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domingo, 20 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024 (III)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com Emmy Curl, Gobi Bear e Mirror People
Escola de Artes e Ofícios
19 Out 2024 | sex | 21:30


Chegou ao fim a quinta edição do OVAR EXPANDE. Por força das circunstâncias, uma edição que “ganhou” um dia, chamando à Escola de Artes e Ofícios, entre quarta-feira e sábado, um elevado número de admiradores, aficionados ou simples curiosos do fenómeno da nova música portuguesa. Da pop ao rock, passando pelo jazz e pela electrónica, pela soul ou pela música de raíz tradicional portuguesa, o certame deu a ver, escutar e sentir muito do (muito) bom que se faz no nosso país em matéria musical. Criatividade, vontade de inovar, ousadia, ambição e muita energia, foram predicados da música que Emmy Curl, Mazgani, Margarida Campelo, Bardino, Gobi Bear, Sara Cruz, Laura Rui e Mirror People tiveram para oferecer ao público, fazendo de cada concerto um feliz momento de cumplicidade e partilha. Mas o OVAR EXPANDE não se limitou aos oito concertos, chamando outros e novos actores na forte relação existente entre a música e o cinema. À faceta formativa, vertida numa masterclasse e numa oficina, juntou-se a conversa, outra das imagens de marca do certame, abordando temas como a estreita ligação entre a música e os videoclips, os meios de promoção, o papel da rádio e das redes sociais num contexto de difusão ou a essência do cinema que faz com que o autor e cantor seja, também ele, produtor, realizador e actor.

A abrir a última noite do OVAR EXPANDE, Emmy Curl chamou “Pastoral” ao palco, vestindo de ritmo, harmonia e bom gosto um conjunto de músicas enraizadas na nossa tradição. Em doze inspirados temas, dois dos quais inéditos e pensados para um novíssimo trabalho que está em marcha, a artista abraçou a magia da música, mostrando as sinergias que folclore, jazz e electrónica podem estabelecer entre si, misturando-as no caldeirão da experimentação onde tudo é permitido. Entre a salutar irreverência e o profundo respeito pela tradição, Emmy Curl revelou ao público a genuinidade de um ADN sonoro que ressoa “em cada guitarra, em cada bombo electrónico e em cada voz que se ergue para cantar a nossa história”. Se dúvidas houvessem, “Poetas à Solta” (dedicada ao poeta e pensador Agostinho da Silva), “Mudança”, “Macelada” ou “Botar Água na Vinha” lá estariam para as dissipar. O destaque, no entanto, vai para as notáveis interpretações de “Maio Maduro Maio” e “Senhora do Almortão”, com Emmy Curl a acrescentar valor a dois temas maiores do nosso cancioneiro. E houve, também, a naturalidade e espontaneidade em palco, a voz única, a sinceridade que emana de frases como “o sentido da vida é a arte de estarmos juntos”, “gostava que houvesse mais amor próprio pela música portuguesa” ou “vamos todos plantar florestas”. Bravíssimo!

“Chamo-me Diogo e hoje tocamos todos juntos”. Descendo à Sala Galeria, o público pode escutar Gobi Bear, nome artístico de Diogo Alves Pinto numa alusão directa a uma espécie criticamente ameaçada de extinção. Não parece ser o caso do artista, já que a intensidade da sua música e a sua forte presença em palco têm o condão de garantir um crescente leque de fiéis seguidores. A mostrar “3”, o seu mais recente trabalho, o músico apresentou-se sozinho em palco, “desconstruindo as músicas em múltiplas camadas de guitarra e omnichord”. Músicas imersivas, intimistas, como viagens idílicas e tranquilas ao mais fundo da nossa alma, como bem se percebe em “Deepest Plains” ou “Under Flashes of White”. Como manda a tradição, o OVAR EXPANDE encerrou com a chamada música de dança. Em palco, Mirror People, alter ego do músico produtor e DJ Rui Maia, fez-se acompanhar por Rö (nome artístico de Maria do Rosário), dando a ver um conjunto de temas do seu mais recente trabalho discográfico, “Heartbeats etc.”, aos quais acrescentou muitos outros, num todo imaginativo, com muito de improviso e mais ainda de ritmo e energia. O público “obedeceu” à ordem de “arrastar as cadeiras, que isto é concerto para estar de pé” e fez da Sala Expande a sua pista de dança. O final perfeito de um OVAR EXPANDE fortemente consolidado e cada vez melhor.

sábado, 19 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: OVAR EXPANDE 2024 (II)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com André Tentúgal, Bardino, Gil Godinho, Jaime Valente, Margarida Campelo, Rui Martins e Sara Cruz
Escola de Artes e Ofícios
18 Out 2024 | sex | 10:30, 18:30 e 21:30


Arrancou durante a manhã com André Tentúgal a orientar a masterclass “Música e Cinema”, prosseguiu ao final da tarde com uma conversa que, entre a música e o cinema, se expandiu também à rádio, e terminou com dose tripla de concertos, num serão que se prolongou muito para lá da meia-noite. Foi este o “alinhamento” do terceiro dia do OVAR EXPANDE, um dia repleto de momentos de alta intensidade e que voltou a dar ao público a possibilidade de perceber o quanto de ousadia, criatividade, energia e talento se abriga na nova música portuguesa. Da conversa que Gil Godinho manteve com Rui Martins (do colectivo Bardino), Sara Cruz e Margarida Campelo, artistas que viriam a subir ao palco horas mais tarde, e ainda com o radialista Jaime Valente, reflectiu-se sobre a forte ligação entre a imagem e a música em termos de promoção artística, vincando-se a importância da rádio na divulgação dos artistas e dos seus trabalhos. O cantor como actor, a má música que nenhum vídeo salva ou a certeza de que o vídeo, ao invés de matar a rádio, criou ambientes propícios a que esta se reinventasse e revitalizasse, foram tópicos de uma conversa viva e enriquecedora a abrir espaço a uma noite de muita e boa música.

Naquele que foi o primeiro grande momento da noite, o colectivo portuense Bardino subiu ao palco para apresentar “Memória da Pedra Mãe”, um trabalho editado no final de Fevereiro com o carimbo da Jazzego. Com Rui Martins nos teclados, Diogo Silva no baixo, Rafael Gomes no saxofone e Nuno Fulgêncio na bateria, a banda ensaiou uma viagem por lugares extremos, onde o etéreo e o telúrico se fundem em energia e beleza. A “Pedra Mãe” - uma alegoria inspirada nas pedras parideiras, fenómeno geológico raro que acontece aqui bem perto, na Serra da Freita - funciona como um catalisador de memórias, dispostas em temas com os sugestivos nomes de “Giesta” ou “Tília”, “Fumo” ou “O Semeador”. Nas múltiplas camadas de que se reveste a música dos Bardino, percebem-se as cores da mais elementar matéria, cuja pureza e a dureza confluem num mundo subterrâneo, insólito e ameaçador. Entre o rock e a electrónica, a música dos Bardino abre igualmente espaço ao Jazz, numa salutar linha de experimentação que desafia convenções e desvenda novos horizontes. Um belíssimo concerto, a predispor para uma noite com muito ainda para oferecer.

As convulsões do magma e a violência dos fenómenos eruptivos, tão presentes na música dos Bardino, estendem a viagem até S. Miguel. Açoreana de gema, Sara Cruz abre-nos as portas da sua ilha com “Fourteen Forty-Five”, um trabalho com a chancela da Locomotiva Azul acabadinho de publicar. Também aqui, é intensa a ligação entre o etéreo e o telúrico, embora estejamos muito longe dos mistérios crus e densos que se abrigam nas profundezas, como sugerido no momento anterior. Inspirada, feita de leveza e fantasia, a música de Sara Cruz convoca as paisagens verdes e azuis das ilhas, o ondulado das suas colinas, os caminhos bordejados de hortênsias, os pastos da erva mais verde que se estendem a perder de vista. É nos caminhos da pop que os temas se expandem, tirando o melhor partido da bonita voz da cantora e do ambiente acústico que a sua viola proporciona, muito bem acompanhada em palco pela viola de Miguel Garcia e pela bateria de Francisco Santos. Rompendo com a hegemonia da música inglesa nos temas que compõem o disco, Sara Cruz trouxe-nos “Na Ponta da Madrugada”, um tema que integrou o projecto dos picarotos “Mar e Ilha” e que é cantado na língua de Camões. Um momento que acrescentou beleza a um concerto intimista e de uma grande sinceridade.

No sobe e desce entre a Sala Galeria e a Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios, a ideia da viagem prolongou-se com Margarida Campelo a assumir o último momento da noite. Acompanhada por Raquel Pimpão (teclas), João Correia (bateria) e António Quintino (baixo eléctrico), a cantora apresentou “Supermarket Joy”, o seu primeiro trabalho a solo, publicado em Maio de 2023 pela Discos Submarinos. Com “Maegaki”, as primeiras notas elevam-nos no ar, as sucessivas vagas sonoras e os loops vocais a convocarem o espaço sideral. A batida forte não se faz esperar e, com ela, uma descida abrupta à superfície das águas com “Physali Fit” em dose dupla, um tema que conjuga na perfeição as vertentes instrumental e coral. Está dado o mote para um concerto marcado por um registo “entre terra e céu”, com momentos verdadeiramente impactantes como aquele rap de Raquel Pimpão em “Mapa Astral” ou o solo intenso de Margarida Campelo em “Aura de Panda”. “Tropicais”, “Gemma”, “Deusa”, Love Will Never Be Enough ou “Mexe-te Mais um Pouco”, levaram-nos por caminhos da pop, mas também do R&B, da Bossa Nova, da Soul e do Jazz, numa paleta de géneros eclética e de um bom gosto inexcedível. O final perfeito de um dia feliz no OVAR EXPANDE.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

CONCERTOS & CONVERSAS: OVAR EXPANDE 2024 (I)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2024
Com Bernardo Freire, Joaquim Margarido, Laura Rui, Mazgani, Miguel Araújo, Tiago Alves
Escola de Artes e Ofícios
16 e 17 Out 2024 | qua e qui | 18:30, 21:30 e 22:30


Nascido da vontade de expandir horizontes à nova música portuguesa e de, num enquadramento inovador, trazê-la para mais perto do público, o OVAR EXPANDE está de regresso para a sua quinta edição. Concertos, conversas, oficinas e masterclasses, são, ao longo de quatro dias, vectores de entretenimento, criatividade, inovação e conhecimento, evocando “a arte e o ofício” de fazer e conhecer a música. Numa edição que explora a ligação da música e da palavra à sua dimensão cinematográfica, o certame arrancou na noite da passada quarta-feira com uma conversa moderada por Tiago Alves e que teve como convidado o músico Miguel Araújo. O visionamento de um punhado de videoclips abriu espaço a um saboroso momento de partilha de ideias, opiniões e algumas curiosidades, dando a ver uma faceta menos conhecida de Miguel Araújo, a de (excelente) conversador, disfarçando muito bem a sua timidez (assumida) e aceitando abrir o jogo sobre o seu processo criativo, a ligação entre a música e as imagens dos seus videoclips, as grandes referências musicais (e não só), o desconforto de estar em palco sem uma guitarra ou os medos de quem não sabe dançar.

O segundo dia do OVAR EXPANDE voltou a explorar o cruzamento do cinema com a música, através de uma conversa que reuniu o cantor Mazgani e o crítico de cinema Bernardo Freire. Centrado no filme documental de Rui Pedro Tendinha, “Estrada para Mazgani”, o momento teve moderação de Joaquim Margarido e permitiu desvendar a “estrada” a que o título se refere. De uma humildade tocante, o músico partilhou as histórias que se abrigam em duas décadas de carreira, o olhar apontado em frente. Bernardo Freire ajudou a descodificar o lado “road movie” que o filme de Tendinha ostenta e Mazgani, entre o compromisso com os seus fãs e a aventura de cantar em português, concluiu que “queria era ser Wagner, ser Beethoven, escrever a Sagração da Primavera”. Ainda que sem o estatuto de génio, é um artista carismático, talentoso, com uma forte presença em palco, contagiante de energia e intencionalidade. Foi isso que o público presente na bonita Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios pode constatar, no concerto que fechou a noite, no qual o artista revisitou temas como “River of Stone” e “Glowing Horses” ou, recuando um pouco mais, “The Poet’s Death” ou “The Traveler”. A grande novidade esteve, porém, em “A Avenida”, que abriu o concerto, mas também em “Frente Leste” ou “Romanceiro”, a “Chama” ou o fabuloso “Cidade de Cinema”, dando a escutar algumas das pérolas do seu último trabalho discográfico.

Entre a conversa e o momento musical que fechou a noite em verdadeira apoteose, o OVAR EXPANDE abriu a série de oito concertos, como é da tradição, com a chamada “prata da casa”. A dar os primeiros passos, mas já com um conjunto de prestações que abrem em promessa e certeza uma carreira que se adivinha recheada de momentos felizes, Laura Rui chamou à Sala Galeria da Escola de Artes e Ofícios um respeitoso número de aficionados, que a acompanharam entusiasticamente ao longo de uma hora de belíssima música. Com Sofia Queirós no contrabaixo e Sónia Sobral no acordeão, Laura Rui fez do alinhamento deste seu concerto uma sequência de poemas cantados, dos quais emergiu a vontade e a força do ser mulher. Em composições inspiradas, com uma voz feita sussurro breve ou intenso grito, a artista de Ovar levou-nos por caminhos de firmeza e coragem, ao encontro das mulheres de Maria Teresa Horta e de Sophia de Mello Breyner, de Fausto Bordalo Dias, José Afonso e António Gedeão. No breve espaço de uma hora, Laura Rui pôs em palco todo o seu querer, ao mesmo tempo mostrando que conhece bem a estrada que decidiu percorrer. O reconhecimento do público fez-se sentir em ovações prolongadas e sentidas. “Há mulheres que são maré em noites de tardes… e calma”.

domingo, 8 de setembro de 2024

TERTÚLIAS LITERÁRIAS: "Conversas às 5" | Diogo Leite Castro



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Diogo Leite Castro
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
05 Set 2024 | qui | 17:00


Com as baterias carregadas após a pausa de Verão, as tertúlias literárias “Conversas às 5” regressaram ao Centro de Reabilitação do Norte para mais um final de tarde à roda dos livros e da leitura. Promovida por esta instituição de saúde, a iniciativa contou com a forte adesão de um público maioritariamente composto por utentes do Centro, que receberam calorosamente Diogo Leite Castro, o convidado desta 16.ª sessão. Aberto à partilha do seu mundo literário com a plateia, o escritor foi acolhendo com entusiasmo as questões que moderador e público colocaram ao longo de uma hora de conversa, a todos respondendo com enorme solicitude, franqueza e generosidade. Uma hora de puro prazer envolto em livros, olhando processos criativos, as possibilidades que se abrem perante uma página em branco, as “private jokes” que se escondem num lugar ou numa personagem, a fixação na secção de necrologia do JN, Cesare Lombroso, Mário Cláudio e a livraria Flaneur, os conceitos de identidade, eternidade e transcendência, o pensamento e a opinião, o real e o aparente, a mentira e a verdade.

Num espaço luminoso com o mar em pano de fundo, as primeiras palavras de Diogo Leite Castro foram para uma plateia onde pontificavam as cadeiras de rodas e que, olhada nos olhos, foi classificada pelo escritor, no melhor dos sentidos, de “muito impressionante”. Voltando-se para os livros enquanto “objectos transcendentes”, como canta Caetano Veloso, o escritor confessou que a leitura foi amor à primeira vista, “um amor que nunca me desiludiu, nunca me abandonou e que eu nunca abandonei. Um amor muito próximo da perfeição, o que tem um carácter transcendente, [uma vez que] amores perfeitos só no campo da transcendência.” Este amor deve-o a duas professoras de português que não esquece, bem como à escola e às leituras obrigatórias, “porque me orientaram sempre nos melhores caminhos”. Hoje, pode dizer que a leitura e a escrita servem, sobretudo, para o salvar: “Eu trabalho para ganhar a vida, mas a literatura entrou em mim para me salvar de um quotidiano hostil, difícil, que me obriga a tomar decisões complicadas. A literatura faz com que possa afastar-me de tudo isso e, em grande medida, salva-me.” Dos primórdios de uma relação apaixonada e apaixonante fica, ainda, a ideia de que “a leitura nos afasta das decisões difíceis da vida, ao passo que a escrita nos obriga a tomar decisões.”

A conversa evoluiu, muito naturalmente, para o processo criativo, com Diogo Leite Castro a falar de “exercício tortuoso” ao referir-se à escrita. “Parece-me que estou constantemente a liquidar personagens, a liquidar possibilidades”, diz. E exemplifica: “Quando digo que aquela personagem se desloca de casa para a escola, estou a destruir todas as outras possibilidades, o ir ao cinema ou uma ida à praia, por exemplo. Preocupam-me as ausências, o que gostaria de ter dito e acabo por não dizer. Mas a vida é mesmo assim, provoca-nos constantemente e obriga-nos a tomar decisões. É terrível a dialéctica que se estabelece entre o que se diz e o que não se diz, o que se escreve e aquilo que não se escreve.” Abordando o método de escrita, o escritor revela: “Tenho o texto aberto muitas horas, mas não estou sempre a escrever. Escrevo um parágrafo e paro, vou fazer outras coisas, regresso ao parágrafo, revejo-o, acrescento mais uma linha. (…) O livro acaba por ser um organismo vivo, que cresce à medida que se vai fazendo.”

Olhar os três livros que estão, literalmente, em cima da mesa - o livro de contos “Histórias da Vida Moderna” (2015) e os romances “Descrição Abreviada da Eternidade” (2020) e “Biografia do Esquecimento” (2024) - é o passo seguinte. O primeiro livro de contos parte de um conjunto de episódios que aconteceram com pessoas próximas do escritor e que, de alguma forma, tinham um lado hilariante. “Partilhava os contos com essas pessoas e, realmente, elas reconheciam-se nas personagens e tiravam um enorme gozo do que escrevia”, lembra. No meio desta corrente de textos que foram circulando, alguém pegou nos contos e decidiu publicá-los. Assim nasceu um escritor. Já o mesmo não acontece com os romances. Enquanto os contos refletem as vivências e experiências pessoais sem grandes filtros, nos romances percebe-se um distanciamento do real, substituído por pensamentos que o autor foi formulando, ideias que foi construindo, leituras que foi fazendo. Nesta medida “os meus romances acabam por ser a expressão de uma vontade de fazer algo mais ambicioso”.

Olhando ambos os romances, o moderador começou por estabelecer uma relação entre eles, fazendo vincar que é muito mais o que os une que aquilo que os separa. O processo criativo vem novamente à baila: “Uma pessoa que é bem disposta no dia a dia, tem sempre dentro de si uma outra que o não é. É essa outra figura que eu gosto de explorar porque, literalmente, é muito mais rica que o seu contrário. Por isso, os meus romances são povoados por personagens angustiadas, presas dentro do seu próprio labirinto, que duvidam de si e dos outros. São personagens que oferecem muito mais possibilidades à criação de um universo literário do que uma personagem para a qual está sempre tudo bem.” Do primeiro romance diz que fala de “contaminação” e de “crises de identidade”, do que já não somos ou poderíamos ser quando somos contaminados pelos outros. Dessa tomada de consciência resulta a procura de uma purificação física, esperando que essa purificação possa ser também espiritual: “De que forma o fazemos? Tomamos um banho e vestimos uma túnica branca, como o Cravel do livro.”

“Biografia do Esquecimento” não foi esquecido. Diogo Leite Castro corrobora a opinião de um conjunto de personalidades que sustentam que “todas as biografias ou auto-biografias tendem para o romance, e que todos os romances tendem para a biografia ou auto-biografia.” Porém, no caso concreto deste seu último romance, a questão pode colocar-se com toda a legitimidade: “Escrever sobre a vida de alguém que, aparentemente, não fez nada, será que vale a pena? O que é que vou escrever sobre aquela pessoa se ela não tem nada para dizer?” O que levanta duas questões não menos legítimas: “Será que a nossa biografia se resume apenas àquilo que fazemos? Ou não será que nós somos também o que pensamos, sonhamos, desejamos e gostaríamos de ser? O escritor responde: “Se formos capazes de ter sonhos e ideias, independentemente de os concretizarmos ou não, isso deve ser considerado para efeitos da nossa existência, da nossa biografia. Escrever sobre isso é muito mais estimulante do que escrever coisas tão banais, como “formou-se nesta data”, “seguiu esta ou aquela carreira”, “foi presidente aqui ou ali”, que é o que encontramos na Wikipedia.

Entramos na parte final da tertúlia e é tempo de abrir as questões à plateia. As respostas não se fazem esperar, com dicas para escrever nas mais variadas circunstâncias, dilemas confessados sobre o alívio ao terminar um livro e a angústia sentida quando o “síndrome de privação” ataca o escritor ao fim de algum tempo (“já passaram dois meses e ainda não escrevi nada, o que é que se passa?”), o escrever à mão ou em computador, os “gatilhos” necessários para iniciar um romance. “Estou a tentar escrever qualquer coisa e, neste momento, tenho três folhas que demoraram três meses a completar” é uma das últimas revelações, numa espécie de regresso ao princípio, às possibilidades que se abrem perante uma página em branco, à escrita como processo salvador, mas que dá muito trabalho. As últimas ideias vão para as pessoas que amamos e que, objectivamente ou de forma subtil, gostamos de pôr nos livros em jeito de homenagem, para os livreiros e as livrarias que têm a capacidade de se reinventarem e para uma Zundapp de estimação, “que falha sempre”. Uma muito merecida salva de palmas encerrou a sessão, com a promessa de que as “Conversas às 5” regressarão em Novembro. Estejam atentos.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5” | Valdemar Cruz



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Valdemar Cruz
Participação especial | Álvaro Domingues
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
22 Fev 2024 | qui | 17:00


Com a emoção de sempre e um renovado vigor, as “Conversas às 5” regressaram ao Centro de Reabilitação do Norte após quatro meses de interregno. Aberta a todos, a 13ª. sessão das tertúlias literárias contou com a participação de uma dezena de doentes internados na Instituição, a quem foram dirigidas as primeiras palavras de saudação e agradecimento pela sua presença e interesse. Palavras que se estenderam ao restante auditório e, em particular, ao convidado da sessão, Valdemar Cruz, jornalista que nas últimas três décadas fez parte da redação do semanário Expresso e que acaba de lançar o livro “Paisagens Construídas – O Passado e o Presente da Arquitetura Portuguesa em 16+1 Obras”. E foi, muito justamente, em torno da arquitectura que a conversa fluiu, enriquecida pela participação especial de Álvaro Domingues, geógrafo e Professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, e pela espontaneidade e dinâmica de um público “interessado e interessante”.

“Não sou arquitecto nem tenho nenhuma formação em arquitectura. O que eu sou é jornalista e aquilo que eu faço, e sempre fiz, é contar histórias”. Abrindo a conversa com esta ressalva, Valdemar Cruz pôs em evidência, ao longo de noventa minutos, a sua faceta do “jornalista-contador-de-histórias”, o olhar atento e um apurado sentido crítico a “condimentarem” as histórias que se propôs partilhar com o público. “Andar pela rua e reparar nas coisas, e nomeadamente reparar nos prédios, porque nos contam muitas histórias”, terá servido de ponto de partida para “elencar um conjunto de obras que são realmente importantes no contexto da Arquitectura portuguesa” e avançar com o projecto para este seu livro. Para tal, implicou no processo mais de cinquenta pessoas directa ou indirectamente ligados ao fascinante mundo da arquitectura, pedindo-lhes que indicassem as cinco obras “que mais as comoveram, que mais as influenciaram”. Daqui resultaram 133 nomeações, das quais extraiu aquelas que recolheram o maior número de “votos”, chegando assim a este corpo de dezasseis obras “representativas do que de melhor se fez na arquitetura portuguesa desde o início do século XX até a atualidade”.

Debruçando-se sobre o livro, Valdemar Cruz começou por confessar que o produto final “é bastante melhor do que aquilo que tinha imaginado”. Falar de obras tão belas exigia “um livro bem construído em todos os seus aspectos” e a solução foi avançar para uma edição de autor, acrescentando à parte literária da obra uma forte componente visual através das mais de cem fotografias a cores de Inês d’Orey, o todo cuidadosamente harmonizado graças ao design gráfico com assinatura do André Cruz Studio. Folheando este seu “bebé”, como lhe chamou o moderador, Valdemar Cruz trouxe ao de cima as histórias por detrás de algumas das obras. Pegando numa “deixa” de Álvaro Domingues sobre arquitectura e poder, falou dos convidados na inauguração do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian e a estagnação que representam face a uma obra que prenuncia o 25 de Abril e é “sinónimo de futuro”. Também da intenção dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas em romper com o cânone e criar “uma arquitectura revolucionária num país em ditadura” com a construção da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa. Ou ainda o extraordinário trabalho de arquitectura de Archer de Carvalho, Nunes de Almeida e Rogério Ramos em torno da Barragem e Complexo de Picote, em Miranda do Douro.

Convidado especial desta sessão, Álvaro Domingues também começou por fazer a ressalva de que não é arquitecto, o que lhe permite estar “mais atento à linguagem dos arquitectos sobre a arquitectura”. Com o brilhantismo que lhe é reconhecido, falou da importância de “ler arquitectura” e quais as ferramentas que nos podem ajudar a “avaliar as muitas questões que a arquitectura trata”. Foi o tempo de trazer para a discussão um dos textos seminais da cultura da Antiguidade Clássica, o tratado “De architectura” de Vitrúvio, escrito no Século I a.C. . Explorando os conceitos vitruvianos – “firmitas”, “utilitas” e “venustas” –, Domingues desafiou os ouvintes a terem presente as ideias de firmeza, funcionalidade e beleza no momento de olharem uma obra (qualquer obra) de arquitectura e perceberem qual destas “ferramentas” valorizam acima das restantes. Da “caixa de sapatos” da Casa da Música à função de um espigueiro, da íntima relação entre estética e anestesia aos candeeiros da casa de Álvaro Siza, das arquitecturas “que pesam ou que voam” ao Tanque da Afurada, o público foi convidado a participar numa verdadeira aula de arquitectura, onde avultaram a clareza da exposição e o valor dos ensinamentos.

“As palavras são como as cerejas”, fez notar Valdemar Cruz, quando confrontado com o avançar da hora. A parte final da conversa ficou marcada por uma apresentação muito breve de três outros livros seus, um deles com ponto de partida em trinta e quatro depoimentos de personalidades da cultura portuguesa e intitulado “O Que a Vida me Ensinou” e os outros dois baseados em investigações jornalísticas, “Histórias Secretas do Atentado a Salazar” e “A Filha Rebelde”, este último em co-autoria com o jornalista João Pedro Castanheira. Para o final ficou também a descodificação do “+1” que surge no livro “Paisagens Construídas” e que Valdemar Cruz explica como sendo a possibilidade oferecida ao leitor de ter, também ele, o poder de escolher as suas obras de arquitectura favoritas e de acrescentar “mais uma” às dezasseis obras detalhadas no livro. As últimas palavras foram de Álvaro Domingues, considerando ser este “um livro obrigatório”, graças à sua linguagem simultaneamente acessível e rigorosa, contrastando com a “linguagem encriptada” dos livros feitos por arquitectos para arquitectos. É também um livro “que cria um genuíno interesse pela arquitectura, pelas diferentes formas de a ver, pelos seus autores. Aguça imenso o apetite e contribui em muito para a cultura arquitectónica”, concluiu.

domingo, 22 de outubro de 2023

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande '23 Dia 3



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’23
S. Pedro
Lika
Best Youth
Escola de Artes e Ofícios
21 Out 2023 | sab | 21:30


Ponto final na quarta edição do Ovar Expande! Em tempo de balanço, destaque para a aposta na qualidade e diversidade do evento, materializado em propostas de enorme interesse e que deram a ver o quanto a nova música portuguesa segue os melhores caminhos neste processo de inovação, crescimento e afirmação da sua identidade. Programando inteligentemente uma série de oito concertos - aos quais se deve acrescentar um vasto programa paralelo onde as conversas assumiram um papel relevante -, os organizadores conseguiram o milagre de adequar os espaços e os tempos às características de cada momento, criando sinergias e potenciando processos que permitiram acompanhar o certame de forma integrada e vivê-lo em modo de alta-voltagem. O entusiasmo e carinho do público foi uma constante ao longo dos três dias do Festival e o resultado final é extraordinariamente positivo, devendo deixar programadores, produtores e organizadores particularmente orgulhosos do seu trabalho e certos da excelência do Ovar Expande como um certame único e diferenciador.

No arranque do último dia, S. Pedro subiu ao palco e encheu de graça uma sala espande a abarrotar de público. Com os primeiros acordes veio a suspeita de uma música muito bem feita e melhor interpretada, que o tempo acabaria rapidamente por confirmar. Num alinhamento repartido por temas dos álbuns “O Fim” e “Mais Um”, o público foi levado por caminhos pessoais e íntimos ao sítio do primeiro beijo, a um miúdo medricas, a uma bebida ao balcão ou a uma espera em Campanhã. Em geografias de terra batida ou alcatrão, vielas estreitas e quartos de aluguer, a música do S. Pedro vive do pragmatismo e do golpe de cintura, do desenrascanso e do dia de hoje. Se é amor, é amor. Se é merda, é merda. A vida tem coisas muito boas e não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar o momento. “O mundo é onde eu calcar o chão”. Pedro Pode, Tó Barbot, Cláudio Tavares e Sérgio de Bastos trouxeram-nos um rock mais puro que duro, daquele que sabe bem e faz bem. Perdermo-nos nos porquês de não conhecermos tanto umas bandas e tão pouco outras seria o mote para uma bela conversa (talvez os organizadores queiram pegar na dica e pô-la em prática no próxima edição do Festival), mas apetece dizer que, se mais motivos não houvesse, S. Pedro justificaria por si só a existência de um festival como o Ovar Expande. “Podia ser sempre assim.”

Lika, cantora originária do Cazaquistão que vive há oito anos em Portugal e se fez notada pela sua participação no The Voice em 2021, assumiu o concerto do meio, nele reunindo um conjunto de temas que fazem parte do seu álbum “Back To Zero”. Foi bom sentir gratidão nas palavras que dirigiu ao público e a sua simpatia não terá deixado ninguém indiferente, mas em matéria de música ficou tudo um pouco aquém do esperado. Letras algo pueris, muita insegurança na voz e solos instrumentais demasiado longos (em loop, enquanto a cantora trocava de guitarra de forma incessante), levaram a que o interesse no concerto fosse decaindo, apesar do esforço louvável de compor e cantar em português. Para o fim ficam os Best Youth, banda portuense assente no duo Rocha Gonçalves e Catarina Salinas, a quem coube a responsabilidade de encerrar o Ovar Expande. Do momento ficou a ideia de uma música muito bem desenhada, ancorada nos ritmos voláteis do indie rock e do dream pop electrónico, uma música apelativa e particularmente dançável. O público não se fez rogada e a sala espande foi, pelo espaço de uma hora, pista de dança animada e sacudida. Um final alegre e contagiante, a resumir o tom deste ciclo de oito concertos em três noites ricas de palavras e de música.

sábado, 21 de outubro de 2023

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’23 Dia 2



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’23
Sean Riley
Evaya
Ana Lua Caiano
Escola de Artes e Ofícios
20 Out 2023 | sex | 21:30


Domando a “cena instrumental” que tomou conta do primeiro dia do Ovar Expande ’23, a voz, esse instrumento por excelência, foi marca distintiva comum aos três concertos deste dia intermédio. O público voltou a preencher por completo os espaços da Escola de Artes e Ofícios e a generosidade dos artistas e o valor das suas propostas foram evidências maiores de uma noite que teve de tudo para agradar a todos. Sean Riley (Afonso Rodrigues) assumiu o primeiro momento e, em palco com a sua guitarra acústica e o seu forte carisma, ofereceu-nos um conjunto de temas que constituíram, em si mesmos, uma viagem a dois lugares que lhe são particularmente queridos e que percorreu recentemente na companhia de Paulo “The Legendary Tigerman” Furtado, deles fazendo títulos de trabalhos discográficos: California e Andaluzia. Paisagens desérticas e horizontes a perder de vista casam na perfeição com a voz de Sean Riley, puxando para primeiro plano a música de tradição americana, em particular a folk e os blues. Temas como “L.A.”, “Every Star”, “One Day” ou “Good Kids” cativaram pela sua intencionalidade e despojamento, os vivos aplausos dispensados no final sendo prova de admiração e gratidão por parte do público.

Com uma carreira a dar os primeiros passos (produziu a primeira canção em 2018), a Evaya (Beatriz Bronze) coube a espinhosa missão de suceder a um “peso pesado” e segurar a fasquia num nível particularmente elevado. Desafio aceite, desafio ganho, a artista pôs no Palco Galeria o experimentalismo da sua música e a força das suas palavras, carregando de lirismo o segundo momento da noite. Com Polivalente (“a minha banda”) num plano recuado, Evaya surpreendeu pela sua expressividade e graça, mas sobretudo pela beleza da sua voz e riqueza dos seus poemas. Cantando quase exclusivamente em português, a artista trouxe com ela as certezas de quem tem os pés bem assentes na terra e sabe o que quer. Extraído do tema “Doce Linguagem”, “(…) escolho a Paz / em vez de querer estar certa”, é verso de canção e ideal de vida, arrastando para outra dimensão a intencionalidade do poema. Reveladoras de uma maturidade surpreendente, as mensagens vão-se fazendo anunciar e, devagarinho, acabam por entrar e sentar-se ao nosso lado. “Pertences às palavras / és livre do não-ser.”

A encerrar a noite, Ana Lua Caiano e a sua loop station deram mostras do que são capazes. Com recurso a uma panóplia de instrumentos populares de percussão - o bombo e o adufe, a pandeireta, o brinquinho ou a melódica - e a vocalizações muito simples, a artista cria o ambiente de fundo sobre o qual se derrama uma música de raíz tradicional portuguesa, com versos inspirados num quotidiano feito de mal (me) quereres e corpos em mudança, lembretes e pessoas indecisas, mãos nas mãos e dores de cabeça, malas feitas e adeus. Juntando a uma voz bastante versátil, a harmonia e o bom gosto das composições e uma forte presença em palco, Ana Lua Caiano teve para oferecer uma hora de excelente música, reservando ainda algum tempo para explicar ao público um conjunto de pormenores que estão na base do seu processo criativo. “Cheguei Tarde a Ontem” e “Se Dançar É Só Depois”, títulos dos seus primeiros trabalhos, estiveram na base de um alinhamento onde tiveram igualmente lugar alguns temas originais e que farão parte de um novo álbum a editar no próximo mês de Fevereiro. À saída, a satisfação do público era bem patente nos rostos como nas conversas. Não cessa de se expandir este Ovar Expande!

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande '23 Dia 1



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’23
Bonifácio
Tó Trips
Escola de Artes e Ofícios
19 Out 2023 | qui | 21:30


Está em marcha a quarta edição do Ovar Expande. Em palco ou em sala, entre concertos, conversas, oficinas de experimentação, ações de formação técnica e masterclasses, “a ‘arte e o oficio’ de pensar, fazer e trabalhar a música”, expande-se por universos criativos surpreendentes e inspiradores que se abrem ao que de melhor a nova música portuguesa tem para oferecer. O “pontapé de saída” foi dado ao final da tarde de ontem no Bar do CAO e colocou no centro das atenções o livro “Ínfimas Coisas”, Road & Roll Book editado em parceria pela Cutelo e pela Revolve e que viu a luz do dia no passado mês de Março. Juntando perto de uma centena de fotografias a um conjunto de textos minimalistas que abrem a porta a alguns dos momentos ínfimos e íntimos das duas últimas décadas de vida e carreira de Tó Trips, o livro mostra-se em música e poesia, singelos detalhes e ternas memórias, representando uma forma de “arrumar ideias”, abraçar aqueles que foram (e são) fundamentais na vida do autor e virar a página após o terrível período pandémico e o fim dos Dead Combo. Moderada por Joaquim Margarido, a conversa teve cobertura da Rádio AVFM e pode ser escutada na íntegra AQUI.

O Palco Galeria da Escola de Artes e Ofícios recebeu o concerto de abertura do Ovar Expande ’23 e, tal como no ano anterior, a responsabilidade do momento inaugural coube a um artista “da casa”. Com uma consola, uma panóplia de fios, cabos, entradas e luzes de todas as cores, Bonifácio trouxe-nos uma experiência musical que recorre a técnicas de composição de música generativa, propondo ao público um conjunto de viagens no espaço e no tempo ao sabor da imaginação e do estado de alma de cada um. Foi tempo de fechar os olhos e relaxar, deixar o pensamento fluir em voo livre e abraçar a música. Mergulhados numa labiríntica floresta de imagens que se vão formando na nossa cabeça, sentidos alerta na sugestão de um saxofone ou de uma guitarra, de uma bateria ou de um órgão, entramos nesta oficina de sons que é simultaneamente espaço físico e virtual, à vez palco e espaço sideral. A harmonia e o ritmo passeiam-se de mais dadas, em melodias que se sucedem umas após outras e nos arrastam para as mais diversas dimensões. A experiência acaba, mas as ondas prolongam-se, como réplicas que não cessam de se fazer sentir.

Subimos um piso e ocupamos o espaço da Sala Espande. A noite encerra com Tó Trips e a apresentação de “Popular Jaguar”, o seu mais recente trabalho. Com ele estarão António Quintino no contrabaixo e guitarra acústica e Helena Espvall no violoncelo, para uma hora de concerto que se revelará único, na sua música intimista como naquilo que transmite, profundamente intenso e inspirador. De momento só Tó Trips está em palco e “Península dos Índios” é o tema de abertura do concerto. O pé esquerdo bate com força no estrado. Marca o ritmo, marca a raiva. Há Lisboa na música, como há fado e há tango. Há canoas no Tejo, há miúdo da Bica e há homem do Saldanha. Os momentos sucedem-se, assim como as memórias que se derramam em acordes de saudade e melancolia. As cordas do violoncelo e do contrabaixo emprestam calor e envolvência às músicas e são elas que nos levam por paisagens inesperadas, de Nápoles a Marrakech, do Porto a Cartagena das Índias. Com elas vêm imagens, como no cinema: Paixões tórridas, perseguições a alta velocidade, “bombas” para a piscina às 3 da manhã, o futuro lido em borras de café. Imagens como ínfimas coisas, que nos lembram os nadas de que a vida é feita.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

CONVERSAS: José Tolentino de Mendonça



CONVERSAS: José Tolentino de Mendonça
Apresentação do livro “Metamorfose Necessária. Reler São Paulo”,
com José Rui Teixeira
Museu Nacional de Soares dos Reis
18.Dez.2022 | dom | 16:00


O cardeal José Tolentino de Mendonça esteve no Porto onde, na passada segunda feira, foi agraciado com o grande prémio da Fundação Ilídio Pinho pelo seu trabalho “na promoção e defesa dos valores universais” do que a Fundação diz ser a “portugalidade”. Actual responsável pelo Dicastério para a Cultura e Educação que tutela a rede escolar católica do mundo inteiro, Tolentino de Mendonça aproveitou o ensejo para se encontrar na véspera com os seus leitores, a propósito do lançamento do livro “Metamorfose Necessária. Reler São Paulo”. Promovida pela Quetzal Editores, a iniciativa teve lugar no auditório do Museu Nacional de Soares do Reis, contando com a presença de Rui Couceiro, escritor e editor, e do teólogo, investigador e editor José Rui Teixeira, a quem coube a tarefa de apresentar o livro. Apesar da forte concorrência mediática de uma final do Campeonato do Mundo de Futebol a decorrer à mesma hora, o espaço do auditório do Museu mostrou-se exíguo para as mais de duas centenas de pessoas que se deslocaram para escutar o poeta e ensaísta, com muita gente de pé a assistir à conversa e a permanecer para uma sessão de autógrafos que se prolongou por duas horas.

“Paulo foi o ser vivo por excelência. Quem não é defunto ao lado desse espectro incandescente? Não arrefeceu, nem arrefece. Ainda hoje, as frases das suas epístolas irradiam um deslumbramento interior, da natureza do calor. São filhas dele, carnais (…)”. Foi com a leitura de um excerto de “O Homem Universal”, um livro escrito em 1937 pelo filósofo e poeta Teixeira de Pascoaes, que José Rui Teixeira deu início à apresentação de “Metamorfose Necessária”. Com sensibilidade e afecto, passou em revista os onze capítulos que compõem o livro, começando por realçar o cuidado de Tolentino de Mendonça em contextualizar a igreja primitiva, um “contexto de diáspora”, marcado por “tensões entre as comunidades judaicas e as comunidades gentias”. Esta espécie de introdução ao pensamento e à obra de S. Paulo é feita “de um modo muito próximo e, simultaneamente, muito fundamentado”, espécie de “meio caminho entre um conjunto de leituras de natureza mais académica e a possibilidade de tornar próxima esta figura que guarda de nós uma distância aparente de quase dois mil anos.”

Referindo-se à construção do livro, José Rui Teixeira vincou que o trabalho literário por detrás da reflexão faz de “Metamorfose Necessária” um livro que resiste à “tentação academista”, antes é pensado “para todos os leitores.” O apresentador elogiou a preocupação de Tolentino de Mendonça em traçar uma “dificílima” cronologia de S. Paulo, referindo as suas viagens, as suas cartas, os seus contactos. De igual modo, realçou o cuidado em fazer com que o leitor possa entender “as funcionalidades do apostolado de Paulo”, bem como “o laboratório de criação das epístolas paulinas”. Percorrendo os capítulos da obra, José Rui Teixeira deteve-se no “importantíssimo” capítulo sétimo, que fala da “relação profunda entre as figuras de Paulo e Jesus”, desde esse “cair por terra” até ao chamamento e apostolado, orientado no sentido de “olhar o mundo, abrir perspectivas, criar diálogos e estabelecer pontes”. A “exegese belíssima” da carta a Filémon foi outro dos momentos do livro que o apresentador destacou, a par da possibilidade que Tolentino de Mendonça oferece ao mostrar o quanto, “implicitamente, o mundo de Paulo se assemelha ao nosso mundo”. Um livro que é, ao mesmo tempo, um desafio.

José Tolentino de Mendonça falou com entusiasmo deste seu livro, começando por sublinhar que “Paulo é um dos homens que mais acreditou no poder transformador da palavra.” É isso que sentimos ao ler as suas cartas dois mil anos depois, percebendo o quanto “a palavra gera mundos, rasga horizontes, coloca-nos em busca”. “Todos somos paulinos”, observou, lembrando que “a nossa maneira de pensar e de ser, os nossos hábitos, a nossa relação com o transcendente ou com a cultura, é marcada pela herança que este homem deixou.” Vincando o prazer de poder falar no espaço do Museu Soares dos Reis, Tolentino de Mendonça admitiu que "se Paulo tivesse que vir falar ao Porto, possivelmente escolheria um lugar de cultura”. E deixa uma serie de questões: “Quem era S. Paulo? Porque é que é um dos homens mais inovadores da história? Porque é que interessa a todos, crentes e não crentes? Porque é que noções importantes na arquitectura das nossas sociedades democráticas e abertas são ainda o reflexo de coisas que ele, de uma forma muito pioneira, começou por pensar e por propor.”

O momento que vivemos é, na opinião de Tolentino de Mendonça, “um momento muito difícil mas muito desafiador”, no sentido em que “oferece ao Cristianismo a possibilidade nova de partir à procura de si, do seu pensamento, das suas raízes, das suas vozes fundamentais e partilhar isso em termos culturais”. Não é surpresa para o orador que dezenas de pessoas se reunam para ouvir falar de Paulo porque esse interesse e essa disponibilidade existe em muitos lugares fora do espaço da liturgia. José Tolentino de Mendonça confessou que, na escrita deste livro, preocupou-se em “situar a reflexão teológica dentro do horizonte cultural e oferecer a todos chaves de antropologia, de linguagem, de conceitos, que todos possam entender e entrar em diálogo”, tal como Paulo fez. “Entrarmos no mundo de Paulo é uma enorme surpresa porque ele é absolutamente surpreendente”, referiu, instando o público a desvendar aquilo que diz ser “a força do pensamento, a audácia e coragem de Paulo, a sua palavra que, dois mil anos depois, ainda nos abala profundamente.”

Mantendo a tónica no papel inovador de Paulo, Tolentino de Mendonça referiu: “Paulo é aquele que estabelece uma ruptura; o mundo antigo termina com Paulo e começa o Cristianismo, o mundo novo, a modernidade, a contemporaneidade.” Também a importância da sua acção na criação de um “modelo de convivência social aberta” foi referido, algo que o apóstolo admitia ser a única forma de se manter fiel à memória de Jesus Cristo. Recuando ao episódio da Estrada de Damasco, onde Paulo encontra Cristo, o escritor falou de uma “metamorfose” que, começando por ser espiritual e interior, acabou por se traduzir na “capacidade de reinventar as relações humanas” e na “promoção da categoria da universalidade, a ideia de que todos nascemos iguais e com os mesmos direitos”, afirmada dois mil anos antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É desta metamorfose, “do contributo que Paulo dá, do contributo que o Cristianismo dá”, que o livro fala amplamente, mantendo sempre a preocupação de vincar que “esta metamorfose está em curso; o nosso pensamento metamorfoseia-se no pensamento de Cristo”. E conclui: “A metamorfose do Cristianismo não acabou”.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande '22 Dia 3



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’22
Escola de Artes e Ofícios
20, 21 e 22 Out 2022


Com o rock puro e duro dos Twist Connection, chegou ao fim a terceira edição do Ovar Expande. Uma edição que, recorde-se, marcou um ponto de viragem na filosofia de um certame que começou por se assumir como a forma possível de resposta aos constrangimentos causados pela pandemia e surge, enfim, “desconfinado”, apostando em mais artistas e mais concertos, em mais salas e numa programação paralela capaz conferir ao todo o carácter de um verdadeiro festival. Aposta feita, aposta ganha, Ovar junta mais um produto de qualidade a uma oferta cultural que não cessa de crescer, revelando talentos e seduzindo o público. Entre a programação paralela, vale a pena começar por falar na iniciativa que deu o pontapé de saída deste último dia de programação do Ovar Expande e que juntou à conversa João Martins e Surma, sob a moderação deste que escreve estas linhas. Leve e descontraído, o momento permitiu conhecer um pouco melhor estes dois excelentes artistas, mostrando haver entre eles mais pontos de contacto do que seria de supor. A começar pela bateria - ponto de chegada para João Martins; ponto de partida para Surma -, com o rol de histórias e memórias que o instrumento convocou.

Banda de Coimbra formada por Carlos “Kaló” Mendes na bateria e voz, Samuel Silva na guitarra e Sérgio Cardoso no baixo, os Twist Connection puseram um ponto final no Ovar Expande. Ligados os instrumentos ao amplificador, a música espalhou-se a uma velocidade vertiginosa, fluindo com a mesma espontaneidade com que vi o público levantar-se das cadeiras e deixar-se ir numa onda feita de soul e blues, de algum punk e muito rock. Fiéis à sua própria identidade, os Twist Connection animaram a plateia com um conjunto de temas extraídos em grande parte de “Anywhere But Here”, o seu mais recente trabalho, fechando da melhor forma um festival que teve na variedade das propostas um dos seus maiores trunfos. A equilibrar as coisas, Madalena Palmeirim ofereceu-nos uma música doce e delicada, em grande medida feita de ritmos quentes de paragens atlânticas, com as mornas e o crioulo de Cabo Verde a impregnarem temas como “M ‘Câ Sabê”, “Lembrança di Nha Cretcheu” e “Teus Braços de Embalar”. No ouvido ficaram também “Right as Rain”, que dá o nome ao disco de estreia da artista, “Limbo” e essa extraordinária balada que é “Farewell”. Uma palavra para Manuel Dordio que, na guitarra, foi um acompanhante de luxo de Madalena Palmeirim, e, ainda, para “Morna Mansa”, o tema que fechou o concerto e que dará título ao segundo álbum da artista.

Em “horário nobre”, Surma trouxe-nos a sua música e a sua voz, lançada num idioma imaginário ao qual a artista gosta de chamar “surmês”. Com a saída de “Alla”, o seu segundo trabalho de estúdio, prometido para o início do próximo mês, seria de esperar o levantar da ponta do véu, por pouquinho que fosse. Tal não aconteceu e a artista focou-se exclusivamente no aclamado “Antwerpen”, o álbum de estreia, revisitando temas verdadeiramente icónicos como o elegante “Hemma”, o árido “Saag”, o intimista “Nyika”, o festivo “Drög” ou o tribal “Voyager”. Tal como tive oportunidade de dizer durante a tarde, na conversa acima referida, na música de Surma escuta-se a surda e lenta agonia de um glaciar, o mar a desfazer-se de encontro às rochas, o nevoeiro que envolve a floresta, o murmúrio gutural da primeira palavra alguma vez proferida pelo Homem, a chuva incessante que cai sobre um tapete de folhas mortas ou os sons que, vindos do espaço, nos dizem que a vida não é exclusiva deste planeta cada vez menos azul. Percorrendo paisagens sonoras fascinantes e arrebatadoras, o público mostrou-se permeável à viagem e ao sonho, rendendo à artista o seu aplauso e a sua gratidão. E agora que venha “Alla” - que quer dizer “todos”, em sueco -, para que todos possamos voltar a escutá-la e a aplaudi-la.

[Foto: Ovar/Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]

domingo, 23 de outubro de 2022

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande '22 Dia 2



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’22
Escola de Artes e Ofícios
20, 21 e 22 Out 2022


Rita Braga a abrir, os Fumo Ninja a fechar e, pelo meio, Valter Lobo, figura maior do cartaz deste ano do Ovar Expande, preencheram da melhor forma o segundo dia do certame. De forma calorosa, o público abraçou quatro horas de música para três concertos com tanto de diversidade como de complementaridade, o denominador comum centrado na generosidade e entrega dos artistas e na qualidade intrínseca da sua música. Começando pelo fim, os Fumo Ninja trouxeram-nos as sonoridades mais dançáveis da noite. A dar os primeiros passos, o projecto que junta Norberto Lobo no baixo, Leonor Arnaut na voz, Raquel Pimpão nas teclas e Ricardo Martins na bateria, mostrou o belo caminho que se abre à sua frente, consubstanciado, desde já, em “Olhos de Cetim”, o seu álbum de estreia. Espartanos nas letras, colocando todo o peso da sua música em sons inscritos claramente na pop, a banda tem na emoção de temas como “Django Hair” e “Chapada Da Deusa” ou na dolência e harmonia de “Segredo”, “Sim / Não” e, sobretudo, “Mangas de Camisa”, uma bandeira de esperança e entusiasmo que voa bem alto. E nós a vê-los voar, “numa nuvem de fumo ninja / a desaparecer // só tu e eu / em mangas de camisa”.

A abrir este segundo dia, Rita Braga trouxe ao Palco Galeria um verdadeiro divertimento em forma de música. Feiticeira de sons, a cantora, compositora e multi-instrumentista colocou, no mesmo saco, orgão e sintetizadores, percussões e um ukelele, cabarés em Paris e ambientes paranormais, ficção científica e a Branca de Neve, charleston e punk sinfónico, alter egos virtuais, sonhos e pesadelos, um prato de sardinhas portuguesas na companhia de um bom vinho verde e um café (“por cinco euros não há heróis”) e pozinhos de perlimpimpim. Fechou tudo muito bem fechado, agitou três vezes, três vezes bateu com a sua varinha mágica e… bum! Em francês ou japonês, em alemão, inglês ou na língua de Camões, ofereceu-nos três quartos de hora de música ousada e sedutora, provocante nas suas mensagens e assente numa voz de desenho animado, um bom-bom de coqueterie, toda anos 20, a piscar o olho ao jazz de Dorothy Fields, Irene Higginbotham ou Billie Holiday. Nesta mistura complexa, tornada simples graças à arte de fazer boa música, aliada a uma forte presença de mulher-menina, constrói Rita Braga o seu audaz e irreverente mundo musical. Um mundo que importa conhecer e onde sabe bem estar.

Sala cheia para escutar Valter Lobo no momento mais esperado da noite. Dito assim, pode soar a injustiça, já que Rita Braga e os Fumo Ninja “também são gente”. Mas quando a voz se cala e só as guitarras se fazem ouvir, o clamor cresce na sala e são muitas as gargantas que entoam “da terra para a lua / da lua para o mar / se o teu corpo é mar inteiro / o que eu quero é naufragar”. À força deste verdadeiro hit que é “Quem Me Dera”, juntou o artista uma série de temas de “Mediterrâneo”, o seu primeiro álbum de estúdio, entre os quais “Tenho Saudades”, que abriu o concerto, “Supernós”, que o rematou, ou o imensamente belo e pleno de significado “Guarda-me Esta Noite”. Entretanto, foi mesclando o alinhamento com temas do seu mais recente trabalho, “Primeira Parte de Um Assalto”, editado no passado mês de Abril, e do qual pudemos escutar o tema que dá título ao álbum e também “Fizeste-me Sonhar”, “Menina-Mulher”, “Uma Melodia” e “Para T.”, este último emocionante, a dizer-nos que “a vida é mais que um sopro / maior que o furacão / é o que tu quiseres”. Pelo meio, tivemos um arrepiante momento à capella com “Quero Que Me Acordes”, recuperado de “Lobos de Barro” (2018), o resultado feliz de uma parceria com André Barros. Lançado na base da sedução, o momento ultrapassou as margens de um mero concerto. Foi uma catarse para estados de alma à deriva, um guia de como sobreviver a um coração despedaçado. E foi tão bom!

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande '22 Dia 1



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ’22
Escola de Artes e Ofícios
20, 21 e 22 Out 2022


Com a ambição legítima de quem busca um lugar de referência no circuito de festivais da melhor música que se faz hoje entre nós, o Ovar Expande surge nesta terceira edição completamente renovado. Menos dias, mais concertos e a aposta de sempre em “projectos e artistas com identidade”, são os ingredientes que definem o certame neste momento determinante de viragem. Acrescente-se um novo palco e a experiência imersiva entre música e audiovisual que daí pode resultar, duas oficinas - uma de manipulação electrónica de instrumentos acústicos e outra de escrita de canções e produção musical - e ainda um momento dominado pela palavra e pelas conversas e fica-se com a noção clara do quanto de dinamismo e estimulo pode advir de uma “programação com bons predicados, num espaço único e diferenciado, onde os concertos são, por todo o contexto e ambiente, momentos que se pretendem memoráveis, de comunhão entre artistas, público e equipas de produção”.

O primeiro dos dois momentos da noite inaugural do Ovar Expande ’22 assinalou a estreia do Palco Galeria da Escola de Artes e Ofícios enquanto espaço de concertos. A aposta em João Martins, um artista “da casa”, revelou-se particularmente feliz, não apenas pela oportunidade de nos dar a conhecer “Bios”, o seu segundo trabalho de estúdio depois de “Hundred Milliseconds” (2020), mas sobretudo pela qualidade da sua música, combinando, em partes iguais, sobriedade e desordem, harmonia e agitação. Com Xavier Marques nos sintetizadores, João Martins fez de “Bios” um verdadeiro “activador do hardware” que em nós existe, preenchendo-nos de energia e vitalidade. Acrescentando a flauta e a melódica à sua bateria e a uma panóplia de gongos e outros instrumentos de percussão, Martins desafiou-nos a sentir a força dos elementos naquilo que têm de impetuosidade e violência, mas também de deslumbre e arrebatamento. Cavalos em tropel, ventos em fúria e pás de helicópteros alternaram com chuva a cair de mansinho, ovelhas que pastam no imenso verde e o absoluto silêncio das fossas abissais, convidando à viagem ao mais fundo de cada um de nós.

Já na Sala Expande, Minta & The Brook Trout foram uma força contrastante face à impulsividade e efusão do concerto anterior. Se quisermos usar a imagem da viagem, Francisca Cortesão e a sua banda levaram-nos num terno e suave voo em balão de ar quente sobre um mar de girassóis que se estende a perder de vista. A apresentar “Demolition Derby”, o seu quarto trabalho de estúdio, a banda estendeu o alinhamento do concerto a “Slow”, álbum de 2016, e a “Olympia”, que acaba de completar uma década de existência. Combinando temas mais antigos, como “Blood and Bones” ou “The Right Boulevards”, com outros do novo álbum, casos de “International Loss Adjusting”, “Neighbourhood” ou “Easy”, os “Mintas” mostraram aquilo de que são capazes, tratando cada uma das músicas de forma depurada e com enorme bom gosto. Não houve aleatoriedade nesta escolha, antes o cuidado de mostrar o trabalho de continuidade em torno de um projecto nascido em 2009 e que continua a dar frutos. De olhos fechados, escutamos aquelas vozes e acordes e é como se recuássemos décadas, ao tempo mágico de todas as descobertas, de Eliza Gilkyson ou Ani DiFranco a Johnny Cash ou aos Beatles. Percebemos, então, que há todo um mar escuro e inquieto por debaixo daquela capa de calma aparente. Que também aqui os quatro elementos se erguem, desordenados e aflitos. Minta & The Brook Trout e João Martins estão, afinal, muito mais próximos do que pensávamos.