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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE ARQUITECTURA: "Aalto" | Alvar Aalto



EXPOSIÇÃO DE ARQUITECTURA: “Aalto”,
de Alvar Aalto
Curadoria | António Choupina
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
18 Jul 2025 > 04 Jan 2026


Antecipando o cinquentenário da morte de Alvar Aalto, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresenta uma exposição monográfica que vai muito além da celebração de um nome consagrado. “Aalto” oferece uma leitura emocional e crítica da arquitectura moderna através de uma das suas vozes mais sensíveis. O texto curatorial de António Choupina, que guia o visitante, sublinha o carácter colectivo da criação - a tríade formada por Alvar e pelas suas duas esposas, Aino e Elissa Aalto - e o modo como o seu trabalho redefiniu a vertente humanista do modernismo. O percurso, estruturado cronologicamente e impregnado de simbolismo, revela uma obra que nasce do diálogo com a natureza e com o corpo humano. O gesto inaugural - atravessar a “medalha” de Aalto, reinterpretada como portal expositivo - traduz essa dimensão íntima e táctil, evocando a Casa Experimental de Muuratsalo, onde o arquitecto deixou a sua impressão digital. Esta abertura é mais do que um dispositivo cénico: é a metáfora perfeita para um criador que via na Arquitectura não um estilo, mas uma forma de vida.

Entre as décadas de 1920 e 1960, a narrativa expositiva acompanha a transformação da Finlândia em nação moderna, uma epopeia cultural em que a arquitectura se tornou instrumento de identidade. Aalto foi influenciado pelo funcionalismo e pelo diálogo com os modernistas europeus e o círculo da Bauhaus, mas a sua obra transcendeu rótulos. Onde outros viam uniformidade, ele via complexidade e emoção; onde o racionalismo impunha rigidez, ele introduziu organicidade. Obras como a Biblioteca de Viipuri, hoje na Rússia, a Villa Mairea, na Finlândia, a Baker House, nos Estados Unidos, a Maison Carré, em França, ou o Sanatório de Paimio, testemunham essa fusão entre técnica e poesia — edifícios que respiram, acolhem e curam. Este último, projectado no advento da antibioterapia, é exemplar na forma como o espaço se converte em cuidado: a luz, o ar, o som e até o silêncio constituem matéria de projecto. É por isso que o Sanatório figura entre os treze edifícios de Aalto nomeados a Património Mundial da UNESCO, e que o seu nome continua a definir a ideia de “arquitectura humanizada” que hoje tanto se reivindica.

A exposição culmina com Elissa Aalto, encerrando um ciclo criativo e biográfico, mas também lançando um olhar sobre o futuro da Arquitectura enquanto arte de cuidado e crença. A organização em torno de referências bíblicas - um gesto invulgar no contexto moderno - reforça a leitura espiritual de uma obra que dialoga com a fé luterana e, mais amplamente, com a fé no humano. Ao mesmo tempo, estabelecem-se pontes com a contemporaneidade, recordando a influência de Alvar Aalto em arquitectos como Álvaro Siza, laureado com a Medalha Alvar Aalto em 1988. A relação entre ambos - o mestre distante e o discípulo que transforma o legado em nova sensibilidade - confere à mostra uma densidade rara: não é apenas um arquivo, mas uma meditação sobre a continuidade da modernidade. “Aalto”, em Serralves, é menos uma retrospectiva e mais uma revelação: a de que, entre o concreto e a luz, ainda pulsa a possibilidade de uma arquitectura que respira como um ser vivo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "(d) A Espantosa Realidade das Coisas" | Adelino Marques



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “(d) A Espantosa Realidade das Coisas”,
de Adelino Marques
Textos | Maria Afonso
Casa dos Livros - Faculdade de Letras Universidade do Porto
17 Out > 16 Dez 2025


“ (…) Do janelão continuam a assomar as longínquas torres. Na penumbra sente uma remota oração descer do alto, uma melopeia ensurdecida a deslizar pela sobriedade do silêncio. Ninguém repara nos arbustos hábeis onde deus se oculta. Já não se ouvem as trindades. Também elas debandaram temerosas do triste toque dos sinos e dos lilases não há vestígios. Na incisão que cobre o muro alguém deporá uma flor. Ensaia a profunda respiração, mas já não chega ao alto. Senta-se por instantes junto a um túmulo. Aguarda que algum prodígio se erga e salve os ramos secos onde o vento atrai o sossego.”
Maria Afonso

Patente na Casa dos Livros, depois uma estadia no Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança, a nova e muito aguardada exposição de Adelino Marques, “(d) A Espantosa Realidade das Coisas”, aprofunda a sua investigação da paisagem como acto de visão e espaço de revelação. Nas imagens que são as suas, a paisagem nunca é mero cenário, antes construção sensível, dependente de um olhar atento que selecciona, interpreta e devolve ao mundo o que nele se esconde. A fotografia funciona aqui como mediação: não pretende duplicar o real, mas iluminá-lo, expondo tensões, texturas e pequenas vibrações que o olhar apressado não apreende. O artista move-se nesse território onde o instante se abre à possibilidade de eternidade e onde o erro convive com a tentativa. Ao deter e reorganizar o olhar, Adelino Marques devolve à paisagem a sua força inaugural, essa capacidade de nos tocar profundamente e de insinuar que nunca vemos tudo, que algo permanece sempre à espera de ser revelado. Assim, horizontes parecem inclinar-se, o movimento fixa-se e a matéria fragmenta-se, criando paradoxos visuais que suspendem o mundo e incitam o visitante a interrogar o visível.

A experiência da exposição intensifica-se no interior da Casa dos Livros, onde a arquitectura e o silêncio do espaço preparam o visitante para uma relação mais íntima com a fotografia. Envoltas numa névoa deliberada, as imagens convocam um gesto de recolhimento, aproximando-se daquele respeito antigo que se tinha diante das pequenas alminhas à beira dos caminhos. Nelas vemos sombras de ermidas, fragmentos de flores campestres, vitrais que filtram uma luz pálida, aves que se erguem num voo decidido. Esses elementos não apelam à memória como arquivo, mas como respiração, algo que persiste no corpo antes de ganhar nome. Distribuída por cinco núcleos, a exposição apresenta variações de um mesmo impulso: transformar a paisagem em pensamento visual, em matéria sensível que une técnica e intuição. As pequenas derivas de densidade, contraste ou velocidade de obturação revelam não só o que está diante da câmara, mas também o que vibra por detrás: a nascente escondida entre pedras, o silêncio líquido de uma ponte antiga, o labor discreto das mãos que moldam casas e destinos. É nesse território íntimo que as imagens sugerem a sobrevivência de um sagrado difuso, mais respirado do que declarado.

No conjunto, a exposição oferece ao visitante a sensação de participar num exercício que entende a fotografia como montagem mental: cada imagem dialoga com a anterior e prepara a seguinte, gerando um fluxo de percepções mais do que uma narrativa linear. A amplitude desta mostra permite reconhecer a coerência profunda do trabalho de Adelino Marques, fundada numa vontade persistente de pensar a paisagem como experiência de consciência. Há, em muitas das séries, um movimento interior que conduz o olhar para zonas de suspensão, momentos em que a própria realidade parece hesitar entre aparecer e ocultar-se. Essa oscilação, trabalhada com rigor técnico e sensibilidade poética, afirma o gesto do artista: devolver ao mundo a capacidade de surpreender, relembrando-nos que o visível não é uma superfície estável, mas matéria em permanente metamorfose. As imagens exigem um tempo lento, quase meditativo. Pedem para ser lidas como quem lê um poema, acolhendo aquilo que tremeluz no intervalo entre o que sabemos e o que ainda não sabíamos ver. No fim, permanece a sensação de que a fotografia, ao invés de fixar o real, o reimagina, desse movimento nascendo a sua força.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

CONCERTO: "Casa Guilhermina" | Ana Moura



CONCERTO: “Casa Guilhermina”,
de Ana Moura
Com | Rui Poço (guitarra portuguesa), André Moreira (baixo eléctrico), Ricardo Danin (bateria)
Cineteatro António Lamoso, Santa Maria da Feira
29 Nov 2025 | sab | 21:30


Dona de uma voz única e de um apurado sentido da elegância e sofisticação, Ana Moura editou em 2022 o seu sétimo álbum de estúdio, “Casa Guilhermina”, trabalho que persiste em afirmar-se como o capítulo mais livre e luminoso da sua trajetória artística. Através dele, a artista reafirmou a sua capacidade de abrir diálogos com o soul e o semba, a pop e os ritmos urbanos, num gesto de identidade e pertença que ignora convenções e transcende fronteiras. Foi isso que provou à saciedade na noite do passado sábado, perante o público do António Lamoso, trazendo para um plano central a figura da avó Guilhermina e construindo, a partir dela, um território afectivo onde memória, modernidade e experimentação se abraçam de forma intensa e livre. Essa pluralidade sonora - tão íntima quanto expansiva - ganhou forma perante uma sala lotada de um público que, desde os primeiros acordes, se deixou conduzir através de um universo em que tradição e futuro se abraçam, catalisados pela sedução e magia do fado. Entre cadências africanas, fados reinventados e momentos de pura comunhão emocional, Ana Moura confirmou o poder transformador do seu projecto, cuja força está não apenas no refinamento musical, mas na autenticidade de quem canta a sua própria história.

Assistir a “Casa Guilhermina” foi como aceitar um convite à viagem, fazendo nosso o sonho das andorinhas que reclamam asas para inaugurar um desejo antigo de partir. Entre golpes malévolos de faca e promessas por cumprir, Ana Moura ergue o fado impregnado de “loucura” como quem reclama os valores da própria ancestralidade e, debruçada em janela escancarada, deixa entrar a tempestade e o rio dos seus olhos. Depois, os jacarandás fazem renascer ausências que se mantêm vivas e o corpo entrega-se à roda quente das “primázias”, onde Angola curva a cintura e a avó Guilhermina, sentada na sua cadeirinha, acende a memória. Calunga aprofunda essa raiz, liturgia de lamento e resistência, antes de a leveza malandra de uma “corridinha” devolver o sorriso ao quotidiano. Há ternura adolescente em “classe” e um balanço suspenso em “arraial triste”, a marcha e o mar unidos num mesmo fôlego. Entre mães que coroam cores, medos de ficar “sozinha lá fora”, trigais que pedem ceifa e colheitas que ruborizam, o concerto desemboca na devoção de Nossa Senhora das Dores, a quem a fadista oferece o peito e recebe, em troca, a divina sorte do fado, essa casa mestiça que junta, inteira e incandescente, a batida angolana e o fandango do Ribatejo, o corridinho do Algarve e o fado de Lisboa.

Mais de um ano separou a compra dos bilhetes da noite em que, finalmente, Ana Moura trouxe a Santa Maria da Feira o pulsar de “Casa Guilhermina”, e ainda assim nada me preparou verdadeiramente para a forma como o disco, tantas vezes escutado ao longo de milhares de quilómetros de estrada, se reinventou diante de mim, como se cada canção respirasse pela primeira vez. Rui Poço, André Moreira e Ricardo Danin, os músicos que acompanharam Ana Moura em palco, elevaram a fasquia com interpretações de rigor brilhante, tecendo uma base luminosa à voz da fadista que assim pôde ergue-la em toda a sua intensidade. As coreografias dos quatro bailarinos, embora visualmente elegantes, pouco acrescentaram à narrativa emocional que vinha, sobretudo, da artista, capaz de transformar cada tema num território íntimo de memória e revelação. E quando “Desfado” entrou, vindo de outra morada mas perfeitamente enquadrado numa casa que é como se fosse sua, cumpriu-se a ponte entre o passado e o presente, lembrando-nos essa ironia tão humana da “certeza de não estar certa de nada”. No final, as palmas - incessantes, ritmadas, absolutamente cúmplices - selaram uma noite em que “Casa Guilhermina” se afirmou não apenas como álbum, mas como lugar vivo, erguido por Ana Moura em cada gesto, em cada sílaba, em cada respiração.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

CINEMA: "Dreams" | Dag Johan Haugerud



CINEMA: “Dreams” / “Drømmer”
Realização | Dag Johan Haugerud
Argumento | Dag Johan Haugerud
Fotografia | Cecilie Semec
Montagem | Jens Christian Fodstad
Interpretação | Ella Øverbye, Selome Emnetu, Ane Dahl Torp, Anne Marit Jacobsen, Andrine Sæther, Ingrid Giæver, Lars Jacob Holm, Nadia Bonnevie, Ella Bothner-By, Brynjar Åbel Bandlien, Valdemar Dørmænen Irgens, Silje Breivik, Anne-Karen Hytten, Eija Saraneva
Produção | Hege Hauff Hvattum, Yngve Sæther
Noruega | 2025 | Drama, Comédia, Romance | 110 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar – Castello Lopes
29 Nov 2025 | sab | 15:10


Uma semana após a estreia de “Sex”, chega às salas de cinema “Dreams”, novo capítulo da “trilogia de Oslo”, da autoria do realizador norueguês Dah Johan Haugerud. Se no filme anterior o cineasta investigava o desejo adulto e as tensões das relações maduras, aqui desce à zona mais frágil do sentimento humano: o primeiro amor. A protagonista é Johanne, uma adolescente que, ao apaixonar-se pela nova professora de francês, deixa que a imaginação enrede ficção e realidade, num diário onde o verbo antecede sempre a acção. Esse dispositivo literário, eco da formação de Haugerud como escritor, concede ao filme uma interioridade rara, permitindo que as dúvidas e devaneios da jovem habitem o ecrã com a mesma naturalidade com que atravessam a sua consciência. Longe do melodrama que outro realizador poderia explorar, o autor opta por um cinema que observa sem escândalo, que interroga em vez de sentenciar, e que percebe na escrita uma forma de ordenar o caos emocional. É nesse registo desarmante, guiado por diálogos de precisão cirúrgica, que “Dreams” afirma a singularidade de uma trilogia cujos títulos se desvanecem nos genéricos, mas permanecem como mapa emocional de uma cidade e das vidas que a percorrem.

A conquista do Urso de Ouro na Berlinale deste ano — um feito inédito para o cinema norueguês — premeia “Dreams” pela sua coragem e ousadia. Piscando o olho ao cinema de Éric Rohmer, Haugerud convoca o espectador para o lugar da fantasia na formação amorosa, dando a ver a permeabilidade entre gerações e a forma como cada mulher de uma mesma família responde ao que foi, ao que é e ao que poderia ter sido. A leitura do diário de Johanne por mãe e avó desencadeia um movimento de espelhos, onde as projecções da jovem iluminam as frustrações adormecidas e os sonhos perdidos das progenitoras. Haugerud mostra-se capaz de converter conceitos abstractos como o amor, o desejo ou a esperança, em estados sensoriais que moldam o quotidiano. Oslo emerge, assim, como palco emocional partilhado, onde cada recanto acolhe memórias e onde a intimidade é também um território urbano. Ainda que, tal como em “Sex”, possamos apontar ao filme algum excesso de conversação e uma certa contenção visual, é precisamente na palavra, volátil como uma nuvem, concreta como uma confissão, que o filme encontra a sua força, tornando sensível aquilo que tantas vezes permanece por dizer.

Se “Sex” se debruçava sobre a atracção, “Dreams” ocupa o interstício inaugural, a centelha que antecede a queda, o sobressalto que forma, tanto quanto fere. Haugerud filma esse limiar com maturidade invulgar, conferindo ao amor inaugural a dignidade que muitas narrativas lhe recusam. Em vez de inocência cristalizada, mostra um processo de descoberta em que a fantasia se torna mecanismo de sobrevivência, uma forma de os adolescentes traduzirem o mundo antes de nele se inscreverem plenamente. Longe do ornamento, a “voz off” actua como extensão do corpo e da hesitação, revelando um talento literário que a própria família tenta apropriar, numa cadeia de leituras, equívocos e projecções que toca simultaneamente o íntimo e o político. Há momentos em que a trama se afasta da delicadeza inicial para insinuar repercussões sociais, mas esse desvio não anula a autenticidade do percurso emocional. No fim, “Dreams” assume-se como atualização contemporânea dos velhos rituais de passagem, reconhecendo a repetição dos esquemas amorosos e a persistência do deslumbramento, mesmo quando as ilusões se desmoronam. Um belíssimo momento de cinema, terno e sensível, que vale a pena saborear.

domingo, 30 de novembro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida
Com | Ana Castro e Rosalina Macieira de Castro
Apresentação | Tiago Alves
120 Minutos | Maiores de 12 Anos
Escola de Artes e Ofícios
28 Nov 2025 | sex | 21:30


Em tempo de festa e de celebração da sua sessão n.º 100, o Shortcutz Ovar quis expandir o momento a um conjunto de novos filmes, reafirmando o compromisso que, desde 2017, sustenta a relação entre o certame e o seu público. Menos participada do que o habitual, esta edição especial construiu-se em torno do tema “Corpo & Memória”, fazendo dessa promessa um gesto concreto ao colocar em diálogo duas obras que investem na forma como o tempo se inscreve em nós e nos transforma. Em “Salto”, de Ana Castro, e “Kora”, de Cláudia Varejão, o corpo surge como arquivo vivo, território onde a memória se movimenta, resiste e se reinventa. Juntas, as duas curtas foram um convite ao espectador a pensar no que permanece e no que se perde, no que se recorda através do gesto ou da palavra, mas também no que a imagem cinematográfica guarda quando tudo o resto ameaça desaparecer. Uma escolha que sublinha a maturidade do projecto e a sua capacidade de continuar a interrogar o presente, e cujas reflexões partilhadas com um público particularmente interveniente fizeram do serão um dos mais gratificantes momentos de cinema na vida do Shortcutz Ovar.

“Salto”, da realizadora Ana Castro, abriu a sessão, levando os espectadores a acompanhar o processo de revisitação das memórias da avó da cineasta, Rosalina Macieira de Castro, uma das primeiras paraquedistas civis portuguesas. Investigação íntima transformada em gesto político, o filme constrói-se como uma ponte entre gerações, cruzando imagens de arquivo pessoal, testemunhos directos e filmagens contemporâneas, que recuperam a determinação daquelas que ousaram desafiar os céus de um país marcado por uma visão redutora e retrógrada do papel da mulher. No cuidado balanço entre o peso da história e a leveza da lembrança, “Salto” afirma-se não apenas como retrato de uma época, mas como reflexão sobre o legado feminino, as ausências que persistem e o que continua por dizer. Na sessão expandida do “centenário” do Shortcutz Ovar, a presença da avó Rosalina reforçou a dimensão viva desse legado, alimentando um diálogo vibrante sobre coragem, determinação e a força de ser mulher, mas também sobre a experiência nas antigas colónias portuguesas, onde, paradoxalmente, se respirava um ar mais livre. “Salto” revela-se, assim, como o próprio gesto da realizadora: Um mergulho nas raízes e na identidade, um movimento de busca que prova que certas memórias, mesmo herdadas, continuam a pulsar no presente.

No segundo filme da noite, a curta-metragem “Kora”, Cláudia Varejão parte do gesto ancestral de fixar uma sombra na parede para iluminar a vida de mulheres refugiadas que reconstroem o presente em Portugal, trazendo no bolso o retrato de quem amam e no corpo as marcas do que deixaram para trás. Produzido pela Terratreme Filmes, o documentário convoca a mitologia grega para sublinhar a origem íntima da imagem: guardar alguém para que não desapareça. É a partir dessas fotografias, frágeis âncoras de identidade, que o filme desenha a silhueta de mulheres vindas de territórios em conflito - a Ucrânia e o Afeganistão, o Sudão, a Rússia e a Síria -, muitas delas instaladas em contextos precários, em trânsito, tentando integrar-se num país que ainda lhes oferece escasso amparo. Para quem enfrentou a travessia em condições extremas ou viu a família destruída, revisitar memórias pode ser insuportável, mas o que dizem, as ideias que partilham, continuam a ressoar em nós como um verdadeiro manifesto político. Abandonar o próprio país é “ser um jogador de futebol sem pernas”, enquanto continuar significa carregar o passado, não apagá-lo. No subtexto, impõe-se a pergunta que o filme não resolve, mas devolve ao espectador: E aqueles que não têm como fugir e acabam por sucumbir ao genocídio — como em Gaza?

sábado, 29 de novembro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100
Com | Sara Naves Sousa, Daniel Soares e Gonçalo Almeida
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Nov 2025 | qui | 21:30


O Shortcutz Ovar assinalou na noite da passada quinta-feira a sua centésima sessão. Trata-se de um marco simbólico para um certame que, nascido a 26 de Janeiro de 2017, tem dado um importante contributo para a afirmação da vitalidade do cinema português em formato curto. Primeiro no Museu Júlio Dinis e, desde Junho de 2020, na Escola de Artes e Ofícios, o projecto soube conquistar e fidelizar um público a rondar os vinte mil espectadores, transformando cada sessão num momento lúdico e didáctico, onde ver bom cinema e discutir a sua relevância são as duas pedras de toques. Ao longo destas cem sessões, o Shortcutz Ovar tornou-se ponto de passagem obrigatório para realizadores emergentes e para amantes de cinema que souberam reconhecer aqui uma programação consistente, feita de risco, experimentação e espírito crítico. “Make Movies Great Again”, apetece dizer, no momento de celebrar cem oportunidades de contacto directo com a criação cinematográfica, cem possibilidades de formar público, de abrir horizontes e estimular o pensamento. A vitalidade do projecto, sustentada por uma comunidade que cresce a cada edição, sugere que as próximas cem sessões têm todas as condições para continuar a surpreender pela positiva e a provar que, em Ovar, o cinema curto é uma causa duradoura e uma festa contínua.

Passando aos filmes propriamente ditos, a sessão abriu com “O Estado de Alma”, uma curta-metragem de imagem animada com assinatura de Sara Naves Sousa, professora da Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve. Nela, o desconforto assume forma física e brutal numa narrativa que acompanha Alma, uma jovem que acorda diariamente transformada, espelho das suas inseguranças e da dificuldade em corresponder a um ideal de normalidade. Em Ovar pela primeira vez, a realizadora mostrou um filme que se destaca pela ousadia estética e emocional com que traduz a ansiedade social, os medos de encarar ou de se relacionar com o outro, a sensação de inadequação que corrói a personagem por dentro e por fora. Até a casa, tradicional refúgio e porto de abrigo, surge aqui como espaço caótico, incapaz de oferecer segurança a um processo de crescente apatia que culmina no colapso. Só no fundo desse abismo Alma encontrará a possibilidade de renascer, reconhecendo nas diferenças dos outros a prova de que ninguém está realmente só.

“Bad For a Moment”, de Daniel Soares, foi o filme que preencheu o período intermédio da sessão, impondo-se como espelho incómodo sobre a função social da arquitectura e o preço oculto do “progresso”. Filmada no Bairro da Alfazina, esplêndido miradouro natural sobre Lisboa e o Tejo, o filme expõe as tensões latentes da gentrificação e a dureza das vidas que ela empurra para fora do mapa. Há, no centro da narrativa, o desconforto e o dilema moral do arquitecto de contribuir para um mundo melhor o que, na prática, acarreta o desmoronar do mundo de muitos, vítimas que são da voracidade imobiliária. Rebelar-se contra o sistema parece ser um “não assunto”, sabendo que uma eventual escusa  não é sinónimo de travão a tudo o que está em marcha, porquanto haverá sempre alguém pronto a ocupar o lugar. Distinguida com o Prémio Especial do Júri do Festival de Cannes, a obra confirma, à semelhança dos anteriores “Please Make It Work” e “O Que Resta”, já exibidos no Shortcitz Ovar, o rigor estético e a sensibilidade para as causas sociais do realizador luso-alemão e questiona até quando é possível resistir num cenário onde o idealismo cede, quase sempre, ao peso das consequências.

A encerrar a sessão - e a 9.ª temporada -, “Atom & Void”, de Gonçalo Almeida, seguiu as pisadas das curtas anteriores e voltou a instalar o espectador no lugar do desconforto. Filmado no interior de uma garagem alentejana, o filme transforma uma aranha na protagonista silenciosa de uma fábula pós-apocalíptica. Desafiando o poder e sedução da alta tecnologia, a obra devolve à artesania a sua capacidade expressiva, convertendo-se num lúcido tratado sobre a condição humana - mesmo sem humanos em cena - e numa reflexão inquietante sobre o rumo civilizacional num antropoceno onde os efeitos da acção do homem sobre o planeta são evidências que os líderes das grandes potências teimam em negar. Enquanto se mascaram os danos do progresso sob a bandeira do avanço científico, a corrida pelo domínio geopolítico permanece a fonte de todos os conflitos. Não por acaso, “Atom & Void” abre com uma advertência de Yuri Gagarin: “There never has been a bloodless victory over nature”. Ela lembra-nos que cada conquista exige um preço, e que a imaginação, quando alimentada por meios mínimos e uma lente comprada à custa de todo o orçamento de um filme, é capaz de revelar abismos que preferimos não enfrentar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

LIVRO: "O Rasto dos Peregrinos" | André Domingues



LIVRO: “O Rasto dos Peregrinos”,
de André Domingues
Ed. Poética Edições, Agosto de 2025


“Eu disse-lhe ‘olá’ e fiquei com a sensação de que tinha dito muito pouco. Depois virei-me para trás e gritei: ‘Alexandra!’. Ela estancou o passo e eu comecei a caminhar ao seu encontro. ‘Alexandra’, disse eu, já muito próximo, um pouco atordoado e ofegante, ‘quero dizer-lhe que a respeito muito’, e imediatamente percebi que estava a ser demasiado abstracto, formal, idiomático, laborioso, e tentei corrigir, ‘quero dizer-lhe que gosto muito de si’, mas agora a frase tinha saído com o relevo de outras conotações. ‘Eu sei que isto pode parecer-lhe absurdo, mas sou escritor e queria pedir-lhe a sua autorização para entrar num livro meu’.”

“O Rasto dos Peregrinos”, o novo livro de contos de André Domingues, aí está para nos inquietar e desafiar. Nele, o autor articula uma série de narrativas que orbitam a esfera pessoal de amigos, de conhecidos e desconhecidos, dotados todos de uma espécie de atavismo emocional que regressa como quem volta a casa apenas para descobrir que a casa já não é a mesma. Na esplanada de um bar, à beira da piscina ou num quarto de hotel, as personagens entram e saem sem pedir licença, prontas para nos inquietar e nos perguntar, olhos nos olhos, o quanto delas reside em cada um de nós. Como alguém que não quer, mas quer muito fazer parte do enredo, o autor insinua-se quase como um mito doméstico, uma presença inquieta que assume recorrentes crises de identidade, deslizes morais e epifanias rutilantes. Observador atento e envolvido na análise dessa fronteira ténue onde o quotidiano tropeça no absurdo, André Domingues faz da pena um espelho capaz de tudo distorcer, convidando o leitor a descobrir o verosímil no ridículo que se abriga num grupo de amigos presos num bar que se afunda, nos amantes decididos a perder todo o pudor, num escritor fracassado apaixonado por uma prostituta virtual, num poeta sem amor-próprio e por aí fora. Tudo isto com uma minúcia psicológica que nos faz entender ser nosso este seu mundo.

Numa prosa que oscila entre o terno e o cínico, o autor abre-nos a possibilidade de, através das personagens, descermos ao mais fundo de nós, sempre com a graça trágica de quem caminha alegremente em direcção ao abismo enquanto vai tecendo comentários sobre o tempo que anunciam para o próximo fim de semana. Há, por exemplo, a Maria Tânger que todos os dias prova a si própria que ainda sabe chorar - “rir, toda a gente ri, ok. Mas chorar… quem é que hoje em dia ainda consegue chorar?” Noutra narrativa, seguimos dois grandes leitores que se conhecem na esplanada de um bar e contam um ao outro verdades que só na sua imaginação existem. Ao longo de quase duzentas páginas, são onze os contos que se abrem ao leitor, formando no seu todo um catálogo de personagens que se debatem com as suas versões idealizadas, tropeçando em relações imprudentes e amizades tóxicas, lutando para se manterem unidas e adoptando, para o efeito, as mais variadas estratégias de duvidosa eficácia. Ainda assim, a escrita de “O Rasto dos Peregrinos” é marcada por um charme desconcertante, capaz de transformar os pequenos desastres em observações humanas de rara precisão e argúcia.

Entre “a página em branco que dói na sua implacável nudez” e “uma metáfora que não corresponde às condições atmosféricas, o que sobressai no livro é a forma como o autor, com um humor vivo, retrata a confusão emocional como se esta fosse o estado natural da espécie humana. E talvez seja. As personagens movem-se guiadas por impulsos contraditórios: Desejam pertencer e simultaneamente fugir, buscam amor enquanto coleccionam as piores decisões. Há introspecção, mas sempre manchada de uma ironia resignada, como se André Domingues nos viesse dizer, fazendo uso da sua própria experiência e convicções, que crescer não ilumina coisa nenhuma, apenas torna a escuridão mais palpável. Não se pense, porém, que estes contos se votam ao desalento. Há, aqui e ali, lampejos de ternura, pequenos actos de coragem doméstica e uma espécie de esperança teimosa que insiste em sobreviver, mesmo quando as personagens tentam sabotá-la de todas as maneiras. No conjunto, “O Rasto dos Peregrinos” oferece-nos um retrato incisivo das fraquezas contemporâneas, mas com aquela generosidade perversa que só a boa ficção permite: julgamo-las, rimo-nos delas, reconhecemo-nos nelas e por fim aceitamos que talvez a única coisa verdadeiramente atávica seja este hábito humano de procurar um sentido no caos em que estamos mergulhados.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Todo o Mundo é Composto de Mudança" | Álvaro Domingues



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Todo o Mundo é Composto de Mudança”,
de Álvaro Domingues
Curadoria | Aníbal Lemos
Centro de Arte de S. João da Madeira
22 Nov 2025 > 10 Jan 2026


Álvaro Domingues é um dos nossos maiores pensadores da paisagem e do território. Assente em livros, imagens e conferências, o que vou sabendo dele, o que vou vendo e escutando, reforça a cada dia esta certeza. Com profundidade consistente, o seu trabalho incide no estudo da geografia urbana, no território, na paisagem e nas políticas urbanas, conjugando investigação teórica e elaboração crítica. No passado mês de Julho, foi eleito Académico Efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, sinal por demais evidente da sua relevância científica no panorama português. Essa construção intelectual serve de alicerce a um olhar fotográfico que não é mero capricho artístico, antes resulta de um pensamento geográfico, sociológico e político, estruturado e amadurecido no meio académico. Exemplo acabado de um “olhar o território não como cenário, mas como processo”, aí está, à vista de todos, “Todo o Mundo é Composto de Mudança”, exposição de fotografia inaugurada no passado sábado no Centro de Arte de S. João da Madeira, com curadoria de Aníbal Lemos. Nela, o visitante entra com a convicção de que irá ver paisagem, mas sairá a perceber que viu tempo: O tempo das lendas herdadas, o tempo das metamorfoses rápidas, o tempo de um território que insiste em estender-se muito além de uma só fotografia, quanto mais de um só discurso.

No centro do trabalho de Álvaro Domingues está um olhar atento à paisagem como espelho das transformações sociais e económicas: Ele não apenas fotografa, mas “lê” o território. A sua famosa noção de “paisagens transgénicas” reflecte precisamente essa abordagem crítica. Ao inspirar-se no conceito biológico de organismos geneticamente modificados, Domingues descreve paisagens híbridas, instáveis, compostas por elementos muito diversos — rurais, industriais, urbanos — que coabitam num mesmo quadro estético e simbólico. Nas suas fotografias, tais paisagens revelam a dissolução das fronteiras tradicionais entre o “natural” e o “artificial”, oferecendo uma metáfora sociológica e política para a mudança acelerada e a globalização. Domingues convida-nos a perceber que vemos mal e identificamos pior, educados que fomos por um imaginário que promete permanência onde só existe fluxo. Mas, em vez de lamentar estragos, o autor propõe uma leitura mais madura: a paisagem como sismógrafo, registo das mudanças que fizemos, das escolhas que repetimos, dos desejos e omissões que deixámos impressos no território. A sedução das imagens resulta precisamente dessa ambiguidade: são belas, mesmo quando denunciam, poéticas mesmo quando se afirmam como “meios complementares de diagnóstico”.

Criticamente, a obra de Álvaro Domingues sugere uma tensão entre a promessa de desenvolvimento e o agravar das desigualdades. Fazendo valer o olhar irónico e um humor subtil, as suas imagens iluminam discrepâncias económicas e culturais nos territórios sobre os quais se debruça. Em Portugal como no Brasil, no México como em Espanha, o seu olhar guia o espectador ao encontro de construções improvisadas, viadutos interrompidos, cabos eléctricos emaranhados, rotundas que culminam estradas sem saída, animais de todos os géneros que povoam paisagens marcadas pela tecnologia. Domingues não pretende resolver o território, nem celebrá-lo ou castigá-lo. Pretende apenas torná-lo legível. E para isso desmonta mitologias, raspa vernizes, aproxima escalas, cruza o microscópico com o monumental. Cada fotografia é um convite à dúvida e um desafio à simplicidade com que julgamos compreender o espaço que habitamos. No fim, a exposição opera um raro efeito: devolve-nos o território como tarefa, um lugar em permanente experimentação, para o qual não basta olhar; é preciso interpretar. Sai-se com a sensação de que, “entre a rua e o país” vai, de facto, “o passo de um anão”. Mas que esse passo, quando dado com olhos de ver, pode revelar mais do que qualquer geografia oficial. Álvaro Domingues, uma vez mais, ensina-nos a caminhar.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” | Maria Beatitude



EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados”,
de Maria Beatitude
Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira
22 Nov 2025 > 04 Jan 2026


“Num mundo onde tudo é agitação e afazeres, o tédio é cada vez mais necessário.
É no vazio que a mente procura novas ideias e conceitos.
O cenário parece perfeito para o nada poder acontecer, mas é nesse contexto de vazio que tudo acaba por surgir.
Obras que integram a palavra e a forma para que novos conceitos possam ocorrer.”
Maria Beatitude

Ver pela primeira vez uma exposição individual de Maria Beatitude, após anos a acompanhar o seu trabalho disperso em mostras colectivas, é como entrar num território finalmente revelado por inteiro. Já nas aparições fragmentadas se intuía que a artista não pintava apenas imagens: Pintava estados mentais, fricções interiores, pequenos abalos da experiência contemporânea. As suas obras sempre conseguiram mostrar-me uma tensão entre a delicadeza do gesto e a urgência da mensagem, uma percepção aguda de um mundo fragmentado e do nosso viver face a fracturas e dissoluções, da nossa necessidade de encontrar formas de habitar o desassossego sem sucumbir a ele. “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” confirma essa intuição antiga: a artista cria aqui não apenas uma exposição, mas um espaço mental, quase terapêutico, onde a pausa deixa de ser interrupção e passa a ser condição de sobrevivência. Assinado pela neurocientista Luísa V. Lopes, o texto que integra o catálogo convoca a ciência como aliada e torna visível aquilo que a prática de Maria Beatitude sugere: Que pensar devagar, divagar, permanecer em suspensão, entediar-se, não é desperdício. É método, é resistência, é tempo. Tempo de qualidade.

“Podiam ser frames de um filme. Podiam ser momentos de introspecção ou reflexão, momentos de pausa, de divagação ou de simples “Dolce Far Niente”. Podia ser tudo isso ou apenas um momento de tédio onde ‘Numa cadeira sobre um tapete aos quadrados’ tudo pode acontecer. Podem surgir as melhores ideias, a resolução para aquele problema até ali irresolúvel ou, simplesmente, ficar a contemplar com mais tempo.” O uso insistente da cadeira e do tapete — motivos aparentemente simples — ganha uma densidade simbólica que se aprofunda ao vê-los em comunhão num discurso coerente. Maria Beatitude sempre trabalhou com objectos silenciosos, dotando-os de uma vibração simbólica que ultrapassa a superfície pictórica; mas aqui essas imagens tornam-se verdadeiros dispositivos de introspecção. A cadeira vazia é simultaneamente convite e ausência, promessa e perda. O tapete geometrizado organiza o espaço como quem tenta organizar a mente. O diálogo com os espelhos “DRAMA” e “ROMANCE” enfatiza essa dramaturgia da interioridade, recusando a ideia da simples categoria literária e assumindo-o como modos de existir, narrativas que cada visitante reencontra em si.

Ambiguidades e utopias, levezas e paixões, possibilidades e mentiras, compêndios e diários ou as “narrativas que não tiveram um fim” revelam outra dimensão do trabalho de Beatitude: a consciência de que a memória é sempre um processo incompleto, um arquivo instável que resistimos a perder, mas que raramente dominamos. Esta exposição traduz de forma exemplar a necessidade de criar zonas de abrigo mental num mundo em colapso acelerado. Ao longo dos anos, nas suas participações colectivas, percebia-se que a artista procurava mais do que fazer pintura — procurava fazer sentido, ou pelo menos dar forma ao que ainda não conseguia ser dito. Aqui, esse impulso atinge um grau de clareza raro: cada peça é um fragmento de pensamento tornado visível, uma tentativa de ordenar o caos sem o domesticar. Maria Beatitude parece propor que a sanidade não está na eliminação do ruído, mas na criação de espaços onde o ruído possa ser escutado sem nos desintegrar. Coreografia de pausas, “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” é um convite a que cada visitante encontre o próprio eixo num mundo que insiste em o deslocar. Termina-se a visita com a sensação de que o tédio, esse estado tantas vezes desprezado, pode ser a porta para uma lucidez inesperada.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Bandopipo: Da Aduela ao Brinde" | Mário Lisboa



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Bandopipo: Da Aduela ao Brinde”,
de Mário Lisboa
Videoarte | Carla Varanda
Escola de Artes e Ofícios
15 Out > 31 Dez 2025


Surgida no âmbito do Ovar Expande, “Bandopipo: Da Aduela ao Brinde” é uma exposição sobre “a fusão da tanoaria com a música”, e que pode ser vista por estes dias na Escola de Artes e Ofícios. Nela, o fotógrafo Mário Lisboa desloca-se do gelo primordial para o calor íntimo da madeira trabalhada e do dedilhar das cordas de um instrumento musical, trocando a vastidão hipnótica do extremo sudoeste da Sibéria pela respiração concentrada das tanoarias, onde o ferro e as madeiras dialogam entre si e o artefacto se faz música. Depois de décadas a cartografar geografias exteriores — povos, paisagens, rituais, atmosferas — o fotógrafo volta-se agora para o espaço interior, onde a escala se reduz mas a intensidade permanece. O que aqui se vê é menos a representação das artes e ofícios e mais a revelação de uma alquimia que transforma matéria em som. Na Escola de Artes e Ofícios, as imagens constroem um percurso que acompanha a génese do Bandopipo, esse híbrido improvável nascido de um pipo e destinado ao convívio com a família do bandolim. Lisboa observa o fazer e o ensaiar, o gesto paciente do tanoeiro e a precisão do luthier, como quem acompanha o amadurecimento de um fruto raro. Entre fotografias, estações sonoras, videoarte e entrevistas, o visitante percorre um território onde as fronteiras entre artes e ofícios se dissolvem, e onde cada imagem parece conter, adormecido, o primeiro sopro de música.

Aquilo que começou como instrumento torna-se pretexto, e aquilo que se apresenta como exposição converte-se em narrativa de criação, partilhada em camadas de luz e som. O diálogo entre tanoaria e luteria, registado com a minúcia de quem deduz os ritmos secretos da matéria, surge aqui transfigurado em composição visual. Herdeiro de cinco gerações de fotógrafos, Mário Lisboa conhece a gramática própria que cada ofício encerra: o fogo que curva a aduela, o metal que fixa o arco da forma, a lâmina que afina o corpo ressonante, a corda que vibra em embalos sublimes. As suas vinte imagens percorrem esses gestos como quem decifra uma pauta, revelando o paralelismo entre fabricar pipos, construir instrumentos de corda e dar a ver as muitas sonoridades que neles se encerram. Se a madeira é a mesma, também é semelhante a tensão interna que conduz ao som: Primeiro contida, depois liberta, é a vibração que dá voz ao Bandopipo, acrescentando-lhe o pressentimento de uma ressonância futura. A instalação multissensorial acentua este parentesco: A videoarte de Carla Varanda devolve o ritmo dos gestos à orquestra; as estações de escuta expandem a Suite Bandopipo para além da imagem; as entrevistas restituem o timbre humano à técnica. No centro, como um coração que pulsa em silêncio, está o instrumento conceptualizado por Eurico Silva e materializado por Agostinho Rodrigues, meio bandolim, meio pipo, inteiro na ousadia de assumir o lugar de benjamim na distinta família dos cordofones.

No encontro entre matéria e metáfora, atinge a exposição a sua plenitude. O Bandopipo, instrumento improvável que faz passar a música para o vinho, reintroduz o visitante num território onde criação e celebração são indissociáveis. Se o pipo amadurece o líquido, aqui é a música que o acompanha no estágio, como se cada nota depositasse no néctar uma memória adicional. Mário Lisboa capta essa ideia com subtileza: as garrafas especiais — colheitas musicais que evocam os concertos da Orquestra de Bandolins de Esmoriz — erguem-se como testemunhos de uma alquimia final, onde a imagem se faz memória, o som se torna sabor e o gesto artesanal se converte em rito coletivo. A exposição culmina, assim, num brinde simbólico à tradição reinventada, à persistência dos ofícios e à imaginação que os reconfigura. O fotógrafo, habituado a percorrer o mundo em busca do extraordinário, encontra-o agora na intimidade da madeira, no sopro quente da tanoaria, na vibração que se faz música. E ao fazê-lo, confirma que a verdadeira viagem nunca depende da distância percorrida, mas da capacidade de olhar. Em “Bandopipo: Da Aduela ao Brinde”, Mário Lisboa devolve-nos esse olhar: preciso, sensível e profundamente enraizado na convicção de que a arte — como o vinho — se faz de tempo, gesto e partilha.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

CINEMA: "Sex" | Dag Johan Haugerud



CINEMA: “Sex”
Realização | Dag Johan Haugerud
Argumento | Dag Johan Haugerud
Fotografia | Cecilie Semec
Montagem | Jens Christian Fodstad
Interpretação | Thorbjørn Harr, Jan Gunnar Røise, Siri Forberg, Birgitte Larsen, Theo Dahl, Nasrin Khusrawi, Anne Marie Ottersen, Vetle Bergan, Iver Innset, Siri Jøntvedt, Sereba Marvin, Arturo Scotti, Darin Hagi, Hadrian Jenum Skaaland, August Jenum Skaaland
Produção | Hege Hauff Hvattum, Yngve Sæther
Noruega | 2024 | Drama, Romance | 118 Minutos | Maiores de 14 anos
Vida Ovar Castello Lopes
23 Nov 2025 | dom | 16:10


“Sex”, novo capítulo da filmografia de Dag Johan Haugerud e primeira parte da trilogia “Sex, Dreams, Love”, chega às salas de cinema como um objecto singular: um filme sobre intimidade que abdica de qualquer representação física do acto sexual. A recusa não é apenas estética, mas ética, uma vez que Haugerud tem declarado repetidamente considerar a encenação do sexo “ofensiva e de mau gosto”, alinhando-se com uma corrente de cineastas que vê no erotismo filmado uma ideia, no mínimo, redundante. Como em Rohmer, uma referência assumida do cineasta, a palavra torna-se o eixo dramático, mas aqui o diálogo avança numa cadência obstinada, quase circular, onde a repetição parece querer rivalizar com o brilho moral e a ironia elegante do mestre francês. Essa estratégia revela tanto a ambição como os limites de Haugerud: discutindo a intimidade com rigor conceptual, o filme arrisca tornar-se prisioneiro do seu próprio método. A história central - um casal em crise após o marido confessar um encontro sexual casual com outro homem - impõe-se como laboratório desta aposta: para ele, o acto é desprovido de emoção e, portanto, não constitui traição; para ela, é a implosão definitiva da confiança conjugal. Entre confrontos discretos e longas pausas, o cineasta examina a fractura entre sexo e amor, tema que organiza uma boa parte das duas horas de duração.

Paralelamente, Haugerud introduz a trajectória de um colega do protagonista, um limpa-chaminés cujo sonho recorrente é ser observado por David Bowie “como se fosse uma mulher” e que começa a acreditar que a sua própria voz ganha tonalidades femininas. Também aqui domina a estrutura circular, reforçando a sensação de que o filme trabalha com ideias pertinentes mas cujo desenvolvimento se mantém contido, quase tímido. Ainda assim, “Sex” distingue-se pela forma como filma a interioridade com uma subtileza rara. A aparente banalidade dos homens que falam em telhados, escadas e copas, transforma-se num exercício de “mise en scène” rigorosa, que exige do espectador esforço e disponibilidade para o não-dito. Oslo, filmada à distância, torna-se cúmplice silenciosa dessa inquietação: uma cidade bela, fria, quase inacessível. O plano da esposa filmada apenas de costas sintetiza essa ética do pudor — um gesto de resistência num tempo obcecado pela transparência. A longa conversa conjugal, que pode ser irritante para aqueles que buscam no ritmo a essência de qualquer filme, é precisamente onde o realizador parece mais honesto, lembrando que a vida adulta raramente oferece cortes rápidos ou estados emocionais arrumados. O filme prefere abraçar a dúvida como condição universal, recusando-se a oferecer conclusões limpas ou explicações confortáveis.

Apesar das fragilidades estruturais e de uma duração que parece esticar um material dramaticamente pouco complexo, “Sex” evita o fracasso pela força do seu humor “seco”, pela precisão formal dos planos longos e pela solidez das interpretações. Se o filme deixa a impressão de ser “pela metade”, é porque o desafio que se impõe é gigantesco: transformar conversa em cinema, risco em dramaturgia, ambiguidade em gesto político. Haugerud filma estes homens como Rohmer filmava os seus moralistas ou como Kieślowski filmava as suas almas perplexas: com compaixão crítica, nunca benevolente. A cidade, o trabalho, os espaços vazios surgem como rodapés existenciais, lembrando que estas inquietações individuais pertencem a uma comunidade inteira. Nada se resolve, nada se fecha, nada se transforma em lição, fazendo com que o espectador saia da sala com mais perguntas do que aquelas com que entrou. Num panorama saturado de certezas artificiais, esta recusa em simplificar soa quase a acto de rebeldia. “Sex” inaugura a trilogia anunciada com uma maturidade rara: não pela solenidade dos temas, mas pela inteligência com que confia na complexidade humana. Exigente, quase desesperante, é também um filme profundamente honesto. E é talvez por isso que merece ser defendido com entusiasmo: porque ainda acredita que o cinema pode, simplesmente com palavras, iluminar aquilo que nos torna frágeis.

domingo, 23 de novembro de 2025

DANÇA: "Umuko" | Dorothée Munyaneza



DANÇA: “Umuko”
Direcção artística | Dorothée Munyaneza
Figurinos | Stéphanie Coudert
Música | Impakanizi, Jean Patient Nkubana e Michael Makembe 
Luz e cenografia | Camille Duchemin
Interpretação | Jean Patient Nkubana, Impakanizi, Cedric Mizero, Abdoul Mujyambere, Michael Makembe
Produção | Virginie Dupray, com assistência de Nouria Tirou e Louise Mutabazi / cie Kadidi
70 Minutos | Maiores de 6 Anos
Teatro do Campo Alegre - Auditório
22 Nov 2025 | sab | 19:30


“Já lá vão 28 anos desde que deixei a minha terra natal.
28 anos a viver em novas terras.
28 anos a enraizar-me noutros lugares.
28 anos sem esquecer umuko, essa árvore que ilumina a minha infância. Essa árvore que só ressoa na língua materna. Essa árvore vermelha, vermelha como a terra, que me liga ao que começa, ao que se perde e se reencontra, quando volto, ao que continua…”
Dorothée Munyaneza

Em “Umuko”, Dorothée Munyaneza regressa simbolicamente ao coração da sua paisagem primordial para construir uma obra que é, simultaneamente, um rito de evocação e de projecção. A coreógrafa parte do “umuko”, uma árvore de flores vermelhas, guardiã de mitos e de práticas ancestrais, para ordenar um gesto artístico que interliga temporalidades, memórias e futuros possíveis. Não se pense, porém, que se trata de um retorno nostálgico. Ao invés, ele é incisivo, interroga, quer compreender. Depois de quase três décadas a viver entre Londres, Paris e Marselha, Munyaneza reencontra em “Umuko” a força daquilo que persiste, mesmo quando se vive fora do lugar de origem. E é dessa pulsação, dessa raiz que resiste ao exílio, que nasce um espetáculo onde corpos jovens encarnam uma herança que não é estática, mas em plena mutação. No palco, a árvore converte-se em dispositivo dramatúrgico: um centro simbólico que irradia sentidos e onde se instala o “ejo”, esse termo kinyarwanda que, ao significar ontem e amanhã, dissolve a fronteira entre o que foi e o que poderá vir a ser.

O gesto de Munyaneza é profundamente político, mas recusa o panfleto. Sem recorrer a imagens explícitas do genocídio de 1994 — cuja sombra permanece inevitável — “Umuko” coloca em palco cinco artistas nascidos depois da catástrofe, como quem responde à violência com vitalidade e imaginação. Impakanizi, Jean Patient Nkubana, Abdoul Mujyambere, Michael Makembe e Cedric Mizero formam um colectivo multiforme: dançam, cantam, tocam inānga e tambores, improvisam poemas. A coreógrafa carrega neles a marca dos “brand new ancients”, retomando a expressão de Kae Tempest para nomear aqueles que carregam uma memória ancestral enquanto inventam novas linguagens para o futuro. Cada gesto - um passo que fende o chão, uma vibração vocal que ecoa como prece, uma frase musical que convoca o épico - funciona como testemunho e reinvenção. O espectáculo sugere que a arte pode ser mais do que apenas memória: ela cura, reorganiza, reinscreve. A árvore ancestral torna-se, assim, uma metáfora do país inteiro, onde ramos frágeis e vigorosos coexistem, e onde o passado, por doloroso que seja, não impede a emergência de uma criatividade desarmante.

Enquanto experiência estética, “Umuko” move-se entre a celebração e a vulnerabilidade, num equilíbrio raro de força e delicadeza. A coreografia evita a monumentalidade e aposta num diálogo íntimo entre corpo, música e palavra, fazendo da alegria uma forma séria de resistência. É uma obra que se lê tanto como celebração - da juventude, da cooperação, da liberdade artística -, quanto como meditação sobre o que significa herdar uma história traumática sem permitir que ela determine ou extinga os horizontes possíveis. Munyaneza convoca o público para um encontro que é também uma pergunta: Como enfrentar a vida depois do irreparável? A resposta que oferece não é abstracta nem moralizante; está inscrita na fisicalidade destes jovens intérpretes, na audácia com que reinventam códigos tradicionais, na sua imensa alegria, na energia contagiante que irrompe do palco como promessa de continuidade. “Umuko” é, no fundo, um manifesto de persistência. Como as flores vermelhas da árvore, é uma criação que ilumina o caminho sinuoso entre o que perdemos, o que guardamos e o que nos permitimos sonhar.


sábado, 22 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “100 Anos de Gérard Castello-Lopes”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “100 Anos de Gérard Castello-Lopes”,
de Gérard Castello-Lopes
Colecção Nacional de Fotografia
Centro Português de Fotografia
25 Out 2025 > 04 Jan 2026


Celebrar o centenário de Gérard Castello-Lopes no Centro Português de Fotografia é revisitar a génese silenciosa, mas decisiva, de um dos olhares mais singulares da fotografia portuguesa do século XX. Entre a inquietação intelectual e a discrição quase monástica, Gérard Castello-Lopes construiu uma obra marcada pela reflexão sobre o acto de ver: “Trata-se, claro, dum olhar fotográfico”, escreveria em artigo para a revista INDY, do já extinto jornal O Independente. A “dúvida” (assim se intitulava o artigo) acompanhou-o toda a sua vida. Haveria ou não um “olhar português”, parecia perguntar-se na forma como identificava as posturas mínimas, os gestos ínfimos, a verdade de um país. A fotografia do homem que, de costas, lê a tabela do comboio Lisboa–Sintra é paradigmática: não vemos a face, mas adivinhamos a história: O viajante vindo “de fora”, o melhor fato vestido, as mãos atrás das costas a segurar talvez a merenda. Gérard reconhece ali o que um estrangeiro dificilmente veria: a coreografia íntima do quotidiano português. É a isso que esta exposição regressa, ao modo como um fotógrafo, que começou a fotografar em 1956, soube distinguir o peso simbólico de cada gesto num país fechado e desigual, muito antes de Portugal se descobrir a si próprio através da imagem.

A carreira fotográfica de Gérard Castello-Lopes teve um início precoce e uma longa interrupção. Nos anos 50, a repressão estética e moral do Estado Novo e a hegemonia dos “academismos de salão” — aqueles salões onde se repetiam eternamente a ponte no nevoeiro, a loira intitulada Ingrid ou o seio casto da modelo paga à hora — afastaram-no do meio fotográfico. “Enfiei a Leica no saco”, confessará mais tarde. Só uma geração depois, em 1982, António Sena baterá à sua porta e “arrombará a arca” onde as fotografias jaziam esquecidas. “Vale Tudo Menos Tirar Olhos”, a primeira exposição na galeria Ether, marca o renascimento inesperado de um autor que regressa ao mundo artístico com a serenidade de quem nunca precisou de provar nada. Sena e Gérard coincidem na crítica à mediocridade e à censura dos júris oficiais entre 1910 e os anos 60, mas divergem no tom: Gérard é irónico, mordaz, irritado ainda com a “escatológica dieta” dos salonistas; Sena é metódico, historiográfico, quase militante na reconstrução de uma memória fotográfica portuguesa. Ao voltar a fotografar, já nos anos 80, Gérard Castello-Lopes procura um novo princípio: ver “como se fosse a primeira vez”. No Guincho, diante de uma pedra iluminada por um milagre de luz e mar, encontra a revelação de “fotografar o peso e o seu contrário”. A obra tardia nasce desta simplicidade sublime.

A presente exposição no Centro Português de Fotografia reúne não apenas a obra inicial, mas também os frutos de um percurso que, após 1982, se multiplicou em livros, documentários e projectos de redescoberta do país. O regresso a Monsaraz, em 2001, é talvez o episódio mais tocante da sua maturidade: revisitara o local onde fotografara, em 1963, na companhia de João Cutileiro, e encontra agora uma comunidade capaz de identificar todas as figuras retratadas trinta e sete anos antes. “Invadiu-me a saudade dum paraíso onde toda a gente se conhece”, escreveu a propósito. Essa capacidade de gerar reconhecimento, primeiro no fotógrafo, depois nos fotografados, é uma das marcas essenciais do seu trabalho e reforça a pertinência do tal “olhar português” que o acompanhou como dúvida existencial. Gérard Castello-Lopes fotografava de modo atento, anti-retórico, centrado na dignidade das pessoas e na delicadeza das situações banais. Não buscava o pitoresco, mas a intensidade silenciosa do real. Ao visitante desta mostra pede-se, como o artista pedia, benevolência e disponibilidade: olhar para as imagens não como documentos de época, mas como actos de percepção que decifram um país. Ao fazê-lo, talvez descubramos que essa dúvida — a existência de um certo “olhar português” — é menos uma questão teórica e mais um convite a ver o que sempre esteve diante de nós.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E OBRA GRÁFICA: “Armando Alves na Árvore”



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E OBRA GRÁFICA: “Armando Alves na Árvore”,
de Armando Alves
Curadoria | Laura Castro, José Emídio
Árvore - Cooperativa de Actividades Artísticas
25 Out > 29 Nov 2025


Sessenta anos depois de ter inaugurado a sua primeira exposição na Cooperativa Árvore, Armando Alves regressa ao espaço que o viu nascer como artista. Aos 90 anos, feitos no passado dia 07 de Novembro, o pintor e escultor de Estremoz revisita a casa e o tempo das origens, numa mostra que condensa seis décadas de criação, dos anos 1960 à actualidade. A exposição, com curadoria de Laura Castro e José Emídio, é mais do que uma retrospectiva: é um reencontro com a própria ideia de fidelidade, uma palavra que atravessa toda a sua obra e biografia. A fidelidade ao Alentejo, à luz e ao silêncio da planície, mas também à disciplina do ofício e à geometria do olhar. Na Árvore, instituição que ajudou a fundar, Armando Alves mostra pintura e obra gráfica que testemunham um percurso raro, onde a clareza formal se alia a uma contenção poética, e a cor, sempre medida, abre espaço a uma emoção depurada.

Eugénio de Andrade escreveu que o pintor se “descobriu alentejano ao mesmo tempo que se descobria pintor”. Essa revelação continua a pulsar na sua obra, feita de horizontes longos e silêncios suspensos. José Saramago chamou-lhe “inventor de céus e planícies”, Herberto Helder viu-lhe “arco-íris em golpes vivos”, e Vasco Graça Moura destacou o “arco-íris de ofícios” de um criador múltiplo — professor, designer, editor, cenógrafo, escultor. A sua pintura, todavia, permanece como centro de gravidade de uma vida entregue à imagem e à forma. José-Augusto França via nela uma “disciplina gráfica” que purifica o olhar; Fernando Pernes intuiu “aproximações ao silêncio”. Tudo isso se revê agora nas obras expostas: janelas geométricas que filtram a luz, paisagens de latitude imprecisa, superfícies onde o rigor e a emoção se equilibram como duas faces do mesmo gesto.

Ver hoje Armando Alves na “sua” Árvore, é revisitar também uma ideia de tempo, o da persistência e do trabalho minucioso, alheio a modas e a pressas. No panorama português, a sua pintura ocupa um território singular: entre a herança modernista e uma abstracção lírica de raiz mediterrânica. Há nela uma lição de medida, um elogio da sobriedade, um entendimento quase ético da arte como construção e permanência. Nesta exposição da Árvore, cada quadro parece devolver ao visitante não apenas a história de um percurso individual, mas também a memória de uma geração que acreditou na arte como espaço de resistência e de comunidade. Aos 90 anos, Armando Alves continua a ser o que sempre foi — um artesão da luz, um desenhador de silêncios, um pintor fiel à beleza difícil da clareza. A mostra permanece patente ao público até 29 de Novembro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

TEATRO: “Chuva Pasmada” | Mia Couto



TEATRO: “Chuva Pasmada”
Texto original | Mia Couto
Adaptação, direcção artística e encenação | Leandro Ribeiro
Compositor, pianista | Hélder Bruno Martins
Interpretação | Clara Oliveira, Mafalda Reis, Maria Inês Campos, Paulo Cruz e Rita Camões, com elementos da comunidade local, Ana Albertina Pereira, Ana Silva, Ana Gabriela Tavares, Augusta Graça, Daniela Morence, Helena Barbosa, Isabela Amaral, João Figueiredo, Lucas Silva, Luiza Cassin, Mário Silva, Mónica Pires, Natália Fernandes e Vasco Figueiras
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
100 Minutos | Maiores de 6 anos
Centro das Artes do Espectáculo Sever do Vouga
16 Nov 2025 | dom | 16:00


Depois da estreia em Ovar, no passado mês de Setembro, “Chuva Pasmada” voltou à cena para uma representação única em Sever do Vouga. Em dia de festa e de celebração pelo 24.º aniversário do seu Centro das Artes do Espectáculo, os severenses cruzaram-se com a prosa poética de Mia Couto e perceberam, entre nuvens remexidas e lentilhas atiradas ao ar, que o teatro é também uma forma de salvação. Numa peça que tanto disse a muitos dos presentes – “Chuva Pasmada” foi mesmo a minha estreia em palco -, olhá-la do lado do espectador, após ter sido vivida na pele do actor, não podia deixar de ter um significado especial. Não que nela não houvesse já a certeza da viagem, o assombro do reencontro com a escrita de Mia Couto, a inteligência e delicadeza de uma encenação atenta ao mais ínfimo detalhe, a embriaguez de uma música emotiva, o espanto perante tão poderosas interpretações. Mas porque voltar a mergulhar num texto onde a chuva se detém pasmada e a mente aprende a sonhar, é renovar a ideia de que o teatro prolonga a página, que a palavra dita faz eco no sentir, que as emoções invadem o coração como água: “Clara, farta, risonha”.

“Chuva Pasmada” é um imenso, intenso milagre. A sensibilidade que Mia Couto coloca em cada palavra, a forma como, entre a voz e o silêncio, leva a que identidade e memória dancem em comunhão, é um convite à autodescoberta, um rasgar de atalhos para o mais fundo de cada um de nós. Motor secreto da peça e do romance, o amor é semente capaz de transformar dúvidas em certezas, a hesitação em voo, o receio em pertença. A materialização de todo este imaginário fabuloso constrói-se em comunhão de talentos: Onde apenas existiam telas, as luzes abrem rios; o vazio veste-se de emoção ao som de uma música inspirada; o invisível faz-se presente na riqueza dos sons; os figurinos acrescentam cor à própria respiração. E há os actores, enormes de talento, a provarem que o teatro é vida... e a vida é o teatro. Em harmonia, tudo vibra como na pequena aldeia, onde o natural e o sobrenatural se passeiam de mãos dadas e as histórias adormecidas vêm à superfície ao menor rumor de transformação ou magia.

Em Sever do Vouga, palco e plateia voltaram a partilhar os mesmos ventos. Ambos foram lugares de fronteira ao longo da qual nos reinventámos face aos nossos medos e incertezas, à nossa própria finitude. Nesse lugar de partilha, onde a inocência das crianças e o saber dos mais velhos alcança o equilíbrio num mesmo fôlego, é em conjunto que se molda o corpo ao verbo e o verbo ao corpo. Em Sever do Vouga, como em Ovar, o teatro levou a que cada espectador fizesse o mais difícil, o olhar-se no outro, o ver-se nele sem sobranceria ou imodéstia – antes de forma cúmplice, com humildade e empatia, actores que todos somos no palco desta vida. Então fomos capazes de rir e chorar, na certeza de quem aceita sonhar o mesmo sonho. Da vulnerabilidade de uns e do silêncio atento de outros, nasceu um pacto invisível entre quem sabe reconhecer-se na mesma emoção, o palco como espelho encantado onde cada gesto encontra quem o acolha e cada olhar abraça quem o transforme em magia. No final, todos - narradora com narradora, forasteiro com forasteiro, patrão da fábrica com patrão da fábrica - se cingiram num abraço, gratos pelo milagre que é o teatro.