados em que viveu. Para se compreender que o destino de Hergé mudou para sempre a 10 de janeiro de 1929 com o aparecimento de Tintin, importa recuar às origens, a um Georges Remi ainda criança que só sossegava em frente a uma folha de papel, com as mãos ocupadas a desenhar. Este gosto por contar histórias e ilustrá-las acompanhou-o toda a vida e foi-se desenvolvendo até assumir a forma de arte. Das influências reconhecidas pelo próprio autor aos primeiros desenhos significativos, dos “pecados da juventude” às pranchas conseguidas, da pré-publicação no Le Boy-Scout aos álbuns na Casterman, das técnicas de reprodução aproximativa à bela impressão sobre papel de qualidade superior, de tudo isto a exposição dá conta, permitindo perceber a evolução do processo criativo que levará o jovem Georges Rémi a tornar-se Hergé, pai da banda desenhada europeia.

Aos olhos do visitante não passará despercebida a faceta de colecionador e amante das várias correntes artísticas da sua época – da pop art ao abstrato, passando pelo minimalismo –, mas também o seu interesse por civilizações antigas e pelas chamadas artes primitivas. A integração destes seus gostos no desenho dá azo a um jogo feito de paixão e desafio. Por outro lado, há em Hergé uma extraordinária capacidade de representar a realidade por um lado, de uma forma inventiva, mas por outro, tão familiar que o leitor pode facilmente projetar-se neste universo criado a partir do zero. Ou talvez não. Se os elogios à amizade e aos grandes valores morais são uma constante do seu trabalho, nele encontramos também as visões estereotipadas e ofensivas das populações africanas ou o mais primário anticomunismo. Basta atentar nas primeiras aventuras de Tintin e seu cão Milou no país dos sovietes (álbum de 1930) ou no Congo (um ano mais tarde), para vermos o quão questionável pode ser o seu teor ideológico. Aqui temos um Hergé politicamente muito incorreto, leia-se mesmo reacionário e preconceituoso.

De sala em sala, de surpresa em surpresa, o visitante vai-se embrenhando num mundo de sonho e fantasia, ao mesmo tempo recorrendo às suas memórias de um tempo em que a chegada de mais um fascículo do Tintin era um dia de festa. Poder apreciar a parede com fascículos do Le Petit Vingtième, evocação do Hergé desenhador e ilustrador durante os anos 1930 é uma felicidade. Como o são os exemplos que dão conta da apropriação de uma série de métodos característicos do romance, mas também de alguns “truques” próprios da linguagem cinematográfica, assim como a verdadeira lição de grafismo que os documentos expostos proporcionam: a simplicidade da mensagem, o “lettering”, a distribuição, a repartição dos espaços, a passagem a cor; toda uma série de características e de particularidades que reencontramos nos princípios fundamentais próprios da linha clara. A exposição chega ao fim com “O nascimento de um mito”. Estranha-se a opção dos curadores por esta aparente inversão cronológica, um gesto de agitação e rebeldia que obriga o visitante a “revisitar” a história e, quiçá, a “refazê-la”. Mas não é isso que, em qualquer circunstância, devemos ousar?

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