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terça-feira, 2 de setembro de 2025

EXPOSIÇÃO: “Uma deriva atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo”



EXPOSIÇÃO: “Uma deriva atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo”
Vários Artistas
Curadoria | Nuria Enguita, Marta Mestre
Assessoria científica | Mariana Pinto dos Santos
MAC / CCB – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitetura
A partir de 27 Fev 2025 – Exposição permanente


O Atlântico, sobretudo a partir de meados do século XX, tornou-se um espaço fundamental de trânsitos e exílios, suscitando novas afinidades geopolíticas que moldam as subjetividades modernas com repercussões até ao presente. “Uma deriva atlântica” faz e desfaz caminhos pelas artes do século XX, procurando desarrumar ideias feitas e cânones estabelecidos através da convocação de referências e formas artísticas habitualmente dissociadas. A mostra segue uma cronologia inconstante, com desvios e saltos temporais, ligando e confrontando as margens europeia e americana para indicar possíveis relações e derivas por vezes esquecidas ou ausentes da história da arte. Enquanto exposição permanente em permanente transformação, apresenta de forma inédita as colecções em comodato no MAC/CCB — principalmente a Colecção Berardo, mas também a Colecção Holma / Ellipse, a Colecção Teixeira de Freitas e a Colecção de Arte Contemporânea do Estado —, integrando também empréstimos de colecções em Portugal que permitem redesenhar o lugar da arte portuguesa nas artes do século XX.

Enquanto remontagem da colecção permanente, “Uma deriva atlântica” apresenta uma selecção de artistas portugueses e internacionais, entre pintura, escultura, desenho, instalação e artes gráficas, que desenham a arte na história do mundo e mostram a modernidade enquanto eclosão múltipla de importantes transformações sociais, artísticas e tecnológicas. De Pablo Picasso a Amadeo de Souza-Cardoso, de Lourdes de Castro a Marcel Duchamp, de Andy Warhol a Wifredo Lam, de Maria Helena Vieira da Silva a Joaquín Torres-García, de Jackson Pollock a Malangatana, de Lucio Fontana a Ana Hatherly, num total de cerca de 160 artistas, a exposição apresenta uma série de capítulos que revelam as complexidades do desenvolvimento histórico e artístico no século XX. Marcado por duas Guerras Mundiais na Europa e pelas suas consequências até aos processos de revoluções e descolonização da década de setenta, este arco temporal mostra-se também permeável à transformação, podendo ser repensado em novos percursos.

Com as obras distribuídas por onze grandes temas – do Cubismo à Pop Art, do Surrealismo às Revoluções -, é um caminho que rompe com a tradição e que parte em busca de novas formas e sentidos da arte aquele que se abre num convite ao visitante. O cubismo de Picasso e Braque revela múltiplas perspetivas, estando na génese de movimentos como o suprematismo russo, a abstracção geométrica ou o surrealismo de Breton, que exalta o imaginário e o acaso. A Bauhaus e o Grupo ZERO exploram a pureza formal e o recomeço, enquanto o ready-made e as sombras questionam presença e ausência. A arte do pós-guerra desafia a supremacia da pintura com gestualismo e abstracionismo. Pop e novos realismos trazem o quotidiano e a cultura de massas para o centro, enquanto a arte conceptual e performativa desconstrói o objecto artístico. Por fim, as revoluções políticas e sociais do século XX transformam a arte em instrumento de luta, expressão e mudança, revelando uma relação indissociável entre criação e vida.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

LIVRO: "Querida Tia" | Valérie Perrin



LIVRO: “Querida Tia”,
de Valérie Perrin
Título original: “Tata” (© Éditions Albin Michel, Paris, 2024)
Tradução | Maria de Fátima Carmo, Maria Ferro
Ed. Editorial Presença, Novembro de 2024 (4.ª edição, Janeiro de 2025)


“Comecei a trabalhar em 1974, estava Giscard no poder. Podia escrever as minhas memórias, mas isso iria irritar toda a gente e, sobretudo, ninguém acreditaria em mim. O que te quero dizer é que aquilo que me deixou incomodado nesse dia foi a mulher que estava deitada na cama ser a Colette. E o duplo dela fitava-me, de pé ao meu lado, com um olhar inexpressivo. Tive de me sentar para não cair redondo. O que nunca me tinha acontecido. Passados uns momentos, a única coisa que consegui dizer à tua tia foi: 'Explica-me'. Ao que ele respondeu: 'Não há nada a explicar. Morri esta noite, nesta cama. O Louis tratará do meu funeral.' E depois ela abeirou-se da defunta, beijou-a com ternura e murmurou-lhe: 'Tudo se vai resolver. Não te preocupes.' 

Quarto romance de Valérie Perrin, “Querida Tia” confirma o talento da autora para desenvolver narrativas em torno das relações familiares, vestindo-as de inquietação, surpresa, entusiasmo, ternura e divertimento. A trama gira em torno de Agnès, uma bem sucedida realizadora de cinema, que recebe a notícia de que a sua tia Colette, enterrada há três anos em Gueugnon, acaba de falecer. Intrigada, regressa à pequena cidade da Borgonha onde passou a infância, disposta a descobrir a verdadeira identidade daquela que se encontra enterrada no lugar da tia e perceber o porquê desta mulher solteira, discreta, proprietária de uma sapataria e adepta fervorosa do clube local de futebol, ter feito questão de se manter incógnita durante tanto tempo. A descoberta de uma mala cheia de cassetes abre uma janela sobre o passado, revelando segredos, intrigas e uma vida escondida. Graças a elas, Agnès irá reconstruir a sua história, recuperando temas como o abandono ou a adopção, os laços familiares ou o poder da amizade.

Um pai e marido violento, um treinador de futebol abusador ou a tragédia que envolveu a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial são pivôs de um enredo onde realidade e ficção se combinam de forma sensível e envolvente. A escrita recorre a uma “montagem” na qual personagens e episódios do passado, trechos dos filmes de Agnès ou as longas horas de gravações de Colette se entrelaçam. A repetitividade da estratégia narrativa irá afectar de forma irremediável a fluidez do romance. À beira do fim, acontece aquilo que se esperava, o verdadeiro golpe de asa do livro a não passar de uma queda desamparada, levando o leitor a não dar por totalmente bem empregue o tempo investido nas mais de quinhentas páginas que compõem o livro. E, no entanto, o brilho da personagem de Colette perdura com uma força extraordinária, dando nota de uma mulher lutadora, sacrificada, humilde e generosa, que tudo fez em prol da felicidade dos outros.

No seu todo, “Querida Tia” combina mistério, drama familiar e factos históricos, permeados de forma subtil com referências à música e ao cinema. Valérie Perrin faz uso da sua habilidade como contadora de histórias para dar voz a personagens muitas vezes invisíveis, iluminando vidas marcadas pelo silêncio e pelo esquecimento. Entre as linhas, discute-se a solidão, a infância ferida e os vínculos do coração que transcendem o sangue, num romance que, apesar das suas fragilidades, tem para oferecer momentos de leitura cativantes e comoventes. A escrita sensível e humana da autora consegue envolver o leitor, fazendo com que, mesmo diante dos tropeções narrativos, o prazer da leitura prevaleça. Para os incondicionais de Perrin, o livro terá o condão de frustrar, de certo modo, as expectativas, mas sem a força suficiente para os afastar de um legado onde predomina, ainda e sempre, “A Breve Vida das Flores”.

domingo, 31 de agosto de 2025

CINEMA: "Eddington" | Ari Aster



CINEMA: “Eddington”
Realização | Ari Aster
Argumento | Ari Aster
Fotografia | Darius Khondji
Montagem | Lucian Johnston
Interpretação | Joaquin Phoenix, Deirdre O'Connell, Emma Stone, Michael Ward, Pedro Pascal, Cameron Mann, Luke Grimes, Matt Gomez Hidaka, Amélie Hoeferle, Clifton Collins Jr., William Belleau, Austin Butler, Landall Goolsby, Elise Falanga, Rachel de la Torre
Produção | Ari Aster, Lars Knudsen, Ann Ruark
Estados Unidos, Finlândia | 2025 | Comédia, Drama, Western | 148 Minutos | Maiores de 16 Anos
UCI Arrábida 20 – Sala 10
29 Ago 2025 | sex | 16:05


“Eddington” é o mais recente mergulho de Ari Aster na sua teia recorrente de géneros desconfortáveis, que tanto provocam o espectador como o fazem soltar uma boa gargalhada no momento mais inoportuno. A acção decorre em 2020, no auge da pandemia, numa América dilacerada por divisões políticas, desordem social e convulsões raciais. No meio desta paisagem tumultuosa, a pequena cidade de Eddington torna-se palco de um embate ideológico entre um xerife anti-vacinas e o progressista edil local, obcecado por máscaras P2 e acérrimo defensor de distanciamentos sociais e afins. Aster faz uso deste microcosmos para parodiar os extremos da sociedade americana contemporânea, recorrendo a uma direcção que mistura o neo-western dos irmãos Coen com o absurdo das suas obras anteriores, das quais “Beau tem Medo” é o mais recente exemplo. O humor negro emerge entre tiroteios brutais e teorias da conspiração que, embora ridículos, soam perigosamente verosímeis — como se o próprio delírio pandémico se tivesse tornado uma linguagem universal.

Se há algo que distingue “Eddington” dos muitos filmes inspirados pelo confinamento, é a forma como Aster não se limita ao trauma doméstico e opta, antes, por expor o caos social nas ruas. A escolha do elenco é, aqui, meio caminho andado para o sucesso. Num papel que subverte o seu habitual registo de anti-herói introvertido, Joaquin Phoenix interpreta um xerife derrotado mas teimosamente combativo, enquanto Pedro Pascal encarna com brilhantismo um político “woke”, cuja irritação pueril acaba por alimentar os momentos mais cómicos do filme. O confronto entre ambos culmina com duas lambadas, ao som de “Firework”, de Katy Perry. Emma Stone surge como a esposa espiritualista do xerife, num papel um tanto desperdiçado. Apesar de certos desvios narrativos e personagens que pouco acrescentam à trama narrativa, há um charme evidente nesta galeria de figuras desajustadas, como se todas vivessem numa versão demente do nosso próprio mundo.

Do ponto de vista crítico, “Eddington” é uma obra imperfeita, por vezes dispersa, como que perdida entre a sátira mordaz e a farsa mais descontrolada. Mas essa instabilidade narrativa acaba por espelhar com fidelidade o estado de espírito de 2020, um ano em que a realidade, em muitos aspectos, ultrapassou a ficção. Aster não acerta sempre — a sua tentativa de explorar o dilema moral de um polícia negro após o assassinato de George Floyd peca por superficial —, mas não se pode negar a sua ambição: construir um universo em que a pandemia é pano de fundo para uma radiografia cuidada das fracturas sociais. Ao rejeitar o sentimentalismo fácil ou o drama intimista típico das narrativas COVID, o realizador oferece-nos uma tragicomédia irreverente, cujos méritos fazem dela tudo menos consensual. Aster continua, assim, a posicionar-se como um dos autores mais provocadores da actualidade, fiel à sua missão de dividir plateias em vez de as confortar. E num mundo pós-pandémico, onde o absurdo parece ter vindo para ficar, talvez “Eddington” seja mesmo o reflexo do momento presente — imperfeito, desconfortável e estranhamente real.

sábado, 30 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO: “Re/Descobrir Helena Cardoso”



EXPOSIÇÃO: “Re/Descobrir Helena Cardoso”
Curadoria | Maria Bruno Néo, Luís Mendoça
Conhecer, Mapear, Divulgar
Biblioteca Pública Municipal de Gaia
17 Jul > 27 Set 2025


Será preciso imaginar Portugal há décadas atrás, em contexto totalmente adverso, em circunstâncias desfavoráveis a toda e qualquer dinâmica disruptiva, para melhor se perceber e valorizar o trabalho da designer e artista Helena Cardoso. Ainda hoje, quando as condições são positiva e radicalmente distintas, a obra de Helena Cardoso seria sempre inovadora, especial, ímpar. Como uma obrigação, uma reparação histórica, a exposição “Re/Descobrir” surge como uma forma de divulgar e valorizar a vida e obra de uma artista genial, inaugurando uma série de exposições que se pretende vasta. Integrada no projecto “Conhecer, Mapear, Divulgar”, iniciativa dos designers e investigadores Maria Bruno Néo e Luís Mendonça, a mostra está patente ao público na Biblioteca Pública Municipal de Gaia e reúne o fruto de mais de 40 anos de trabalho, entre artefactos produzidos em diferentes técnicas e materiais e textos e fotografias de Marta Ribas de um vasto conjunto de municípios do Norte de Portugal onde Helena Cardoso desenvolveu a sua obra.

Tal como aconteceu com outros criadores, também no caso de Helena Cardoso a atenção ao seu trabalho foi escassa. Ser muIher, viver arredada dos grandes centros, não pertencer aos círculos de influências, não alinhar pelo mais fácil... terão sido, lamentavelmente, factores de peso. Assim, esta reparação é como um arregaçar mangas com implicações no pesquisar, mapear, confrontar, estudar, contextualizar, organizar, reflectir, divulgar, contagiar, inspirar, praticar. A obra de Helena Cardoso é fruto de décadas de colaboração com artesãos e artesãs de locais diversos; é uma obra extensa e multifacetada. Na joalharia, no vestuário ou no brinquedo, a artista enriqueceu o panorama estético de forma subtil e singular. As suas ideias, projectos e procedimentos revelaram-se inovadores não apenas em benefício dos artefactos, mas também na solidariedade com as pessoas. A sua dinâmica transformou vidas. Graças a ela, muitas mulheres terão conseguido mitigar dificuldades, adquirir bens essenciais, dispor de algumas economias para garantir melhores condições de vida à família, aos filhos.

“Re/Descobrir Helena Cardoso” reflecte também um dos conceitos presentes na obra da designer: A Reutilização, conceito cada vez mais presente nas actuais agendas de sustentabilidade. Todo o suporte expositivo foi conseguido com materiais reutilizados, em que quase todos tinham chegado ao fim das suas vidas, com a colaboração de empresas locais e do município de Vila Nova de Gaia. O resultado é admirável, de uma beleza ímpar, que nos mostra, sobretudo, que é possível criar trabalho relevante e inovador sem depender dos grandes centros como Lisboa, Paris, Milão ou Londres. É possível integrar, apoiar comunidades afastadas do circuito cultural, estigmatizadas, afectadas pelas transformações e suas falências ou sistematicamente excluídas de oportunidades. É possível produzir um trabalho contemporâneo, assente na dupla valorização do tradicional e do industrial, do local e do universal. E que é possível planear colaborações interdisciplinares com pessoas mantendo e valorizando o seu saber, as suas raízes, as suas famílias, os seus anseios. Basta para tal que haja intenções claras, metodologias consequentes, agendas articuladas, procedimentos respeitáveis. Em tudo isto, o trabalho aqui em causa foi e é exemplar.

Helena Cardoso, nascida na cidade do Porto em 1940, é uma designer e artista cuja trajetória se entrelaça profundamente com a valorização da tradição têxtil e a reutilização consciente de materiais. Desde os anos 1980, tem mantido um compromisso constante com o trabalho ao lado de mulheres em regiões menos favorecidas do Norte de Portugal, como Relvas, Bucos e outros centros comunitários, através de projectos promovidos pela Comissão para a Igualdade e Género – anteriormente Comissão da Condição Feminina. Nesse contexto, fundou e promoveu iniciativas como os grupos “Contra o Frio” (relacionados com a lã), “Capuchinhas” (burel) e “Lançadeiras” (linho). A sua intervenção ultrapassa a mera transmissão de técnicas: tem sido uma ponte entre saberes ancestrais e olhares contemporâneos, conferindo dignidade, autonomia e inovação às artesãs envolvidas.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Por Caminhos de Santiago" | Vítor Rocha Santos



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Por Caminhos de Santiago”,
de Vítor Rocha Santos
Mosteiro de São Salvador de Grijó
26 Jul > 31 Ago 2025


“Quando começámos a peregrinação, eu achei que tinha realizado um dos maiores sonhos da minha juventude. Tu eras para mim o bruxo D. Juan, e eu revivia a saga de Castañeda em busca do extraordinário. Mas tu resististe bravamente a todas as minhas tentativas de transformar-te em herói. Isto tornou muito difícil o nosso relacionamento, até que entendi que o Extraordinário reside no Caminho das Pessoas Comuns. Hoje em dia, esta compreensão é o que possuo de mais precioso na minha vida, permite-me fazer qualquer coisa, e irá acompanhar-me para sempre.
Paulo Coelho, in "O Diário de um Mago" (Ed. 11x17, Outubro de 2010)

A peregrinação a Santiago de Compostela é, para muitos, uma jornada profundamente transformadora. Muitas descrições falam do Caminho como um reencontro com o “sagrado”, entendido sobretudo de forma religiosa, mas também filosófica ou simplesmente humana. Mais do que uma simples caminhada, trata-se de um percurso interior marcado pela espiritualidade e emoção, capaz de confrontar o peregrino com os seus limites, silêncios e dúvidas. Ao longo do caminho, o sentimento é de desapego — da rotina, da pressa, da posse —, abrindo lugar a uma maior escuta de si mesmo e dos outros. A singeleza da vida na estrada, o acolhimento entre desconhecidos, o tempo de reflexão e de superação despertam sentimentos de gratidão, humildade e comunhão. No final, chegar a Compostela será o menos importante para muitos dos peregrinos, face às vivências que perduram no espírito: uma travessia que deixa marcas duradouras e o desejo de retomar o curso normal do dia a dia com um novo olhar.

Na esteira de importantes nomes da Fotografia - de Otto Wunderlich a Cristina Garcia Rodero -, Vítor Rocha Santos oferece-nos um olhar pessoal sobre o Caminho em vinte e três belíssimas imagens a preto e branco. Resultado de múltiplas incursões por diferentes “Caminhos” – da Costa, Central, Interior, da Geira e dos Arreiros e Inglês até Finisterra -, entre 2019 e 2024, “Por Caminhos de Santiago” é bem a demonstração da espiritualidade universal que envolve a experiência, num convite à contemplação, à gratidão e à paz interior. Esses sentimentos destacam-se em cada imagem, afastadas do quotidiano agitado e abertas à comunhão e ao reencontro pessoal. Com o fotógrafo, sentimos o esforço físico, a grandeza da paisagem, a lenta marcha dos peregrinos, os momentos de solidão, as emoções que se desprendem dos rostos, dos gestos e dos símbolos. Entre a emoção e a tradição, é uma história milenar que se repete a cada instante aquela que a fotografia de Vítor Rocha Santos ajuda a contar, no sublinhar da coexistência harmoniosa entre o ancestral e o contemporâneo.

Do silêncio de antiquíssimas veredas ao sussurrar do vento que acaricia as folhas de árvores seculares, “Por Caminhos de Santiago” desdobra-se em poesia, cada passo um verso, cada olhar uma estrofe. Esta exposição convida o espectador a mergulhar num roteiro autêntico de alma e pedra, o tempo diluído entre vieiras presas a um bordão, setas amarelas que guiam sem pressa e silêncios que falam mais alto do que um milhão de vozes. Rostos marcados pelo esforço, gestos de amizade inesperada, montanhas que tocam o céu, vilarejos que guardam segredos antigos e o abraço silencioso da natureza, reforçam a universalidade do Caminho e celebram a paz, a amizade e a igualdade. Faça como eu e aceite o convite de Vítor Rocha Santos a “caminhar sem sair do lugar”. Não será surpresa o sentir a poeira das estradas, o olhar manso de um burrico, a conversa animada com quem passa ou vê passar, o cansaço de mãos dadas com a esperança, o nascer de uma nova luz interna. Talvez assim o Caminho de Santiago deixe de se resumir a uma simples rota geográfica para transformar-se em metáfora profunda — a jornada que todos, em algum momento, precisamos de fazer.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "P25"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “P25”,
de Anna Costa, Beatriz Barbedo Ferro, Beatriz Neves, Carina Sousa, Catarina Paranhos, juliana Freitas, Leida Dupret, Leonardo Rodrigues, Miglé Rugėnaitė, Ricardo Moita, Telma Araújo
RAVE Escola Superior de Media Artes e Design
Centro Português de Fotografia
12 Jul > 05 Out 2025


O ciclo de estudos em Fotografia da Escola Superior de Media Artes e Design visa dotar artistas e fotógrafos de competências e capacidade crítica para desenvolver o discurso fotográfico nas suas diversas vertentes, tanto profissionais como autorais. A aposta vai no sentido de uma forte componente prática que permita a aquisição de competências técnicas e incentive a experimentação e o desenvolvimento autoral. A componente teórica visa desenvolver capacidades discursivas e críticas, bem como uma consciência histórica e política, que incentive nos estudantes uma prática inovadora e desafiante. Face às rápidas e sucessivas transformações no domínio da imagem e, por conseguinte, nos paradigmas da fotografia, a Escola oferece um leque alargado de unidades curriculares que possibilitam a transdisciplinaridade entre a fotografia e áreas que permitem a exploração de outros “media” e formatos que são fundamentais para um discurso fotográfico contemporâneo.

Tal como vem acontecendo de há uns anos a esta parte, uma selecção de trabalhos desenvolvidos pelos estudantes da licenciatura em Fotografia está agora patente ao público na sala Aurélio da Paz dos Reis, no Centro Português de Fotografia. Integrada na RAVE, mostra anual de finalistas das diversas licenciaturas da Escola Superior de Media Artes e Design do Politécnico do Porto, a exposição “P25” reflecte a multiplicidade de abordagens, numa lógica conceptual que pretende valorizar a ideia por detrás da imagem. Aquilo que podemos ver nas séries de Anna Costa, Beatriz Barbedo Ferro, Beatriz Neves, Carina Sousa, Catarina Paranhos, Juliana Freitas, Leida Dupret, Leonardo Rodrigues, Miglė Rugėnaitė, Ricardo Moita e Telma Araújo é a apropriação da fotografia como meio para refletir sobre temas que vão da à política, passando pela memória, as questões de género, a ecologia, a tecnologia e outros.

Ao olhar do visitante não escapa a poética do silêncio, da banalidade, da vivência dos lugares “corpo-a-corpo” que Leonardo Rodrigues imprime ao seu “Último Dia”. Como não escapa a zona de confluência entre o olhar comum e o científico de Beatriz Neves, em “Celsius”, onde a imagem previsível e convencional abraça uma dimensão espectral, explorando a presença invisível nas performances musicais. Catarina Paranhos mostra, em “Place of Unrest”, o retrato como ferramenta de afirmação política e reflexão sobre a condição feminina na sociedade contemporânea. Também Carina Sousa, com “Corpóreo”, pousa o seu olhar na mulher, ao encontro do corpo feminino na sua forma mais autêntica, celebrando a força e a dignidade do corpo enquanto desafia padrões de beleza que muitas vezes moldam a nossa auto-imagem. Em “The Culture and Transformation of Funeral Photography in Lithuania”, Miglė Rugėnaitė explora as mudanças culturais, históricas e tecnológicas da fotografia funerária Lituânia, outrora uma prática comum e que hoje persiste apenas informalmente, graças aos telemóveis. Isto e muito mais para ver até 05 de Outubro.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE DESENHO: "Reabilitação / Valadares" | Agostinho Santos



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Reabilitação / Valadares”,
de Agostinho Santos
Centro de Reabilitação do Norte
06 Ago > 13 Set 2025


“Mais do que tudo, esta minha exposição de desenhos “Reabilitação/Valadares”, agora em plena inauguração no Centro de Reabilitação de Valadares (CRN) é uma mostra carregada de emoção, que traduz e interpreta um período difícil, de inquietação e perturbação, que ainda não terminou, mas que felizmente está a virar a face e estes desenhos / aguarelas exprimem, ou pretendem exprimir, precisamente esta fase de recuperação e o quase regresso à normalidade.”
Agostinho Santos

Esta é uma recensão crítica “fora da caixa”. Começa num corredor onde doentes em cadeiras de rodas ou deitados numa maca aguardam a sua vez de serem avaliados. À sua volta concentram-se os acompanhantes. Agostinho Santos está entre eles, pertence ao rol dos familiares, vem com a esposa, Ilda Figueiredo, para internamento. Conheço a sua obra há alguns anos. A visceralidade do seu desenho toca-me profundamente, faz acordar o que de mais primordial e íntimo há em mim. Já me tinha manifestado acerca disso aqui no blogue, já tinha trocado com o artista um par de mensagens expressando a minha emoção, mas é a primeira vez que lhe aperto a mão. Embora o seu olhar não esconda preocupação, é o optimismo que fala mais alto. Os dias passados no hospital de agudos trouxeram boas notícias e as melhoras da Ilda são evidentes: É uma grande mulher e o seu carácter e determinação estão agora ao serviço de um processo exigente e complexo de reabilitação em múltiplas valências. Sei que ambos sabem que há muito caminho pela frente. Irei confirmá-lo no próximo mês e meio, ao longo do qual aprendi a conhecer melhor Agostinho Santos e a admirá-lo por aquilo que é.

Para Agostinho Santos, desenhar é tão importante como respirar. Com Ilda Figueiredo internada, o pintor exprime no papel o viver e o sentir de quem se vê incapacitado pela doença. Ouvida até à exaustão, a frase “um dia de cada vez” começa a reflectir-se nos desenhos que vai produzindo, espelho de um quotidiano vertido em surpresa e novidade, em relações de confiança que se reforçam no valor de cada conquista, em gestos aprimorados pela vontade e pelo querer. Irá chamar a este conjunto de desenhos “Reabilitação / Valadares”, assinalando assim um virar de página na qual reabilitação, renascimento e renovação não são palavras de circunstância. Figurativa, vincadamente alegórica, a série ganha forma, gesto, cor e vida. Incipientes, inacabados, os primeiros trabalhos reflectem o tanto que está por fazer no processo de reabilitação a muitos níveis. O contraste com os trabalhos da segunda metade da série é gritante, a cor a tomar conta do espaço, os desenhos como reflexo da vontade, da esperança e da alegria que residem num processo de luta e conquista. O resultado desta quase “residência artística” pode agora ser visto no Centro de Reabilitação do Norte, em vinte e quatro trabalhos que formam um “diário íntimo” que se expande muito para lá daquilo que o nosso olhar pode perceber. Em amor e em verdade.

Como espectros que se insinuam num quotidiano exasperadamente lento, mas seguro, a pulseira de identificação, a bomba inalatória ou a cadeira de rodas vêm lembrar aquilo de que é feito o “novo normal”. Por detrás do negro espreitam demónios, mas é o verde da esperança a falar mais alto. Nos meus trinta e cinco anos de profissional de enfermagem, sempre me tocou a fragilidade do ser humano, os imponderáveis que, num piscar de olhos, viram mundos de pernas para o ar. Olhar o doente, ver a súplica no abandono do seu olhar, a resignação face à sua dependência, o desejo de dias melhores, é experimentar o que de mais humano e íntimo há em nós. Poder apreciar uma série que retrata vivências tão intensas e profundas é mergulhar na bondade e na empatia, é perceber melhor aquilo de que somos feitos, é virar as costas ao que nos pode separar e comovermo-nos com o tanto que nos une. Na cor, no gesto e no sentimento, Agostinho Santos dá-nos uma lição de humanidade com este “Reabilitação / Valadares”. Vale a pena escutar pausadamente o que esta série preciosa de trabalhos tem para nos dizer. É na escuta do outro que o coração encontra a sua forma mais verdadeira de existir.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO: “Chantal Akerman. Travelling”



EXPOSIÇÃO: “Chantal Akerman. Travelling”
Curadoria | Laurence Rassel
MAC / CCB – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura
17 Abr > 07 Set 2025


Chantal Akerman (1950–2015) firmou-se como uma das mais singulares vozes do cinema contemporâneo, ao explorar temas como a intimidade, a solidão, o luto, as injustiças sociais e a herança familiar, muitas vezes marcados pela herança judaica, experiência do exílio e memórias do Holocausto. A sua abordagem autodidata e radical surgiu desde cedo, com “Saute ma ville” (1968), curta-metragem que realizou aos 18 anos em Bruxelas, cidade natal e matriz afetiva da sua obra. No início dos anos 1970, viveu em Nova Iorque, onde teve contacto com o cinema experimental americano, incorporando uma linguagem contemplativa do tempo e do espaço. Foi aí que amadureceu a estética que levaria a filmes como “Je tu il elle” (1974) e a aclamada obra-prima “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975), hoje considerada um marco da modernidade cinematográfica e da causa feminista, tendo sido nomeada o melhor filme de todos os tempos pela revista “Sight & Sound”, em 2022.

Chantal Akerman manteve uma carreira inquieta e multifacetada, expandindo os limites do cinema ao transitar entre géneros como o drama, a comédia, o documentário, a adaptação literária e a comédia musical. Filmes como “D’Est” (1993), “Sud” (1999) e “De l’autre côté” (2002) formam uma trilogia que observa muros, fronteiras e o sofrimento humano com um olhar poético e político. Desde meados da década de 1990, a cineasta também se destacou no campo das artes plásticas, criando cerca de 17 instalações de vídeo exibidas em importantes museus, revelando novas formas de relação com a imagem, o som e o texto. A exposição “Chantal Akerman. Travelling” reflecte esta trajectória complexa, apresentando filmes, instalações, documentos de produção e arquivos inéditos da Fundação Chantal Akerman, conservados pela Cinemateca Real da Bélgica. A mostra sublinha ainda o papel central da escrita na sua obra, revelando Akerman como uma autora que cruzou cinema e literatura com igual profundidade.

Organizada em diferentes núcleos temáticos e cronológicos, a exposição começa por Bruxelas, lugar de origem e primeira experimentação artística, e percorre geografias diversas — da Europa de Leste aos desertos norte-americanos —, reflectindo a amplitude do olhar da cineasta. Entre os destaques estão obras pouco conhecidas como “Hanging Out Yonkers” (1972), bem como as suas instalações mais emblemáticas, de “D’Est, au bord de la fiction” (1995) a “Now” (2015). A última sala reúne arquivos de produção, materiais de trabalho da Paradise Films — produtora fundada por Akerman — e testemunhos da sua rede de colaboradores, oferecendo uma perspetiva íntima sobre os processos criativos da artista. O programa associado à exposição, que inclui sessões na Cinemateca Portuguesa e eventos no MAC/CCB, convida o público a (re)descobrir uma obra radical e multifacetada, cuja influência permanece viva entre cineastas e artistas contemporâneos. Akerman, que faleceu em Paris em 2015, deixou um legado inestimável, marcado por uma sensibilidade profundamente pessoal e um compromisso inabalável com a liberdade artística.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO: “Lápis de Pintar Dias Cinzentos”



EXPOSIÇÃO: “Lápis de Pintar Dias Cinzentos” 
Obras da Colecção de Arte Fundação EDP
Curadoria | Margarida Almeida Chantre
MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia
26 Jun 2025 > 19 Jan 2026


Num dos espaços do museu, onde se encontram reservadas as obras da Colecção de Arte Fundação EDP, existe uma grade onde estão penduradas quatro molduras. Uma delas apresenta um pequeno cartão, pautado, em que se pode ler datilografado: “Quando me deste um lápis de cor – vermelho – que escrevia a cor-de-rosa um lápis de pintar dias cinzentos”. Este cartão faz parte de uma obra de 1973, de Carlos Nogueira, que deixou usar o título como elemento instigador desta exposição. E esta generosidade foi tão grande que emprestou uma obra para completar o conjunto da sua sala, além de ter trazido uma outra mais recente, de 2024, para ser apresentada pela primeira vez no espaço da Central Tejo, onde pode ser vista a exposição. E lápis… Mais de 2000 lápis que conseguiu juntar para “pintar” uma sala de todas as cores. “Lápis de Pintar Dias Cinzentos” quer celebrar a generosidade dos artistas, a sua capacidade de ver o mundo com olhos atentos e sensíveis, de construir sentidos a partir do invisível, de dedicar tempo, corpo e alma à criação, mas sobretudo de abrir espaços de reflexão, emoção e beleza que enriquecem a vida dos que os experienciam.

A Colecção de Arte Fundação EDP, iniciada em 2000 com o propósito de abranger as várias gerações de artistas portugueses a partir dos anos 60 do século XX e de forma a incluir as várias disciplinas da criação artística até à contemporaneidade, é hoje constituída por mais de 2540 obras de mais de 345 artistas. Destas foram escolhidas 42 obras de 21 artistas para preencher as seis salas do espaço do Cinzeiro 8, algumas das quais são apresentadas ao público pela primeira vez. Buscou-se na colecção obras que revelassem esta generosidade capaz de transformar momentos e, às vezes, até dias. Outras há, como um simples cartão, que podem ser como um porto de abrigo nos dias em que temos dificuldade de ver outras cores para além do cinzento. Do que nos falam certas obras, o que nos dizem, o que queremos ver? O diálogo é sempre cúmplice. Quatro salas são dedicadas a quatro artistas individuais: A Carlos Nogueira, o incitador do pensamento da exposição; a Maria José Oliveira, com a sua poesia intimista de trabalhar o corpo; a Tomás Colaço, com o mergulho na obra; a Luísa Correia Pereira, com a convocação do mundo interior.

Nas outras salas juntam-se conversas que reconhecemos nos artistas: a casa como paisagem de abrigo em Maria Pia Oliveira e Rita Magalhães; a música como linguagem do mundo em Jorge Pinheiro e José Loureiro; o poder de uma declaração de amor em Pedro Gomes; a alquimia da metamorfose em Rodrigo Oliveira; o lugar sagrado em Helena Almeida e Maria Beatriz; a natureza e claridade em Manuela Marques e Eduardo Gageiro; a cor e a revelação da arte em Ana Pérez-Quiroga e Jorge Martins; a medida do mundo em Luísa Cunha e Eduardo Batarda; o cosmos em Ângelo de Sousa; a alegoria do conhecimento em Tiago Baptista; e o tempo em René Bertholo. Todas estas obras falam de nós. E, assim, aproximam-nos dos outros. As obras de arte revelam como a arte pode ser uma ferramenta poderosa para desafiar e transformar as nossas percepções, muitas vezes de maneiras que não esperamos. Ao observá-las, cada um vai interpretá-las a partir das suas próprias vivências. E isto revela mais de nós mesmos do que talvez nos apercebamos à partida. Resta o convite a que nos deixemos levar por esta descoberta.

domingo, 24 de agosto de 2025

LIVRO: "Mudar de Ideias" | Aixa de la Cruz



LIVRO: “Mudar de Ideias”,
de Aixa de la Cruz
Título original | “Cambiar de Idea” (© 2019, Aixa de la Cruz)
Tradução | Pedro Rapoula
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Junho de 2025


“Depois de escrever as minhas confissões, pensei que não tinha mais nada de substancial para recordar, mas continuo a resgatar cenas que estavam intocadas, sem análise recente, como a primeira entrevista que me fizeram aos dezanove anos, publicada num grande meio de comunicação social com todo o tipo de pormenores embaraçosos sobre a minha vida pessoal, ou o moderador que me apresentou numa mesa-redonda fazendo piadas sobre as minhas pernas. No dia seguinte, recusei um convite do pelouro da igualdade da Câmara Municipal para participar num colóquio sobre o machismo no mundo literário. Foi uma das poucas vezes em que a indignação se sobrepôs à minha necessidade de ser educada a todo o custo, e pronunciei-me com veemência contra estes dramas de vitimização. Eu não tinha sofrido qualquer tipo de tratamento discriminatório devido ao meu diagnóstico de género. Quando muito, tinha beneficiado com isso, afinal será que teria sido publicada tão cedo se não fosse uma jovem moderadamente atraente? Tinha a certeza de que não.”

De camionistas e rufias, assédio e violações, lesbianismo e servos do Estado Fálico, mas também de dúvida e culpa acumulada, se faz “Mudar de Ideias”, livro de Aixa de la Cruz, escrito em 2019 e que chega agora às nossas livrarias. Entre biografia, ensaio e auto-ficção, o livro leva-nos a percorrer um caminho que é o da autora, repleto de referências pessoais que não pretendem alimentar tendências voyeuristas ou polémicas estéreis, antes são ponto de partida para a reflexão e o auto-questionamento. Um livro escrito em modo urgente, os assuntos muitas vezes deixados pela metade ante a emersão de novas ideias, novos traumas e mágoas, novas perdas e ganhos. Do Hospital de Basurto, onde uma amiga convalesce de um grave acidente de viação, à história de um casamento falhado, “Mudar de Ideias” vai ao osso dos problemas estruturais que intoxicam as nossas sociedades, partindo da célula familiar - “o que fazer com o legado dos nossos pais, quando é um legado que humilha mas é o único que nos resta?” - e estendendo-se à violência sexual na prisão iraquiana de Abu Ghraib, à onda de feminicídios na cidade mexicana de Puebla ou à exploração sexual de mulheres oriundas da Roménia rural.

Em “Mudar de Ideias”, o leitor é confrontado com uma exposição vincada da intimidade, um pouco à semelhança do que podemos encontrar em Virginie Despentes, por exemplo, mas filtrada por uma linguagem mais ensaística, que dialoga com o feminismo contemporâneo, os estudos de género e a cultura millennial. Se em Despentes a raiva é motor narrativo, em de la Cruz a tensão vem da dúvida, da análise constante, do entrelaçamento entre memória pessoal e construção discursiva. Incisiva e combativa, a autora oferece uma contribuição relevante para o pensamento feminista graças a uma escrita como espaço de exposição e problematização do corpo, do trauma, da sexualidade e da identidade, temas que não são apenas representados, mas activados como zonas de conflito e resistência. Há uma clara recusa em idealizar as mulheres como figuras moralmente redentoras ou essencialmente vulneráveis. São sujeitos contraditórios, muitas vezes encurralados no próprio corpo, marcados por experiências de violência em sociedades vincadamente patriarcais, mas também por uma lucidez crítica que subverte os papéis tradicionais atribuídos ao feminino.

“Mudar de Ideias” é a prova de que um livro não tem de ser forçosamente sórdido, chocante ou sensacionalista quando é de experiências pessoais contrárias a uma moral conservadora que se trata. Íntima e política, a escrita de Aixa de la Cruz desconstrói as normas de género, ao mesmo tempo que aponta o dedo às violências estruturais. Introspectiva, a sua abordagem a um conjunto de assuntos polémicos é pautada pelo desassombro, vestindo de ironia fina o desfiar de uma grande diversidade de histórias que ajudam a perceber o pensamento da autora, a sua sensibilidade, a firme posição de denúncia dos movimentos e contextos que conduzem à objectificação da mulher, mas também das contradições do “eu” feminino nas sociedades neoliberais. Reflexão pessoal, intertextualidade e análise sociocultural, aliam-se ao rigor, solidez e inteligência, abrindo-se em confissão e problematização num caminho evolutivo cada vez mais empático e próximo do outro. Entre o íntimo e o político, entre o eu e o todo, “Mudar de Ideias” é um grande livro, cujo valor de representação do feminino se abre num campo activo de inquietação, combate e criação.

sábado, 23 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: “O Que nos Olha” | Miriam Cahn



EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: “O Que nos Olha”,
de Miriam Cahn
Curadoria | João Pinharanda e Sérgio Mah
MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia
26 Jun > 27 Out 2025


A prática artística de Miriam Cahn (Basileia, 1949) desenvolve-se num campo expandido que inclui o desenho, a pintura, a fotografia, o vídeo, a performance e a instalação, sempre a partir de uma abordagem intensamente física, ética e política. Fortemente influenciada pelo pensamento feminista das décadas de 1970 e 1980, Cahn articula o corpo como lugar de resistência e subjectividade, questionando os regimes de representação associados ao feminino. As suas figuras, frequentemente nuas, grávidas, a sangrar ou em trabalho de parto – temas ainda tabu na história da arte ocidental – confrontam directamente o olhar do espectador, desafiando o legado voyeurístico que tem historicamente objectificado o corpo da mulher. A sua linguagem visual, marcada por traços rápidos, cores vibrantes ou enigmáticas, e figuras ambíguas e espectrais, constrói um imaginário visceral que denuncia a violência simbólica e material exercida sobre os corpos subalternizados.

Nos últimos anos, o seu trabalho tem vindo a alargar o foco temático e a reforçar a sua dimensão política, abordando questões como o abuso sexual, a guerra, a migração forçada, o racismo e a violência sistémica. As pinturas mais recentes de Miriam Cahn evocam gestos de dominação – como pisar, vergar ou violentar –, revelando um mundo onde o corpo é, simultaneamente, testemunha e campo de batalha. Um exemplo contundente é a obra “Fuck abstraction!” (2007), criada na sequência das imagens divulgadas do massacre de Bucha, na Ucrânia. Nela, a artista retrata o uso da sexualidade como arma de guerra, expondo uma cena de brutalidade entre duas figuras masculinas, onde a desumanização do opressor e a fragilidade do oprimido ilustram, com crueza, a obscenidade moral da violência. Recusando a neutralidade estética ou formal, Cahn transforma o acto de pintar numa resposta activa e combativa ao horror contemporâneo, propondo a arte como veículo de denúncia, luta e resistência.

Ao longo de mais de quatro décadas, Cahn tem vindo a construir uma obra coerente e profundamente comprometida, que continua a desafiar normas culturais, políticas e visuais, abrindo espaço para um olhar mais consciente, mais humano – e, por isso mesmo, mais incómodo – sobre o nosso tempo. “O Que nos Olha” é a primeira exposição individual da artista em Portugal, reunindo obras produzidas entre 1978 e 2024. Pintura, desenho, escultura, fotografia e vídeo articulam-se num percurso retrospectivo, onde a montagem – concebida pela própria artista – assume um papel autoral. A exposição afirma a singularidade de Miriam Cahn no panorama da arte contemporânea internacional, destacando a sua capacidade de interrogar criticamente os limites da representação e da linguagem artística. O seu trabalho não visa o deleite estético, mas a inquietação: convoca o espectador a confrontar-se com a violência do mundo e com a sua própria posição face à dor, à injustiça e à devastação.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO: “31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim”




EXPOSIÇÃO: “31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim”
Várias artistas
Curadoria | Patricia Mayayo
MAC / CCB – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura
27 Fev > 07 Set 2025


Peggy Guggenheim afirmou ser, ela própria, uma obra de arte — uma declaração que traduz não apenas a sua personalidade irreverente, mas também o seu contributo ímpar para a história da arte do século XX. Oriunda de uma família abastada e herdeira de uma fortuna após a morte prematura do pai no naufrágio do Titanic, Guggenheim construiu um percurso autónomo e singular. Ao decidir abandonar os estudos, estabeleceu-se em Paris nos anos 1920, onde se inseriu no ambiente artístico e boémio da cidade, travando contacto com figuras como Marcel Duchamp e Man Ray. Começou, então, a coleccionar obras de artistas que viriam a tornar-se centrais na história da arte moderna, como Salvador Dali e Piet Mondrian. A sua paixão pelo coleccionismo levou-a a abrir, em 1938, a galeria “Guggenheim Jeune”, em Londres, onde promoveu a arte surrealista e abstracta. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, transferiu-se para Nova Iorque, onde fundou, em 1942, a galeria “Art of This Century”, espaço determinante para a afirmação da arte moderna nos Estados Unidos.

A sua actividade como coleccionadora e mecenas foi marcada por uma visão vanguardista e por um forte sentido de missão cultural. Impulsionada por uma relação pessoal e profissional com Max Ernst, um dos seus muitos amantes e artistas patrocinados, Guggenheim desempenhou um papel crucial na divulgação de movimentos como o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, ao mesmo tempo que apoiava artistas então emergentes, como Jackson Pollock. Contudo, um dos aspectos mais notáveis da sua acção foi o apoio pioneiro às mulheres artistas, numa época em que o reconhecimento feminino no campo das artes era escasso. Em 1943, organizou a exposição “Exhibition by 31 Women”, concebida em colaboração com Marcel Duchamp, André Breton e Max Ernst, que deu visibilidade a obras de artistas norte-americanas e europeias num contexto dominado por uma visão patriarcal da produção artística. Esta iniciativa, hoje reconhecida como um marco na história da arte no feminino, destacou-se pelo critério curatorial informado, ao mesmo tempo estético e político.

Após encerrar a sua galeria nova-iorquina em 1947, Guggenheim instalou-se definitivamente em Veneza, onde fundou a sua própria colecção no Palazzo Venier dei Leoni, hoje um museu de referência. Rodeada pelas suas obras e pelos seus catorze cães, consolidou uma posição enquanto figura incontornável da história da arte moderna, não apenas pelo acervo que reuniu, mas pelo papel disruptivo que desempenhou no reconhecimento de artistas e linguagens até então marginalizadas. Este legado encontra expressão na exposição actualmente patente no MAC / CCB - – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura, em Lisboa, intitulada “31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim”. Recuperando a intenção original da coleccionadora, a mostra está organizada em quatro núcleos temáticos — “O ‘Eu’ como Arte”, “Bestiários”, “Estranhamente Familiar” e “O Caminho do Meio: Linguagens da Abstracção” — que abordam aspectos relevantes da criação feminina, nomeadamente a autorrepresentação, a iconografia animal e a apropriação de géneros tradicionais como a paisagem ou a natureza-morta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Neorrealismos ou a Politização da Arte em Júlio Pomar”



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Neorrealismos ou a Politização da Arte em Júlio Pomar”,
de Júlio Pomar
Curadoria | Afonso Dias Ramos, Mariana Pinto dos Santos
Atelier-Museu Júlio Pomar
10 Jul > 02 Nov 2025


Júlio Pomar destacou-se como uma das figuras centrais do neorrealismo português, movimento artístico e literário associado à resistência ao regime fascista. Para Pomar, o neorrealismo não era um mero estilo estético, mas uma atitude crítica e transformadora, alinhada com o ideal de “cultura integral do indivíduo” defendido por Bento de Jesus Caraça. Neste sentido, acreditava que a revolução e a liberdade só seriam possíveis através do acesso à cultura, onde a arte, a literatura e o pensamento político se revelam instrumentos fundamentais da liberdade e da revolução. Durante os anos 1940 e 1950, realizou algumas das suas obras mais conhecidas e marcantes no contexto de resistência ao fascismo, como “Almoço do Trolha”, “Gadanheiro”, “Os Carpinteiros” ou “Marcha”, utilizando também meios como a gravura e a pintura mural, valorizados pelos neorrealistas pela sua acessibilidade e força comunicativa.

Júlio Pomar refletiu ao longo da vida sobre a relação entre arte e política, não só em entrevistas e textos críticos, como também reavaliando os desafios históricos e contemporâneos à liberdade. Em 1942, já defendia a necessidade de dar voz aos artistas como agentes de mudança social e em 1945 assumia o compromisso de retratar “a realidade total”, incluindo o desagradável e o marginal. A partir dos anos 1950, Pomar iniciou uma viragem formal na sua prática artística. O seu trabalho tornou-se mais gestual e, nos anos 1960, incorporou influências da Pop Art, abrindo-se a novas experiências estéticas e técnicas. No entanto, esta evolução formal nunca significou o abandono do compromisso político. Pelo contrário, Pomar integrou a crítica social e política nas novas linguagens que adoptou, num percurso que reflete uma constante experimentação.

“Neorrealismos ou a Politização da Arte em Júlio Pomar” procura, justamente, destacar essa multiplicidade de abordagens e a complexa relação entre arte e política ao longo de mais de cinquenta anos de criação, apresentando um conjunto diverso de obras oriundas de colecções públicas e privadas, incluindo pinturas, desenhos, cartazes ilustrações e assemblages, nomeadamente os desenhos feitos na prisão de Caxias em 1947, cartazes do pós-25 de Abril e ilustrações para “A Selva”, de Ferreira de Castro. Além do valor visual das obras, a exposição sublinha a relevância do pensamento de Pomar sobre o papel da arte na sociedade. Desde cedo, o artista refletiu sobre a representação do real, a responsabilidade do artista e a arte enquanto acção vital em diálogo com o mundo. Ao longo do tempo, reavaliou os combates travados contra a ditadura e recontextualizou-os face ao desafio de defender a liberdade e a democracia. A mostra convida, assim, a uma leitura plural e actual da sua obra, reafirmando o lugar da arte como espaço de resistência, reflexão e intervenção.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Lisboa Düsseldorf Faces” | Ralf Schilberg, Rui Soares Esteves



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Lisboa Düsseldorf Faces”,
de Ralf Schilberg e Rui Soares Esteves
Curadoria | Lúcia Saldanha
Museu Nacional de Arte Contemporânea
12 Jul > 05 Out 2025


Pode o contacto diário com a diversidade cultural ou a arquitetura moderna fazer com que as pessoas estejam mais expostas a tendências? Hábitos e gostos ligados à funcionalidade, à natureza ou à tradição podem ter expressão na forma como as pessoas se apresentam? As grandes cidades tendem a impor um ritmo de vida mais acelerado, o que pode contribuir para uma maior ansiedade e impaciência, mas também para o desenvolvimento de resiliência e eficácia nos seus habitantes. Aquelas com bons transportes públicos ou ciclovias são um incentivo a um estilo de vida mais saudável, ao passo que cidades cosmopolitas tendem a fomentar a tolerância, a diversidade e um pensamento mais aberto. Cidades pequenas ou mais isoladas incentivam laços comunitários mais fortes, mas também um pensamento mais conservador ou tradicional. É com base nalgumas destas premissas, mas também na ideia de que a essência da vida não está no indivíduo per se, antes no indivíduo como um “lugar dos outros”, que “Lisboa Düsseldorf Faces” se posiciona, propondo ao visitante o desafio de encontrar a cidade por detrás da pessoa retratada.

Entre 12 de Julho e 05 de Outubro de 2025, a Iniciativa Lisboa Düsseldorf, centrada na cultura e na relação entre duas cidades – através do conhecimento, do trabalho entre cidadãos, empresas e instituições –, apresenta-se na Galeria do Museu Nacional de Arte Contemporânea e, posteriormente, no Stadtmuseum de Düsseldorf, “Lisboa Düsseldorf Faces”. Exposição de fotografia a preto e branco, nela dois fotógrafos de diferentes percursos, Ralf Schilberg, retratista alemão, e Rui Soares Esteves, fotógrafo de moda português, captam, estética e livremente, a substância das suas próprias cidades, respetivamente, Düsseldorf e Lisboa. Entre rostos e ruas, propõem uma leitura visual das duas cidades. No papel de observadores que produzem imagens, fazem, separadamente, uma abordagem e um reconhecimento dos territórios, suscitando a curiosidade, as interrogações e o pensamento sobre pessoas e lugares. Lugares que, citando Cláudio Magris, “significam sobretudo pessoas, mais ou menos familiares ou quase desconhecidas, mas ainda assim testemunhas, embora parciais, da nossa existência”.

Num diálogo de natureza plural, Ralf Schilberg e Rui Soares Esteves criam duas manchas expositivas complementares – “Lisboa Faces” e “Düsseldorf Faces”, baseando-as em identidades e alteridades, profissões e comunidades. O exercício de contrastar duas realidades específicas permite perceber que a cidade não determina, mas influencia fortemente quem somos e como nos apresentamos. Ela molda-nos subtilmente nos hábitos, gostos, valores e até na estética. Embora generalizações possam simplificar realidades complexas, é possível observar tendências distintas: Um lisboeta pode vestir calças de linho, camisa solta, óculos de sol e sandálias, num visual confortável e de inspiração mediterrânica. Já um habitante de Düsseldorf pode preferir jeans escuros, blazer e ténis de marca, sem exageros, mas com atenção aos detalhes. Lisboa parece moldar pessoas mais descontraídas, com uma estética que mistura tradição, sol e improviso criativo. Düsseldorf molda cidadãos mais orientados para a eficiência, com uma aparência cuidada, mas sóbria. Ambas são cidades vibrantes, mas criam culturas urbanas e visuais distintas, e isso influenciará directamente o modo de vestir, de se comportar e até de pensar.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO: “Cartazes sem Censura | 25 de Abril e a Revolução do Verão Quente”



EXPOSIÇÃO: “Cartazes sem Censura | 25 de Abril e a Revolução do Verão Quente”
MAC / CCB – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura
24 Abr > 28 Set 2025


Lisboa, 1976. Entre os quiosques de jornais com manchetes febris e as conversas agitadas nas esquinas, uma nova pele cobria os muros da cidade de Lisboa, habitualmente cinzentos e silenciosos: cartazes políticos. Colados uns sobre os outros, expressavam uma nova onda de liberdade, contestação e desejo de mudança. Era a cidade a escrever a sua própria história, num turbilhão de palavras, imagens e símbolos que se acumulavam como sedimentos de uma revolução em curso. O fogo tinha passado, mas as cinzas ainda ardiam. A ditadura tinha deixado para trás um país pobre, atrasado e cinzento, mas a revolução tinha aberto as portas à vontade individual e colectiva de andar em frente. Por um lado, vivia-se um Portugal com pouco emprego e poucos meios; por outro, emergia um povo movido pelas ideias, ansioso por exprimir a sua recém-chegada liberdade de expressão e construir um novo Portugal.

Este fervilhar político era, como sempre é o caso, mais evidente nos jovens. Os jovens do pós-25 de Abril eram inquietos e impacientes, mas também portadores de um entusiasmo que só pode existir quando a História se abre num caminho desconhecido. Para muitos, a política deixou de ser uma esfera abstracta e distante, e passou a ser um código de identidade, uma forma de viver. Um desses jovens era Manuel Maltez, na época um rapaz de 16 anos e auto-declarado anarquista. A sua relação com os cartazes e com a rua é um reflexo claro do espírito daquele tempo: a cada esquina, um cartaz novo. A cada conversa, um conceito revolucionário. O mundo parecia, pela primeira vez, disponível para ser reinventado. E para Manuel, que não queria apenas assistir à mudança, mas senti-la entre os dedos, arrancar cartazes das paredes foi o seu próprio acto de arquivo e participação: o acto de preservar uma história que estava a ser escrita nas ruas.

Na década de 1970, a comunicação política era visceral, urgente e sem filtros. O design gráfico desse período refletia a efervescência ideológica da época, com cartazes impressos em serigrafia, tipografias em negrito e composições gráficas impactantes. As cores primárias - vermelho, preto e branco - dominavam, simbolizando luta, resistência e transformação. O visual era muitas vezes bruto e directo, de carácter quase artesanal, fruto da necessidade de produzir rapidamente materiais de mobilização. Estes cartazes, cuidadosamente guardados ao longo dos anos por Maltez, são testemunhos de um tempo em ebulição. Convocatórias para plenários, manifestações, proclamações de partidos e sindicatos, e slogans de resistência convidam-nos a revisitar um momento único da nossa História, transportam-nos a um Portugal que descobria a liberdade e a democracia, e oferecem-nos a oportunidade de reflectir sobre o papel da liberdade de expressão. Os cartazes tornaram-se símbolos, mas também memória material de um tempo que, apesar de parecer distante, ainda reverbera no presente.


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Time Stands Still. Fotografias, 1980–2023" | Jeff Wall



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: Time Stands Still. Fotografias, 1980–2023,
de Jeff Wall
Curadoria | Sérgio Mah
MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia
23 Abr > 01 Set 2025


Jeff Wall é uma das figuras mais influentes da arte contemporânea, sendo reconhecido pela forma como utiliza a fotografia para reflectir sobre os modelos visuais da cultura ocidental. Envolveu-se com a fotografia na década de 1960 e, em meados da década de 1970, começou a experimentar a sua nova versão de fotografia pictórica. A sua obra está profundamente enraizada na história da pintura, particularmente no conceito de “quadro” e na tradição composicional inaugurada pela perspectiva renascentista, ainda que reinventada ao longo dos séculos. Embora o seu meio principal seja a fotografia, Wall opera numa intersecção entre a pintura, o cinema, a literatura e o teatro, criando imagens cuidadosamente encenadas, planeadas e compostas, como faria um realizador de cinema ou um pintor. Muitas das suas obras desde os anos 1990 são foto-montagens, combinando múltiplas imagens para criar uma cena unificada, embora também integrem ocasionalmente fotografias documentais. Independentemente do método, Wall rejeita a objectividade do registo documental, preferindo sublinhar a dimensão subjectiva e encenada da imagem, numa prática que designa por “cinematografia”.

A singularidade da prática de Jeff Wall reside tanto na autonomia criativa de cada imagem como na sua escala. As suas fotografias, muitas delas de grandes dimensões, desafiam os formatos convencionais da fotografia artística, estabelecendo uma relação física com o observador, aproximando a escala das figuras e objectos à do corpo humano. Esta dimensão permite intensificar a percepção e evoca tradições pictóricas que vão de Velázquez a Manet ou Pollock. A partir do outono de 1977, as suas fotografias foram feitas como transparências coloridas retro-iluminadas, apresentadas em caixas de luz, muitas delas de grande dimensão, um meio identificado na altura mais com publicidade do que com arte fotográfica. Desde meados da década de 1990, Wall expandiu o seu repertório, trabalhando com impressões tradicionais a preto e branco e, mais recentemente, impressões coloridas a jato de tinta. A sua produção visual abrange tanto cenas do quotidiano como construções inspiradas na história da arte ou na literatura, abordando temas como a alienação, a pobreza, a violência, a exclusão ou a solidão. Ao fundir elementos da pintura com características da fotografia documental, Wall propõe uma redefinição radical do estatuto da imagem, criando um espaço híbrido entre o real e o fictício, onde a subjectividade do autor molda decisivamente o que é representado.

Nas suas imagens, Jeff Wall convida à contemplação do instante suspenso, frequentemente marcado por uma ambiguidade narrativa. As cenas sugerem acontecimentos em curso ou por acontecer, operando como fragmentos de histórias cujo desfecho permanece desconhecido. Este efeito de suspense – presente em obras como "Insomnia (1994), A Fight on the Sidewalk (1994) ou Parent child (2018) – introduz um sentimento de estranheza e dúvida, revelando tanto o banal como o enigmático nas situações retratadas. Através desta micrologia do instante, Wall explora a complexidade da percepção contemporânea, sublinhando a dificuldade em distinguir o visível do invisível, o real do construído. A exposição em Portugal, a sua primeira individual no país e a maior dos últimos vinte anos, reúne mais de sessenta obras produzidas entre 1980 e 2023, oferecendo uma ampla visão da evolução formal e temática do seu percurso artístico e da sua abordagem única à imagem como construção visual e conceptual. Trata-se de uma excelente oportunidade para conhecer o trabalho deste artista nascido em 1946 em Vancouver, onde vive e trabalha. Para ver até ao primeiro dia do próximo mês.