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sábado, 29 de março de 2025

CONCERTO: Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho



CONCERTO: Ensemble Vocal EPME
Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho
Direcção musical | Luís Castro, Miranda Sinani
Com | Luís Duarte (piano)
ReabilitaSons 2025
Centro de Reabilitação do Norte
27 Mar 2025 | qui | 17h30


Foi um final de tarde feliz, aquele vivido no Centro de Reabilitação do Norte na passada quinta feira. Perante um numeroso público, que encheu de alegria e sorrisos o espaço luminoso onde decorreu o evento, o Ensemble Vocal da Escola Profissional de Música de Espinho teve para oferecer um programa dedicado à voz e à expressão vocal, tanto numa vertente próxima do canto popular e, em particular, dos cânticos de trabalho, quanto numa vertente mais lírica, com abordagens a vários géneros musicais, em particular à música clássica. Integrando o ciclo “ReabilitaSons”, conjunto de cinco momentos musicais do qual este foi o segundo (depois do Combo de Jazz, no passado dia 06 de Março), o concerto juntou à vertente de saúde, pela importância das actividades deste âmbito no processo de reabilitação dos doentes, as componentes artística e educacional, reunindo um coro de quinze alunos da EPME, sob a direcção musical de Luís Castro e Miranda Sinani e com acompanhamento ao piano de Luís Duarte.

Os dois temas que abriram o concerto levaram os presentes numa viagem à Bulgária, ao encontro da sua tradição vocal e dos seus executantes, geralmente conhecidos por vozes búlgaras. “Bre Petrunko” e “Vecheryai, Rado” mostraram um conjunto de vozes de grande harmonia, capazes de transmitir as particularidades de uma música muito influenciada pela história trácia, otomana e bizantina da Bulgária, com os seus maravilhosos timbres inconfundíveis, escalas modais, ritmos irregulares e harmonias dissonantes. O momento teve o condão de conquistar o público e predispô-lo para os registos a solo ou em duo que se seguiram, com acompanhamento do piano. Numa bonita voz, Joana Pereira trouxe-nos “Heart of Stone”, um tema composto por Toby Marlow para o musical da Broadway, “Six”, viagem de cinco séculos entre a Inglaterra dos Tudor (o título remete para “As Seis Mulheres de Henrique VIII”) e os actuais ícones da pop.

Guilherme Oliveira mostrou-se convincente nas interpretações de “La Conocchia”, de Gaetano Donizetti, “Die Nacht”, de Richard Strauss e “Quero Cantar, Ser Alegre”, de Francisco de Lacerda, temas integrantes dos repertórios de alguns dos mais importantes cantores líricos do mundo e que, no Centro de Reabilitação do Norte, foram merecedores de vivos aplausos. Em crescendo, Polina Arkhanhelska interpretou, com grande segurança, “Mandoline”, de Fauré, para de seguida protagonizar, com Guilherme Oliveira, o mais aclamado momento do concerto, graças à apaixonada interpretação de “Love Unspoken”, da opereta “A Viúva Alegre”, de Franz Lehár. O coro voltou ao palco para novo tema do cancioneiro tradicional búlgaro, “Dilmano Dilbero”, as sonoridades arrebatadoras a tomarem de novo conta dos presentes. A fechar o concerto, a escolha recaiu sobre um tema da nossa tradição, o “Coro das Maçadeiras”, com a expressão corporal e a percussão a juntarem-se às vozes, num final enérgico e particularmente apelativo. Bravíssimo!

sexta-feira, 28 de março de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #93
Com | Vicente Niró, Marta Morais Miranda, Benjamim Quadros e Costa
Apresentação | Tiago Alves
150 Minutos | Maiores de 14 Anos
Escola de Artes e Ofícios
27 Mar 2025 | qui | 21:30


Além de serem nomes maiores da sétima arte, o que têm em comum Lawrence Olivier, Elia Kazan, Orson Welles ou Akira Kurosawa? A resposta está na ligação entre Cinema e Teatro, assente no grande número de filmes que realizaram e que trouxeram o palco para o grande ecrã. No Dia Mundial do Teatro, o Shortcutz Ovar quis homenagear todos os cineastas que, mais ou menos livremente, transpuseram o teatro para os seus filmes, e em particular Manoel de Oliveira, numa altura em que se cumpre uma década sobre o seu desaparecimento. O momento, assinalado com a imagem projectada do realizador, deu a escutar algumas palavras proferidas durante a entrega da Palma de Ouro de Honra de Cannes, com Oliveira a arrancar risos na plateia ao dizer “finalmente” e a confessar: “Cresci ao longo de um século, mas hoje sei que foi o cinema que me fez crescer”. Viva o Teatro. Viva o Cinema. E viva o Shortcutz Ovar que voltou a chamar à belíssima Sala Expande da Escola de Artes e Ofícios um numeroso público, numa sessão em que a casa foi o eixo à volta do qual se expandiram as três curtas do programa. Três propostas narrativas que, além de olharem a casa dos mais variados ângulos, tiveram em comum o facto de serem primeiras obras, dando a conhecer um leque de realizadores talentosos e criativos, de quem muito há a esperar no futuro.

Este segunda sessão da presente temporada teve o seu início com “T-Zero”, uma obra de imagem animada assinada por Vicente Niró. O filme acompanha o dia a dia de uma agente imobiliária que tenta persuadir os clientes a alugar apartamentos pouco maiores que caixas de sapatos, mesmo que isso signifique despejar os inquilinos que lá vivem. Em “T-Zero”, a casa é mera mercadoria, sujeita à especulação imobiliária e às leis do mercado. Aqui, a cidade é o Porto e o acelerado processo de transformação que sofre, com uma chamada de atenção para fenómenos como a gentrificação, a turistificação e a perda de identidade. Juntando a sua voz à daqueles que gritam “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, Vicente Niró trabalha uma ficção com um forte cunho documental, na qual insere um conjunto de marcas identitárias que vão dos sons da cidade e da pronúncia do norte aos edifícios emblemáticos, às ruas estreitas e às nesgas de rio que a espaços se avista. Também ele vítima da precariedade - “vivo numa casa má, mas com janelas boas” -, o realizador oferece-nos um trabalho de animação com uma forte carga simbólica, convidando o espectador a olhar uma cidade que melhora para os turistas, à custa de quem sempre lá viveu. E deixa uma interrogação: “Um destes dias, quem é que vai fazer o S. João?”

“A Casa Imaginada”, de Marta Morais Miranda, foi “o irmão do meio” da sessão. Partindo de uma ideia de confinamento, a realizadora oferece-nos a visão daquilo que a casa representa em matéria de segurança e conforto, através do que decidimos ou não guardar no seu interior. Afastando-se da casa enquanto estrutura física, o documentário faz recair a atenção sobre o quotidiano e as finas camadas que se vão acumulando nos objectos, olhando-os de um ponto de vista sentimental. Nos gestos, nos cheiros, na loiça espalhada sobre a banca, nas marcas de uma parede ou numa toalha estendida sobre a relva, as casas anteriores invadem as novas casas, tomam conta delas. Entre o interior e o exterior, o individual e o comunitário, o permanente e o transitório, “A Casa Imaginada” faz um apelo à memória no esforço de enumerar o que há de comum aos lugares onde vivemos, lembrando um passe-partout, um candeeiro, um bibelô, um ou outro livro, o lugar que ocupavam nas casas anteriores e porque razão estão aqui de novo, qual a sua dimensão emocional. Neste contexto, há uma pergunta que pode ser feita, como se de um desafio se tratasse: E se tivéssemos de abandonar rapidamente a nossa casa, apenas com uma mochila às costas, o que poríamos lá dentro?

Enfim, “Maria, Maria”, de Benjamim Quadros e Costa, o filme que encerrou a sessão, reforçou a dimensão humana do espaço da casa. Convidando-nos a viajar até Escalos de Baixo, no distrito de Castelo Branco, o realizador apresenta-nos a sua avó, Maria João Pires, e abre-nos as portas do Centro de Artes de Belgais, laboratório de experiência das artes e de aprendizagem musical, um lugar de liberdade e “um acto de rebeldia”, de acordo com a pianista. Do acto da criação à partilha de emoções e sensações que a música proporciona, tanto a quem a ouve como a quem a interpreta, “Maria, Maria” explora algumas das facetas menos visíveis de uma das mais notáveis pianistas do mundo e uma das figuras mais relevantes da cultura portuguesa. Mas se o documentário é sobre a artista e o seu espaço íntimo, há nele uma segunda camada, não menos relevante, que reside na relação entre um neto e a sua avó, nos vínculos de amizade e afecto que transcendem o tempo e conectam diferentes épocas e vivências, nos valores e princípios transmitidos, a par das histórias familiares, usos e costumes. Deste ponto de vista, o filme acaba por dizer mais sobre o neto do que sobre a avó, apesar das belas reflexões que nos deixa, uma das quais encerra o filme de forma muito bela. Não é uma interrogação, antes uma afirmação: “É preciso deixar que as coisas aconteçam”.

quinta-feira, 27 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: "Peregrinação" | Graça Morais



EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DESENHO: “Peregrinação”,
de Graça Morais
Curadoria | António Meireles
Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo
01 Mar > 01 Jun 2025


Graça Morais é uma pintora prodigiosa. Reconhece-se ao conjunto da sua obra o carácter universal e humanista dos grandes criadores, no percurso que iniciou há cinquenta anos. Este percurso cumpre-se como uma peregrinação, em que caminho e caminhante se fundem nos significados gerados e sobretudo, nas inquietações e questões desencadeadas, e nas quais, como cidadãos com espírito crítico e criativo, nos (re)conhecemos. Que exposição é esta que se abre a cada visitante que a percorra? A “Peregrinação” do título não é palavra vã e oferece-se como eixo que estrutura a selecção das obras e o desenho de uma exposição que percorre etapas significativas da vida e obra de Graça Morais. Aqui se encontram obras marcantes que se assumem como marca identitária da artista, pela visibilidade, destaque e materialização de séries temáticas ou áreas de intervenção, mas também obras com pouca exposição pública, porque seguiram outros rumos de menor visibilidade, mas que não deixam de ser, igualmente, marcantes. Umas e outras mostram a enorme capacidade de criação da pintora, rejeitando qualquer receituário de fácil produção e recepção, em favor da integridade do que encontra a ser pintado, como da própria pintura, e do que, ultrapassada a camada superficial, é mais profundo e verdadeiro.

Relacionando-se intimamente com o espaço de exposições da Casa-Museu Teixeira Lopes | Galerias Diogo de Macedo, nas suas três salas e dois andares, abre-se um percurso que tem início na Sala Aureliano Lima. Com obras que se centram nas séries “A Caminhada do Medo” e “As Sombras do Medo”, fortes nos temas que abordam, assim como na expressão do pastel seco com cores saturadas, tem destaque a obra “A Guerra”, de 2003. Graça Morais pinta os inevitáveis resultados de conflitos e guerras, que, independentemente dos campos beligerantes nos muitos espaços e tempos em que têm ocorrido, infligem os maiores danos nas franjas mais frágeis das populações, invariavelmente mulheres, crianças e idosos. Através da estreita escada, acede cada visitante com moderado esforço físico ao piso superior, à Sala Branca. Esta ascensão acompanha um percurso das obras, que dos conflitos e guerras de âmbito mundial e suas consequências das obras do piso inferior, nos traz para o contexto de território de montanha e para a construção das comunidades, sempre em diálogo com o mundo global, que parecendo-nos exterior e distante, tem na obra de Graça Morais importante reflexão sobre as conexões estabelecidas com os mundos locais. É desta conexão exemplo a pintura que abre este espaço, intitulada “20 de Janeiro de 2017”, data da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América no que foi o seu primeiro mandato.

A Sala Branca compreende importantes etapas da peregrinação-percurso que a artista nos oferece. As paisagens transmontanas, que nas obras de Graça Morais tantas vezes se materializam nos rostos e corpos de quem as trabalha numa atividade rural que ainda é centro da vida deste território, surgem fortes, maciças e assumindo a sua condição de personagens em histórias que constroem o património e identidade das comunidades. A Sala Negra, que sendo escura de luz e cor, é noite profunda no interior do nosso ser, oferece um olhar perscrutante para o interior de cada visitante. As obras expostas nesta sala são sobretudo desenhos, de construção e expressão directas, com uma crueza que não é chocante, mas tocante, porque removendo metaforicamente a camada da carne, entre fundo na estrutura do ser. A obra “Jorge III”, belíssima pintura de técnica mista com tratamento formal e cromático tão sumário quanto completo e expressivo, aborda uma situação de bullying que se verificava na aldeia da pintora, que condoendo-se da situação, agiu, tanto no sentido do seu fim, como assegurando-se da saúde e bem-estar de quem não tinha possibilidade de os ter. São obras fortes as expostas. Não hesitando abordar temas que são difíceis, partilham inquietações e questões fundas que (co)movem Graça Morais e que tocam o nosso mais íntimo, fazendo, através desta exposição, na nossa própria peregrinação, abrirem-se campos de significação e de acção que conferem uma maior importância a cada novo dia.

[Escrito a partir da Folha de Sala da exposição]

quarta-feira, 26 de março de 2025

LIVRO: "Kairos" | Jenny Erpenbeck



LIVRO: “Kairos”, de Jenny Erpenbeck
Texto original | “Kairos”, 2021
Tradução | António Sousa Ribeiro
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2024


“A ordem é o medo da desordem. Quer dizer que é medo. Também o seu medo. Será que, porventura, criou simplesmente para si uma imagem de espelho mais bela na carne jovem dela? Alguém que, na sua solidão, pode responder-lhe? Ou foi realmente por amor que partilhou tudo aquilo com ela? De todo o modo, fora ela a razão do seu banimento. Amor, amor, amor, diz ele de si para si, de súbito, a palavra parece-lhe absolutamente oca”.

Na estrutura semântica, temporal e simbólica das civilizações modernas, empregamos geralmente uma só palavra para definir a noção de tempo. Na antiga Grécia, porém, eram duas as palavras para o tempo: “chronos” e “kairos”. Enquanto a primeira se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede), Kairos possuía uma natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. A mitologia mostra-nos Kairos, “o deus do momento oportuno”, com uma madeixa de cabelo na testa, que é a única forma de ser agarrado. Vemos que a parte de trás da sua cabeça é lisa e sem cabelo, e não há onde o agarrar. Quando passa perto de nós, deslizando sobre as suas pernas aladas, percebemos que se abrem três possibilidades. Ou não o vemos, o que simplifica as coisas. Ou vemo-lo, mas não fazemos nada, o que acaba por ir dar ao mesmo. Ou então, ao passar, estendemos a mão e “agarramos a ocasião pelos cabelos”, arcando com as consequências.

“Kairos”, romance de Jenny Erpenbeck que acaba de ser galardoado com o International Booker Prize 2024, conta a história de Katharina e de como, casualmente, conheceu Hans. Ela tem 19 anos e é estudante, ele é escritor, tem 53 anos e é casado. O encontro tem lugar num dia de chuva copiosa, a 11 de Julho de 1986, num autocarro na parte de Berlim ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Passarão os anos seguintes juntos, vivendo de início uma relação apaixonada, mas que muito rapidamente irá decair a ponto de se tornar doentia. Uma relação na fronteira entre a verdade e a mentira, a obsessão e a violência, o ódio e a esperança, à semelhança dessa Estação Friedrichstrasse de onde partem os comboios com destino ao Ocidente, que Katharina vê da janela do seu apartamento e sobre a qual se interroga se não será, no rigor com que faz a ponte entre dois blocos antagónicos, capaz de conter dois tempos diferentes, dois presentes concorrentes, duas realidades quotidianas, uma servindo de inferno para a outra.

O espaço onde a acção decorre e o ambiente social e político não são puras metáforas. O declínio do regime, impulsionado pela Perestroika, era então uma realidade palpável e levantava as maiores dúvidas no Bloco de Leste. Jenny Erpenbeck socorre-se dessa verdade histórica para estabelecer um paralelismo com a vida amorosa e descrever os diferentes aspectos da felicidade através do percurso dos dois amantes. Em poucas palavras, esta é a história de um grande amor e da sua queda, mas é também a história da dissolução de todo um sistema político, o que conduz a uma questão muito simples: Como é que algo que se afigura certo e firme de início, pode vir a revelar-se tão errado? Dona de uma escrita original, extraordinariamente precisa e atenta ao detalhe, a autora mergulha o leitor na intimidade do casal, obrigando-o a seguir uma linha turtuosa de fortes emoções, sem lhe exigir que tome partidos. Nas constantes interrogações que cada um se coloca reside o fascínio do livro, ele próprio um modelo de grande literatura cuja oportunidade importa agarrar. Ainda que pelo cabelo.

terça-feira, 25 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: "Riscos Calculados" | Zé Maia



EXPOSIÇÃO DE AGUARELAS E DESENHOS: “Riscos Calculados”,
de Zé Maia
Biblioteca Municipal de Ovar
28 Fev > 26 Abr 2025


Podemos falar de uma actividade em expansão ao abordar o assunto “Desenho Urbano”, essa prática artística que vem chamando às ruas de cidades e vilas um número crescente de praticantes. Focados na arquitectura ou em cenas do quotidiano, nas pessoas que tomam o seu café numa esplanada ou num gato que dormita num beiral, os “urban sketchers”, como são universalmente conhecidos, mostram-se particularmente atentos, metódicos e expeditos na construção dos seus trabalhos, conectando mundos interiores e exteriores com engenho e arte, assim construindo narrativas de inegável valor educativo e artístico. Individualmente ou em conjunto, no respeito pelo seu próprio estilo e pelos materiais escolhidos para levar a cabo a sua actividade, replicam com minúcia as cenas que testemunham, fazendo de cada obra o registo muito especial de um tempo e de um lugar específicos. Depois, tirando o melhor partido das redes sociais, partilham os desenhos produzidos, dando a ver ao mundo verdadeiras pérolas.

José António Maia de Almeida, conhecido como Zé Maia, não será o único desenhador urbano da cidade de Ovar, mas é, seguramente, o mais carismático. Ao talento inato, alia a paixão pela sua Ovar natal, olhando com renovada dedicação a forma como a cidade cresce e se transforma. Mas o seu olhar vai mais longe, ultrapassa as fronteiras do concelho, poisa na fachada de uma igreja em Cacela Velha ou nos muros de uma fortaleza em Sesimbra, no edifício que acolhe a Biblioteca Municipal de Vouzela ou numa vista de S. Jacinto. Deixemos que a imaginação voe ao encontro do artista, sentado no seu banquinho desdobrável ali na Rua Dr. Manuel Arala, na frontaria daquele que foi o Café Paraíso e, mais tarde, a Relojoaria Ovarense. Sentemo-nos também e vejamos como poisa no colo o caderno de desenho e dispõe à mão o lápis, a borracha e a caneta com tinta indelével. O estojo com tintas de aguarela e os pincéis aguardarão a sua hora, bem como o carimbo com a efígie do seu pai, a partir de um desenho que dele fez em 1982 e que é a sua forma simples de o homenagear. Para já, vemos como nasce o esboço dos edifícios, com o desenho a lápis e os primeiros contornos a tinta carbono (indelével); de seguida, intensificam-se os contornos e o desenho ganha detalhe, cresce. Com as primeiras “aguareladas” entra-se na fase da cor e a magia acontece.

Se conseguiu imaginar Zé Maia a sós com os seus rabiscos, agora tem a possibilidade de apreciar este trecho particularmente belo de uma das ruas centrais de Ovar na exposição intitulada “Riscos Calculados” e que ocupa a galeria de exposições temporárias da Biblioteca Municipal de Ovar. Lá encontrará um conjunto de olhares sobre a nossa frente citadina, mas também de um Ovar rural, do interior da Igreja Matriz a um largo de Sande. Particularmente belos são três trabalhos que retratam outras tantas Alminhas, assim como um pormenor do final da Rua Castilho, muito próximo das traseiras da Capela dos Campos. Zé Maia manifestou desde sempre interesse pelas diversas formas de Arte, muito por influência paterna - o pai, José Augusto de Almeida, foi fundador e primeiro director do Museu de Ovar. Por essa razão, nunca descarta a possibilidade de levar à prática a sua veia criativa, nomeadamente o “urban sketching”, tendo no seu caderno, lápis, tintas e pincéis, uma companhia constante. Regressa agora à Biblioteca com este novo conjunto de trabalhos, alguns deles inéditos, e outros que, pertencendo a colecções particulares, só tinham sido divulgados através das redes sociais. Para ver até 26 de Abril.

segunda-feira, 24 de março de 2025

CONCERTO: "Divinas Perlinas" | Musurgia Ensemble & Coro CásterAntiqua



CONCERTO: “Divinas Perlinas”
Musurgia Ensemble & Coro CásterAntiqua
Direcção musical | Jorge Luís Castro
Apresentação | Ana Isabel Nistal Freijo
Com | João Francisco Távora (flauta de bisel e direção artística), Pedro Martins (guitarra barroca), Helder Sousa (cravo e direção artística)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Capela de Santo António
23 Mar 2025 | dom | 16:00


“Que idade
tem o rio?
Sua infância flui sempre menimesma
sua voz permanece azul,
água aberta, alçapão por onde o tempo perde a voz
e o imenso se faz imerso.”
Mia Couto, in “Raíz de Orvalho e Outros Poemas”

Um sonho cuja matéria se confunde com as águas de um rio. Uma vontade antiga que retira do Cáster a sua imagem e o seu modelo. Assim foi pensado e gerado o CásterAntiqua, assim viu a luz do dia o primeiro Festival de Música Antiga de Ovar. Com um programa distribuído por actividades formativas, visitas guiadas ao património religioso de Ovar, sete concertos em outros tantos dias e o trabalho comunitário que redundou na criação do Coro CásterAntiqua, o Festival revelou-se uma extraordinária surpresa, tanto pela variedade e qualidade das propostas, quanto pelo próprio desenho, a sua atenção ao detalhe, o seu empenho na criação de novos públicos através da beleza e riqueza do universo da Música Antiga. Está de parabéns o Musurgia - Associação Cultural e, muito em particular, Hélder Sousa e João Francisco Távora, directores artísticos do Festival, pela forma como souberam conduzir esta viagem de celebração da Música Antiga. Parabéns extensivos a toda a equipa que com eles colaborou e à Câmara Municipal de Ovar, parceira nesta aventura inicial e, estou certo, nas edições que se seguirão, certos do potencial da iniciativa e da sua inequívoca qualidade e excelência.

Mas é do Coro CásterAntiqua que gostaria de falar, já que foi com ele e com o Musurgia Ensemble que chegou ao fim o CásterAntiqua, num concerto intitulado “Divinas Perlinas” e que teve lugar na tarde de ontem, na sobrelotada Capela de Santo António. Foi o culminar de um trabalho desenvolvido no Museu Escolar Oliveira Lopes e que, ao longo de quatro sessões de três horas cada, reuniu cerca de três dezenas de elementos. Sob a orientação de Jorge Luís Castro, os coralistas mergulharam nos vilancicos devocionais de Gaspar Fernandes, dando-lhes vida através de uma rica e harmoniosa combinação de vozes. Abro aqui uma nota de carácter pessoal para referir, enquanto membro do coro, que se tratou de uma experiência fantástica, em primeiro lugar pela entrega e entusiasmo, paciência infinita e enorme conhecimento de Jorge Luís Castro, elevando o coro a patamares de grande qualidade. Mas também pelos momentos de cumplicidade e partilha com os demais companheiros de aventura, todos eles conhecedores, empenhados, dedicados e possuidores de vozes maravilhosas, e cujas contribuições foram determinantes para o bem sucedido resultado final.

Com as atenções viradas para Gaspar Fernandes, compositor português (?) activo na Guatemala e no México entre os finais do século XVI e primeiro quartel do século XVII, o programa integrou ainda peças de um conjunto de outros compositores, nomeadamente Diego Ortiz, Giovanni Paolo Cima e Andrea Falconiero. A viagem entre as duas margens do Atlântico fez-se, desta vez, ao sabor da língua: De um lado o português, o castelhano e o biscayno; do outro o mestiço, o índio e o Nahuatl (idioma asteca à época da conquista espanhola e falado ainda hoje por cerca de um milhão e meio de pessoas na região central do México). Com a parte instrumental a cargo de João Francisco Távora, Hélder Sousa e Pedro Martins, o concerto teve no coro o seu elemento de maior relevância, ficando demonstrado o poder alquímico de Jorge Luís Castro em juntar vozes e fazer magia. A ele se deveu a confiança e disponibilidade evidenciada pelos coralistas em “Negrinho tiray vos”, “As divinas perlinas” e “Mi niño dulce y sagrado”, peças de enorme riqueza melódica e rítmica e de uma harmonia sublime que tanto encantaram o público. Caído o pano sobre o evento, ficam momentos únicos de fruição da boa música e uma enorme vontade de podermos assistir à concretização de uma nova edição, já em 2026. As coisas boas não se podem perder e esta é daquelas coisas realmente muito boas.

domingo, 23 de março de 2025

CONCERTO: “A tre: Música para trio nas cortes europeias do séc. XVIII” | Ensemble Navis



CONCERTO: “A tre: Música para trio nas cortes europeias do séc. XVIII”
Ensemble Navis
Com | Beatriz Soares (traverso), Paola Troiano (traverso), Claudia Cecchinato (violoncelo), Sayaka Matsunaga (cravo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense
22 Mar 2025 | sab | 16:00


Quando falta apenas o concerto de encerramento do CásterAntiqua – Festival de Música Antiga de Ovar, já começa a apossar-se de nós como que uma nostalgia, uma saudade, pelo vazio tão próximo. Um balanço preliminar desta primeira edição do Festival permite concluir que o objectivo de divulgar a Música Antiga e dar a ver as particularidades de um universo vasto, que se estende no tempo e abraça uma multiplicidade de géneros e estilos, foi claramente atingido. Ao longo de dois fins de semana, assistimos ao desenvolvimento de um programa rico e variado, graças às prestações de altíssimo nível, em distintos palcos, de um apreciável número de agrupamentos de renome. Mas o CásterAntiqua fez questão de não descurar as novas correntes, lançando uma Open Call internacional com o intuito de proporcionar a um grupo de jovens músicos a oportunidade de desenvolver uma residência artística. Ao longo de seis dias, o agrupamento seleccionado, o Ensemble Navis, trabalhou um programa musical original, com a mentoria de intérpretes que integraram a agenda musical do Festival. O resultado pôde ser apreciado na tarde de ontem, no Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense.

Centrando a sua atenção no ambiente das cortes europeias do século XVIII, o Ensemble Navis - Beatriz Soares, Paola Troiano, Claudia Cecchinato e Sayaka Matsunaga - propôs uma viagem pelo centro da Europa, visitando as cortes de Luís XIV e Luís XV em França, da princesa Guilhermina, irmã de Frederico o Grande, na Prússia, de Augusto, o Forte, na Polónia ou de Nicolau Esterházy, na Hungria. Mas não apenas as cortes, também os locais de culto foram alvo da atenção do Ensemble, penetrando na intimidade de conventos e igrejas como as de S. Tomás ou de S. Nicolau em Leipzig, de Santa Catarina em Frankfurt ou da Neue Kirche (Igreja Nova) em Arnstadt. “Triosonata No.1 em sol menor, da cravista parisiense Élisabeth Jacquet de La Guerre (1665-1729), e “Pièces pour la flûte traversière op.2”, do flautista “romano” Jacques-Martin Hotteterre (1673-1763), foram as duas peças de abertura do concerto, nelas se evidenciando uma forte noção de movimento a par de uma enorme delicadeza e frescura. O quarteto deu provas da necessária qualidade interpretativa, capaz de transmitir as emoções que se desprendem de ambas as peças, sabendo pôr em diálogo os instrumentos e criando grandes expectativas quanto ao restante programa.

“Triosonata em sol maior para duas flautas e baixo contínuo”, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), foi, na sua complexidade e rigor meditativo, um dos momentos altos do concerto, tal como a peça seguinte, bem mais viva e alegre, “Musique de table: Trio em ré maior TWV 42:D5, de Georg Philipp Telemann (1681-1767), espécie de “banda sonora para um jantar”, assim ilustrada por Beatriz Soares, que fez as honras do agrupamento, com uma breve introdução inicial a cada uma das peças. Ainda que indirectamente, voltaríamos a Telemann, já que a peça que escutámos serviu de inspiração a Wilhelm Friedemann Bach, filho de Johann Sebastian Bach, para compor o seu “Trio em ré maior Fk 47”, com o qual se completou o alinhamento do concerto. Antes disso, porém, viveu-se outro momento feliz com a interpretação do “Divertimento Op.3 No.3 em ré menor”, de Anna Bon, peça de uma alegria contagiante escrita por uma compositora que foi uma “menina-prodígio” e que, aos quatro anos de idade, já estudava música no Ospedalle della Pièta, de Veneza. Os fortes e prolongados aplausos finais trouxeram com eles a recompensa de um “miminho”, “Pourquoy doux rossignol”, de Jean-Baptiste Drouart de Bousset, numa versão ornamentada por Michel Blavet, uma canção de amor e de mágoa muito bela e que se constituiu na melhor das despedidas.

sábado, 22 de março de 2025

CONCERTO: “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi” | Musurgia Ensemble & Quarto Tom Ensemble



CONCERTO: “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi”
Musurgia Ensemble & Quarto Tom Ensemble
Musurgia Ensemble | João Francisco Távora (flauta de bisel e direcção artística), Silvia Cortini (flauta de bisel), Xurxo Varela (viola da gamba), Francisco Luengo (viola da gamba), Hélder Sousa (órgão e direcção artística)
Quarto Tom Ensemble | Eva Braga Simões (tiple), Gabriela Braga Simões (alto), Luís Toscano (tenor), Nuno Mendes (baixo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
21 Mar 2025 | sex | 21:30


Corpus Christi ou Corpo de Deus é o nome dado à solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, a qual é celebrada pela Igreja sessenta dias após a Páscoa, na quinta-feira que se segue à Solenidade da Santíssima Trindade. A sua celebração pretende sublinhar a centralidade da Eucaristia na vida cristã, ou seja, “a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem”. Instituída pelo Papa Urbano IV, em 1264, pretendeu pôr cobro às heresias que colocavam em causa a presença do Cristo verdadeiro na Eucaristia, mas também responder ao movimento de devoção ao Santíssimo Sacramento que vinha a intensificar-se na prática dos fiéis. Esta festa convida os crentes a deterem-se, mais demorada e profundamente, no mistério que celebram e que é o centro vital da sua vida crente, renovando a profissão de fé em Cristo, vivo e presente neste Sacramento. O cerimonial deve culminar com uma Procissão Eucarística, de acordo com as orientações da Igreja, sendo a música parte integrante das celebrações, desempenhando um papel fundamental no que lhes acrescenta de solenidade e espiritualidade.

Menos de vinte e quatro horas decorridas sobre o excepcional concerto dos Seconda Prat!ca, a Igreja Matriz voltou a acolher um numeroso público, ávido de escutar as propostas do Musurgia Ensemble e do Quarto Tom Ensemble, para a celebração das Vésperas do Corpo de Deus, tal como se faria em Portugal no século XVII. Integrado no programa do CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar, o concerto teve por base a recolha de música vocal e instrumental conservada em arquivos musicais portugueses e recebeu o título “Ad Vesperas – Música para as Vésperas do Corpus Christi”. A partir do repertório de um vasto conjunto de artistas ibéricos, conhecidos e menos conhecidos - e alguns anónimos -, dos séculos XVI e XVII, os dois agrupamentos trabalharam uma vasta selecção de composições, convidando os presentes a nova viagem pelos tempos da História e seus contornos musicais, voltados inequivocamente para o interior da própria Igreja, com a sua liturgia, os seus dogmas, a sua essência canónica. Daqui resultou uma entre muitas propostas possíveis para as vésperas desta festa de grande solenidade, não apenas em relação ao alinhamento do concerto, mas também no que toca ao número de vozes e à própria parte instrumental seleccionada.

Assente na polifonia e no cantochão, em obras instrumentais e em variadas combinações destes efectivos, o concerto assumiu como prioridade o respeito pela estrutura quase fixa desta festa de grande solenidade, composta por uma evocação, cinco salmos, um hino, um cântico e uma benção final. De Manuel Cardoso a Pero Vaz Rego, de Frei Agostinho da Cruz a Manuel Rodrigues Coelho, o público teve a graça de escutar um conjunto de composições inspiradas, cujos acordes ecoaram no coração da Igreja Matriz com fervor e devoção. Eva Braga Simões e a sua voz cristalina brilharam no “Pange Língua” de Juan Navarro, hino devocional de rara beleza e que possui a particularidade de fugir ao cânone romano e assumir um carácter ibérico. O “Magnificat”, de João Lourenço Rebelo, e o “Benedicamus Domino”, de Aires Fernandes, foram outros dois momentos de profunda espiritualidade, escutados pelo público no mais reverencial silêncio. Já no capítulo dos Salmos, o destaque maior vai para a viola da gamba de Xurxo Varela e para a flauta de bisel de João Francisco Távora, capazes de momentos da maior beleza e emoção. Na linha dos anteriores concertos, “Ad Vesperas - Música para as Vésperas do Corpus Christi” foi mais um momento de altíssima qualidade e a melhor forma de assinalar o Dia Europeu da Música Antiga.

sexta-feira, 21 de março de 2025

CONCERTO: "Nova Europa" | Seconda Prat!ca



CONCERTO: “Nova Europa”
Seconda Prat!ca
Com | Sofia Pedro (soprano), Sophia Patsi (alto), Emilio Aguilar (tenor), João Paixão (barítono), Bram Trouwborst (baixo), Nuno Atalaia (barítono, flautas e direção artística), Asuka Sumi (violino), Xander Baker (viola da gamba), Hugo Sanches (guitarra barroca e tiorba), Martin Billé (guitarra barroca e tiorba)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
20 Mar 2025 | qui | 21:30


“Voltando ao assunto, creio que não existe nada de bárbaro ou selvagem nesta nação, pelo que me foi dito; excepto, que toda a gente chama de bárbaro ao que não é o seu costume. De facto, parece que não temos outro guia para a verdade, para a razão, do que o exemplo e as ideias e as opiniões e os costumes do país onde vivemos. Lá, está sempre a religião perfeita, a etiqueta perfeita, o uso perfeito e realizado de todas as coisas.”
Michel de Montaigne, in “Dos Canibais”

Ao analisar os costumes do povo Tupinambá, Michel de Montaigne, jurista, político, filósofo, escritor e humanista, nascido em 1533 na Dordonha, França, desenvolveu uma notável reflexão sobre “barbárie” e “civilização”, questionando quem estaria com a razão, se o povo Tupinambá ou o Europeu, que em nome de civilizar e tirar os outros povos da barbárie, cometia as maiores atrocidades. Este embate civilizacional, decorrente do achamento do “Novo Mundo” no dealbar do século XVI, levou a que a Europa, até então “o Mundo”, quisesse ser “o Centro do Mundo”. Como resultado imediato, dos vinte e cinco milhões de indígenas do México, só alguns milhares se mantinham vivos passado um século e a população andina diminuiu oitenta por cento em trinta anos. À luta pela sobrevivência seguiu-se a dominação cultural. Não sendo facilmente transmitida pelas armas, a fé cristã teve de ser incutida em cada mente através da arte e da música. Paradoxo dos paradoxos: Nascido em condições atrozes, no meio da destruição e do massacre, o barroco musical colonial está repleto de obras-primas, como facilmente se percebeu na noite de ontem graças ao maravilhoso concerto do Seconda Prat!ca.

A relação ética, política e musical entre a Europa e a América do Sul colonizada está no centro de “Nova Europa”, título do concerto e projecto musical do Seconda Prat!ca, de visita a Ovar na abertura do segundo fim de semana do CásterAntiqua – Festival de Música Antiga de Ovar. Numa Igreja Matriz repleta de público, o grupo teve para oferecer uma viagem musical através de um mundo em expansão, seguindo os passos da migração e hibridação da cultura europeia. “Distância”, “Missões”, “Crioulização” e “Catedral” foram quatro etapas de um processo de exploração das mutações das fronteiras e percepções dos continentes recém-colonizados, através da sua música. Mas o programa quis ver mais longe ao propor uma reavaliação dos fundamentos históricos que ainda nos levam a chamar “Novo Mundo” a territórios e culturas previamente existentes, e cuja opressão não é deveras passada. Daí que duas questões se imponham com a força e acutilância que o assunto deve merecer: E se um Novo Mundo nunca existiu? E se a Europa tivesse precisado de inventar um?

Foi, portanto, uma viagem. Através dela, as reflexões maduras andaram a par com os pensamentos de uma música em construção. Margens, tradição e civilização foram laços tecidos entre as diferentes peças, relevando o quanto de artístico, religioso, cultural e político se abriga em cada uma delas. Numa primeira etapa, percebemos a evolução das relações entre o estilo musical europeu e aquele da América do Sul colonizada. Foi tempo de escutar, entre outros, os sublimes “Dime Pedro por tu vida” e “Entre dos álamos verdes”, duas peças extraídos do Codex Zuola, de Cuzco, antiga capital do império Inca, e apreciar o resultado de uma verdadeira mestiçagem cultural. Num segundo momento, vimos como a música, embora com o claro objectivo de transmitir a fé religiosa, persistia nessa mistura de estilos, sendo possível encontrar em Arcangelo Corelli e D. Zipolli, do arquivo de Chiquitos, o muito que os une.

A “crioulização” deu conta da permeabilidade entre a cultura pré-colombiana e a europeia, com um tema como “Lanchas para baylar” (Anónimo, Codex Martinez Compañon, Trujillo) a revelar uma insuspeitada proximidade à passacaglia. Na última etapa, vimos como a música litúrgica se apropria do villancico, de origem profana, nesse afã de converter a população ao Cristianismo. “A la xácara, xacarilla” (J. Gutierrez de Padilla, Maitines de Natividad, Puebla) é disto um delicioso exemplo. Alternando música instrumental com vozes à Capella, coros polifónicos e prédicas recitativas, declamações ou simples apontamentos explicativos de carácter histórico, o Seconda Prat!ca proporcionou uma hora e meia de extraordinária música, no seio de um mundo de uma violência atroz e repleto de contradições. Uma palavra para os instrumentistas, cujos registos notáveis tiveram o condão de nos guiar entre dois mundos tão distintos e, contudo, tão próximos. Mas foi nas vozes das maravilhosas Sofia Pedro e Sophia Patsi, mas também de Emilio Aguilar, João Paixão e Bram Trouwborst que o concerto ganhou asas e se elevou a patamares de excelência. Uma noite inolvidável.

quinta-feira, 20 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "A Halt to Survive (Pandemic Times)" | Garcia de Marina



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Halt to Survive (Pandemic Times)”,
de Garcia de Marina
iNstantes - Propostas Fotográficas #109
Centro de Reabilitação do Norte
19 Mar > 23 Abr 2025


Cinco anos decorridos sobre os primeiros casos (e as primeiras mortes) directamente relacionados com o coronavírus, já quase não se fala de uma pandemia que pôs o país em pausa mais de setecentos dias, entre cercas sanitárias, estados de emergência nos momentos críticos e situações de alerta no abrandar do número de casos. Sabemos hoje que, tal como se esperava, o vírus evoluiu para formas menos letais, mas vale a pena não esquecer os seus efeitos devastadores, com mais de 5,6 milhões de pessoas infectadas em Portugal (mais de metade da população) e cerca de 29 mil óbitos. Numa altura em que os cientistas vêm alertando para o risco de aparecimento de novas e mais agressivas variantes do coronavírus, importa perguntarmo-nos sobre o que aprendemos com a pandemia e se estaremos preparados para um novo embate. A exposição de Garcia de Marina, que acaba de ser inaugurada no Centro de Reabilitação do Norte, não responde a nenhuma destas questões, mas reforça a necessidade de reflectir sobre elas, graças a um conjunto de imagens que, muito subtilmente, transportam em si as nossas interrogações.

Num tempo de grande desinformação e manipulação da opinião púbica, baixar a guarda afigura-se uma imprudência cujas consequências podem ser dramáticas. Por esse motivo, uma exposição como “A Halt to Survive (Pandemic Times)” não poderia ser mais apropriada, recuperando uma tragédia que recheou o quotidiano de incertezas e alterou o nosso olhar perante a vida, como perante a morte. A obrigatoriedade da máscara, o encerramento dos espaços, o distanciamento social, as quarentenas forçadas, as filas de ambulâncias, os funerais sem adeus, os testes rápidos ou as vacinas, ganharam preponderância num mundo fechado a cadeado. É este mundo que Garcia de Marina traz de novo para primeiro plano graças às memórias que suscita, feitas de vivências nítidas a oscilarem entre o doloroso e o épico. Ao mesmo tempo, poder mostrar esta exposição num espaço que não ficou imune ao coronavirus – e que continua, ainda hoje, a reabilitar vítimas da pandemia, nomeadamente aquelas afectadas por essa nova entidade clínica designada por “long COVID” –, apenas reforça o seu significado e importância.

Olhando cada uma das imagens, percebemos que Garcia de Marina elege o objecto como meio de expressão. O seu trabalho gira entre as ideias e a intuição, entre o real e o onírico. O peso do seu olhar está no simbolismo, na carga emocional, na essencialidade, na ligação aleatória dos elementos, no convite formulado a que relacionemos um teste rápido com um sinal de trânsito, uma agulha com uma ampulheta ou um pedaço de arame farpado com a silhueta de uns pulmões. É um trabalho de suma inteligência, pontuado de humor e irreverência, que transforma e imprime novas identidades aos objectos, que se insurge contra o óbvio e abraça a grandeza que reside no que é simples. Naquilo que se esconde para lá do visível reside o fascínio da fotografia de Garcia de Marina, cuja visão marcadamente surrealista se assume como legítima herdeira dos paradoxos de Magritte ou da singeleza de Miró. “A Halt to Survive (Pandemic Times)” remexe o passado como quem busca certezas, faz-nos reviver a incógnita de um jogo com um adversário invisível e pergunta-nos, uma e outra vez, o que aprendemos com tudo isto.

quarta-feira, 19 de março de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Paisagens Construídas" | Inês d'Orey



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Paisagens Construídas”,
de Inês d’Orey
Curadoria | Valdemar Cruz, Inês d´Orey, Luís Martinho Urbano
Fundação Marques da Silva
11 Jan > 09 Abr 2025


Quando folheei pela primeira vez o livro de Valdemar Cruz,“Paisagens Construídas – O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras”, aquilo que desde logo prendeu a minha atenção foi a quantidade e qualidade das fotografias. O livro é belíssimo, conforme já tive oportunidade de referir AQUI no blogue. Além do arranjo gráfico extremamente cuidado, é um livro com peso, literalmente. Passando pelas suas páginas, é evidente a predominância de textos e entrevistas, mas destaca-se essa forte componente visual, consubstanciada nas mais de cem imagens que o livro encerra e que têm a assinatura de Inês d’Orey. Estou certo que, mesmo sem o manancial de “mil palavras” que associamos a cada imagem, o livro teria tudo para ser - como é! - de leitura obrigatória. A abordagem conhecedora e sensível de Valdemar Cruz a cada uma das obras arquitectónicas, do ponto de vista da sua complexidade e desafios, sabendo encontrar o tom certo para realçar aquilo que as une, independentemente do muito que, eventualmente, possa separá-las, disso se encarregaria. Mas há a imagem, como se de um bónus se tratasse. E há Inês d’Orey: Curiosa e afoita, perspicaz e sensível, inteligente e talentosa. Tal como Valdemar Cruz.

São de Inês d’Orey, como disse, as fotografias de “Paisagens Construídas”, exposição patente ao público na Fundação Marques da Silva. Com curadoria conjunta de Valdemar Cruz, Inês d’Orey e Luís Martinho Urbano, e design gráfico de André Cruz Studio, dela fazem parte dezasseis imagens referentes a obras de arquitectura portuguesa e que Valdemar Cruz aborda no seu livro. As obras - seleccionadas a partir das escolhas individuais de mais de meia centena de personalidades, na sua maioria arquitectos, mas também académicos, engenheiros, artistas plásticos, críticos, curadores, fotógrafos e um geógrafo - mostram os múltiplos e diversos caminhos, com amplo reconhecimento dentro e fora de portas, seguidos pelos arquitectos portugueses desde o início do século XX até à actualidade. A partir de uma selecção inevitavelmente circunstancial e provisória, os edifícios aqui representados assumem um mínimo denominador comum assente no facto de se constituírem obras referenciais para a formação, conhecimento e estudo de sucessivas gerações de arquitectos.

Porque de arquitectos e arquitectura nos fala “Paisagens Construídas”, importa referir que esta é uma exposição magistralmente “arquitectada”. Iniciativa da Fundação Marques da Silva, organizada em parceria com a Zet Gallery, a exposição tira o maior partido do espaço da Casa-Atelier do arquitecto Marques da Silva, que forma conjunto com o palacete da família Lopes Martins, em plena Praça Marquês do Pombal, lugar estratégico da cidade do Porto. Habilmente dispostas ao longo das salas, as imagens dialogam com um conjunto de desenhos oriundos de vários arquivos nacionais, complementando-se e enriquecendo-se mutuamente. É um privilégio poder, de uma assentada, espraiar o olhar pela Ponte da Ribeira da Carpinteira, na Covilhã, ou pela Piscina de Marés, em Leça da Palmeira, apreciar o traço de Álvaro Siza, Carrilho da Graça ou Eduardo Souto Moura, ler os excertos poéticos e sensíveis que Valdemar Cruz entendeu por bem trazer para a exposição e, ao mesmo tempo, beber a esplêndida luz que se derrama dos grandes janelões ou da extraordinária clarabóia que encima o edifício. Uma exposição imperdível, para ver até 09 de Abril.

terça-feira, 18 de março de 2025

TERTÚLIA: “Conversas à Volta do Tanque” | Mafalda Cruz e Iolanda Fontaínhas



TERTÚLIA: “Conversas à Volta do Tanque”
Com Mafalda Cruz e Iolanda Maciel Fontaínhas
Moderação | Joaquim Margarido
Espaços de Pensar - Teias de Sentir
Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense
08 Mar 2025 | sab | 16:00


Podem as artes plásticas desencadear uma reflexão sobre o papel da Mulher na sociedade, ou sobre o modo como, ainda hoje, o seu papel é (des)valorizado? “Espaços de Pensar – Teias de Sentir”, projecto multidisciplinar levantado do chão pela artista plástica Rosa Bela Cruz, parte ao encontro desta e outras preocupações, “sempre com as artes plásticas como suporte inicial e a temática da Mulher como pano de fundo”. Neste contexto foram programadas, entre outras iniciativas, três “conversas à volta do tanque”, a última das quais teve lugar no Dia Internacional das Mulheres e permitiu ao muito público presente na acolhedora sala do Museu Júlio Dinis escutar as opiniões da médica e sexóloga Mafalda Cruz e da socióloga Iolanda Maciel Fontaínhas. Sob a moderação de Joaquim Margarido, as convidadas desenvolveram importantes considerações à volta do tema “Nem Castradas Nem Invisíveis, Abordagem da Evolução Social e Sexual da Mulher ao Longo dos Tempos”, debatendo conceitos, revelando factos, esgrimindo números, recordando factores diferenciadores do binómio mulher-homem e questionando os mecanismos de apropriação, depreciação e rejeição da Mulher e do lugar que ocupa na sociedade.

“No Ensino Superior, há 54% de mulheres e 46% de homens, com o número de mulheres diplomadas a ser de 58% e de 42% no caso dos homens. Apesar disto, as mulheres com altas qualificações ganham menos 26% do que os homens, em cargos iguais. Também 3/4 das tarefas domésticas são feitas por mulheres e a violência doméstica tem aumentado, com dezenas de mulheres assassinadas por ano. As questões sexuais e sociais, apesar da grande evolução em alguns aspectos, ainda são tabu para a maioria das pessoas. Falar sobre estes assuntos sem discriminações, sem constrangimentos e sem tabús é fundamental.” Colocando o dedo em várias feridas, as palavras de Rosa Bela Cruz na apresentação da sessão serviram de mote a uma conversa livre de preconceitos, enriquecedora a muitos títulos e com um enfoque especial em palavras como influência, autonomia, certeza, afirmação, equidade, assertividade, confiança e empoderamento. Uma conversa que teve como fio condutor “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”, temas lançados à discussão por esta ordem.

De Adão e da sua “costela” a Galeno, da Revolução Industrial aos nossos dias, Iolanda Fontaínhas abordou as relações de poder, a dimensão estrutural do género no que toca à violência e de que modo as sociedades se organizam, colocando a mulher numa posição de submissão, abuso e violência. Com o dedo apontado aos discursos sociológicos, religiosos e médicos, a convidada lembrou que a ambiguidade legislativa que reside na própria Constituição da República é promotora de desigualdades que implicam lógicas de relações de poder e que, construídas, naturalizadas e reproduzidas, estão na base de fenómenos como a violência doméstica, cujos números assustadores teimam em replicar-se ano após ano. Sobre esta temática, Mafalda Cruz começou por definir a “Saúde Sexual”, segundo a Organização Mundial de Saúde como “o bem-estar físico, mental e social” em relação à sexualidade, para logo referir a falta de abrangência em matéria de educação sexual em Portugal, “legislada desde os anos 90, mas posta em prática de forma muito precária” nas escolas, com conteúdos insuficientes e baseados numa sexualidade restritiva, virada sobretudo para a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e para a prevenção da gravidez.

No tocante ao “pão”, que o mesmo é dizer “trabalho”, o moderador chamou à discussão a Constituição Portuguesa que, no seu Artigo 59.º (Direitos dos Trabalhadores), consagra “o princípio de que para trabalho igual salário igual”, ao qual Iolanda Fontaínhas faz um reparo, arriscando dizer “salário igual para trabalho de igual valor”. Foi tempo de lembrar as disparidades salariais (que chega aos 770 euros entre homens e mulheres num cargo de topo), o facto de 79% das mulheres assumirem a ida ao médico com os filhos ou as tarefas domésticas serem maioritariamente assumidas pela mulher. Mas também as questões de assédio no local de trabalho, e cujas denúncias, segundo Mafalda Cruz, continuam a não ser valorizadas, com muitas das vítimas a serem descredibilizadas ou silenciadas, com a conivência de uma sociedade que continua a tolerar muitas das situações de abuso. Em matéria de habitação, a médica falou das dificuldades “em usufruir da sexualidade e do prazer se o casal luta para conseguir pagar uma casa” ou a viver em condições precárias “com os filhos no mesmo quarto, pais no quarto ao lado, muitas vezes fragilizados e doentes”, sem tempo ou condições sequer “para uma conversa sem interrupções.” À boleia destas preocupações partilhadas, Iolanda Fontaínhas lembra que “as dinâmicas familiares estão a mudar”, reflectindo-se numa saída de casa tardia, numa constituição de família tardia, num primeiro filho tardio.

“Em termos de investigação científica as mulheres estão completamente em desvantagem, porque a maioria dos estudos em saúde inclui homens, apenas, o que significa que as conclusões que tiramos são baseadas na fisiologia do homem”. Quem o diz é Mafalda Cruz, estendendo esta realidade aos campos do diagnóstico e do tratamento (“quando uma mulher tem uma queixa cardíaca, o tempo até ser feito um diagnóstico é superior cinco vezes em relação ao homem”). Ao mesmo tempo, desconstruiu as diferenças na resposta sexual entre homens e mulheres e vincou que “mais importante do que ter desejo é ter prazer”. A conversa encerrou com o tema da “educação”, com Iolanda Fontaínhas a evidenciar a escola como “o lugar seguro para podermos alimentar a nossa curiosidade, mas dependente da capacidade de educadores e professores em fazer dela esse lugar seguro”. Ao longo de duas horas de conversa muito mais se falou, mas fica aqui esta proposta de resumo. Importante, mesmo, é que o facto de tantas mulheres estarem sentadas naquela sala a falar abertamente de si, das suas ideias, do seu corpo, da sua sexualidade, é reflexo das muitas conquistas que foram sendo feitas em lutas travadas ao longo dos tempos.” Todavia, como bem lembrou Iolanda Fontaínhas, “múltiplas conquistas coexistem com múltiplos desafios no tocante à igualdade entre os géneros” e há ainda muito caminho por fazer. Ainda que pequenino, aqui foi dado mais um passo.

segunda-feira, 17 de março de 2025

CONCERTO: "Baroque Masterpieces"



CONCERTO: “Baroque Masterpieces”
Com | Robert Ehrlich (flauta de bisel), Alexander von Heißen (cravo)
Músico convidado | João Francisco Távora (flauta de bisel)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Capela do Calvário
16 Mar 2025 | dom | 18:00


A encerrar um fim-de-semana rico e variado em torno da Música Antiga, o CasterAntiqua elevou a fasquia ao ponto mais alto com a proposta de um programa dedicado às obras-primas do período Barroco. Expectativas ao rubro, a Capela do Calvário revelou-se pequena para acolher um vasto público que encontrou no concerto a oportunidade de escutar obras de alguns dos mais consagrados compositores de setecentos, interpretadas por dois músicos de relevo no panorama internacional da música antiga. Robert Ehrlich e Alexander von Heißen são ambos professores na Hochschule für Musik und Theater “Felix Mendelssohn Bartholdy”, em Leipzig, da qual Ehrlich foi reitor durante nove anos. Ambos têm no currículo a conquista de alguns dos maiores prémios em concursos internacionais, um vasto conjunto de digressões por todo o mundo e também a gravação de inúmeras obras como solistas e como membros de ensemble. Para este concerto convidaram João Francisco Távora, mestre em Música Antiga pela referida Escola de Leipzig, na classe do Professor Robert Ehrlich, e um dos directores artísticos do CásterAntiqua.

Foi um concerto de emoções, aquele a que pudemos assistir ao final da tarde de ontem. Emoções fortes, diga-se, desde logo pelo local escolhido para o concerto - um dos mais representativos do nosso património religioso -, sereno pela própria natureza de um espaço de culto, mas de uma enorme carga simbólica pela inquietação e dramatismo do Cristo crucificado e de todas as figuras que o rodeiam, dos soldados que jogam as suas vestes aos dados, a uma mãe também ela em agonia ante a morte eminente do seu filho. De um lado a santidade, do outro a heresia. Um sagrado e um profano contrastantes e cuja presença foi evidente no conjunto de peças musicais escolhidas para o programa deste terceiro dia do Festival, de um mundano e efusivo Händel a abrir, a um Bach profundamente espiritual a fechar. De emoções fortes, ainda, porque trazer para o concerto uma “parada de estrelas”, onde se incluem George Frideric Handel, Jacob van Eyck, Matthew Locke, Arcangelo Corelli e Johann Sebastian Bach, é tudo menos fácil, ainda que o possa parecer. A interpretação das obras-primas destes mestres exige entrega, rigor e um enorme virtuosismo. E foi precisamente aqui que o concerto atingiu os mais altos patamares de excelência, graças à mestria dos intérpretes, à sua técnica exímia, ao seu enorme talento, à sua forte cumplicidade.

A par de uma lição de música de altíssimo nível, “Baroque Masterpieces” foi também uma lição de História. Ciceroneado por Robert Ehrlich, o público bebeu nas suas palavras apaixonadas o sabor da viagem, ao mesmo tempo que se foi cruzando com nomes importantes da história da música, do compositor e flautista francês Jacques-Martin Hotteterre, a Frans Brüggen, maestro neerlandês que devolveu a nobreza de estatuto à flauta de bisel, dando a conhecer ao mundo o seu fascinante repertório da Renascença e do Barroco. A jornada teve início numa Londres pacificada e próspera, onde Handel triunfou graças à genialidade das suas composições, nomeadamente óperas sobre as quais se construiu uma multiplicidade de arranjos e variações. Não tardaríamos a ver a mesma Londres mergulhada em guerras fratricidas e assolada pela peste, disso sendo testemunhas as composições de Matthew Locke. Em Roma, centro do mundo musical à época, deparámo-nos com Arcangelo Corelli, outro dos génios do Barroco, e com a sua maravilhosa Sonata em Lá Maior, Op. 5 No. 9. A viagem terminou em Leipzig, por volta do ano de 1730, no ambiente celestial que só as composições de Bach logram criar. Concluída a primeira parte deste CásterAntiqua, o sentimento é o da maior satisfação, havendo expectativas fundadas de que os quatro últimos dias do Festival serão apoteóticos. Mil bravos!

domingo, 16 de março de 2025

CONCERTO: "Folia Nova"



CONCERTO: “Folia Nova”
Sete Lágrimas
Com | Filipe Faria (voz, viola de mão 4 ordens, bandurra descante, percussão e direcção artística), Sérgio Peixoto (voz e direcção artística), Pedro Castro (flautas), Tiago Matias (guitarra barroca, guitarra romântica e tiorba), João Hasselberg (contrabaixo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Centro de Arte de Ovar
15 Mar 2025 | sab | 21:30


“E toda a gente da cidade foi posta com muita brevidade em danças e folias, com infindas tochas na praça e no Terreiro dos Paços, e por todas as ruas principaes, e tanta gente honrada e nobre, e assi a do povo, que não cabia, nem se viu nunca tanto alvoroço e alegria, e muitos velhos e velhas honradas com sobejo prazer foram juntos cantar e bailar diante de El-Rei e a Rainha, cousa de que suas edades os bem escusavam.”
Garcia de Resende, in Chronica de ‘L Rei D. João II

A folia foi um dos fenómenos mais notáveis da história da música. Com raízes campestres ligadas a rituais de fertilidade, esta melodia musical, que se estende à dança, ao texto e à animação, remonta a finais do século XV e abraça vários públicos, ocorrendo tanto em ajuntamentos populares como nas festas da corte. A página La Folia – A Musical Cathedral, que procede a um inventário de folias, conta cerca de cento e cinquenta compositores que em mais de três séculos conceberam inúmeras variações brilhantes, de Jean Baptiste Lully e Marin Marais, a Corelli, Vivaldi, Bach e Beethoven, ou mesmo Berlioz, Liszt e Rachmaninov. Gil Vicente foi o primeiro autor a mencionar a folia, caracterizando-a, no seu “Auto da Sibila Cassandra”, de 1511, como uma dança de pastores. Já Sebastián de Covarrubias, em pleno reinado dos Filipes, definia-a como “uma certa dança portuguesa, muito barulhenta (…), e é tão grande o ruído e o som tão apressado, que parece estar uns e outros sem juízo”. Apesar deste seu carácter “louco” e da sua raiz popular, a verdade é que a folia conseguiu conquistar a corte, o que concorreu tanto para o seu sucesso como para a sua longevidade.

Nesta sua “Folia Nova”, nome do concerto que preencheu a segunda noite do CásterAntiqua, o Sete Lágrimas voltou a partir do novo para o tempo, levando o público numa viagem pelo vasto território da língua, na sua métrica, ritmos e harmonias. Como se de uma levitação entre mundos se tratasse, esta reinterpretação da Música Antiga resgata a poesia portuguesa e as suas palavras, trazendo-as para o presente em analepses de magia, reinventando-as em novos sons e novas melodias. Filipe Faria e Sérgio Peixoto escrevem os doze novos vilancicos que compõem “Folia Nova” como estações cronográficas da intemporalidade, partindo da “folia” e do seu tradicionalismo harmónico e rítmico para um novo universo conceptual, rico em novas linguagens e diálogos criativos. A música erudita abraça a música popular, o antigo e o contemporâneo dão-se as mãos e é como se a secular diáspora portuguesa dos Descobrimentos e o eixo latino mediterrânico se convertessem em som graças à fiel interpretação dos cânones performativos da Música Antiga e à incorporação de elementos definidores da música tradicional ou do jazz.

O concerto foi, todo ele, um manancial de festa e folia em torno da língua, numa homenagem a alguns dos nossos poetas mais representativos, do já referido Gil Vicente a Pêro de Andrade Caminha, de João Roiz de Castel-Branco a Bernardim Ribeiro e Luis Vaz de Camões. Bernardim Ribeiro de quem se escutou, a abrir o concerto, “Nunca foy mal nenhum moor”, apenas com Filipe Faria em palco e que nos trouxe, na sua voz lindíssima, a certeza de uma noite inesquecível. Todo o restante alinhamento viria a confirmá-lo, a atenção do público presa num apontamento solístico de maior relevância, num verso declamado com graça e engenho, na forma como umas escovas se transformam em instrumentos de percussão ou como o assobio pode ser arte e encanto, ou ainda no som grave do contrabaixo, instrumento estranho à Música Antiga mas que se integra perfeitamente e se revela precioso. Na alma fica a interpretação de “Cantiga sua, partindo-se”, de João Roiz de Castel-Branco e, pela mímica e gestualidade, “Dicem que me case yo”, de Gil Vicente. Também o enérgico e muito belo “El passamezzo antiguo”, de Diego Ortiz, com honras de “encore”, e ainda “Fandango”, escrito e interpretado a solo por Tiago Matias, mais um momento perfeito neste serão magnífico.