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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

CONVERSAS & CONCERTOS: Ovar Expande ‘25 (III)



CONVERSAS & CONCERTOS: Ovar Expande ‘25 (III)
Com Lana Gasparøtti, IBSXJAUR e The Legendary Tigerman
Escola de Artes e Ofícios
18 Out 2025 | sab | 21:30


Energia, ritmo, performance, alta rotação, muito suor e, por certo, algumas lágrimas, marcaram o fim desta sexta edição do Ovar Expande. Palco aglutinador dos interesses e vontades de uma organização atenta, de músicos empenhados em dar o melhor de si na defesa dos seus projectos e de um público empático e entusiasta, a Escola de Artes e Ofícios esteve ao rubro com três concertos em crescendo, três propostas vibrantes que fizeram do serão um momento único, daqueles que ficam para a história do certame como um dos mais apelativos e aclamados de sempre. Assumindo-se como pianista, compositora e produtora, Lana Gasparøtti abriu a noite em festa, trazendo consigo “Dimensions” (2024) e com ele uma estética sonora e visual rica em detalhes e de escuta intensa e viva. Com uma forte presença em palco, a artista mostrou ambição na forma de conciliar o espírito exploratório do jazz e a sua vertente de improvisação, com a pulsação rítmica e a estética da electrónica e do hip-hop, construindo um “jazz dançável”, disposto a lançar pontes tanto entre os músicos como com público. Percebe-se um cheirinho de Chick Corea e Herbie Hancock, do jazz de fusão dos anos 1970, em temas como “Missing Files”, “Dreaming”, “Mar” ou “Dimensions”, mas Gasparøtti arrisca numa linguagem musical que ousa desafiar classificações convencionais, apostada que está numa experiência sonora moderna e de fronteiras abertas. 

Depois de um muito prometedor e aplaudido início de noite, o público foi convidado a descer um piso e a ouvir a dupla IBSXJAUR, tendo à sua espera um momento fortemente performativo em torno do novíssimo “Sanity”, álbum lançado no dia anterior com o carimbo Cuca Monga e a fazer no Ovar Expande a sua estreia ao vivo. Atravessando a sala com um chapéu de chuva aberto, JAUR (leia-se “Jôr”) enfrentou o auditório disposta a deixar tudo em palco e a transformar a Sala Galeria da Escola de Artes e Ofícios numa pista de dança subterrânea. Irreverente, destemida, de uma energia ilimitada, a artista transmite uma autenticidade e uma carga emocional gigante à sua música, ligando-se a uma parte da audiência num plano altamente empático, enquanto a batida e a produção de INFRABASSESATURE conduz a uma imensidão de estados de euforia rítmica que fazem do concerto um espectáculo dentro do espectáculo. Temas como “The Molt”, “Echo” ou “Sangfroid” mostram o quanto de techno e drum & bass habitam a música dos IBSXJAUR, mas há também “Circles” ou o belíssimo “Up! ft. Marianne” a revelar a sua matriz pop, vector orientador e parte intrínseca do projecto. O que verdadeiramente impressionou na música da dupla foi a sua capacidade de transitar entre os conceitos de “concerto” e de “clube”, de articular uma narrativa lírica com a produção underground e de levar a música a assumir, em simultâneo, o palco e a pista de dança.

Se foi muito o público presente na Sala Galeria, foi muito mais aquele que encheu de emoção e aplauso a belíssima Sala Expande para escutar um dos cabeças de cartaz do certame, The Legendary Tigerman. Despojado das habituais cadeiras, o espaço foi pista de dança no concerto que encerrou a sexta edição do certame, acolhendo um carismático Paulo Furtado e a uma sonoridade muito própria, fonte de redescoberta e projecção do blues para o século XXI. Escusado será dizer que, mal ecoaram na sala os primeiros acordes de “New Love”, os corpos não mais tiveram sossego. É impossível permanecer imune à estética provocadora e performativa do artista em palco - extraordinariamente acompanhado, diga-se, por Mike Ghost na bateria e Sara Badalo na voz -, numa fusão de blues, rock, punk e elementos electrónicos. Crua, sensual e cinematográfica, a sua música convoca universos de estrada, solidão e rebeldia. “Ghost Rider”, “Naked Blues”, “Motorcycle Boy” ou “These Boots Are Made For Walkin’”, a última numa revisitação de um clássico de Nancy Sinatra da década de 1960, são disto exemplos acabados. Como o são “The Saddest Thing to Say” ou “True Love Will Find You in the End”, dois temas que integram esse marco incontornável na música portuguesa que é o álbum “Femina”. Entre a autenticidade e a inovação, o fecho ideal de uma edição de grande nível, prova da afirmação do Ovar Expande num plano superior do panorama de certames do género no nosso país.

domingo, 19 de outubro de 2025

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ‘25 (II)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande ‘25 (II)
Com Bia Maria + Coro da Comunidade, Ela Li e Afonso Cabral
Escola de Artes e Ofícios
17 Out 2025 | sex | 21:30


O segundo dia de concertos do Ovar Expande teve para oferecer três propostas surpreendentes, mas com um notável sentido de complementaridade, próximas e distantes entre si ao mesmo tempo. Assumindo a figura de “irmão do meio” no alinhamento da noite, Ela Li ocupou a Sala Galeria da Escola de Artes e Ofícios para uma hora de concerto baseado no seu álbum “Choradeira” (2023). Com Zé Cruz no trompete e percussões e Luis Sanches na guitarra, a cantora mostrou o quanto as intensas vivências no lado de lá do grande lago Atlântico se mostram presentes na sua música, pontuada de ritmos quentes — da bossa nova ao funk, do groove afro-brasileiro à electrónica subtil —, movendo-se entre a leveza de um suave “sunset” e a profundidade das emoções mais genuínas. Essa mistura resulta numa música que se escuta com facilidade, mas que não deixa de surpreender pela riqueza de cores e texturas e pelos arranjos cativantes. Distante dos palcos há bastante tempo por questões de maternidade - “Vamos Lá Mudar a Fralda” terá sido a música que mais cantou nos últimos tempos -, Ela Li está de regresso e ainda bem. Fê-lo em Ovar, preenchendo uma boa parte do serão com um misto de descontração de um dourado pôr-do-sol e a profundidade de um olhar interior que faz do amor e da amizade o caminho a seguir.

Os de memória mais afinada lembrar-se-ão de Afonso Cabral na primeira edição do Ovar Expande, altura em que apresentou o seu projecto em nome próprio, depois de uma década à frente dos “You Can’t Win Charlie Brown”. E se o fez então em “versão reduzida” - pandemia “oblige” -, a noite de ontem foi de celebração com um regresso em força que juntou em palco os companheiros de estrada habituais: António Vasconcelos Dias (piano, rhodes, moog, guitarra acústica), Pedro Branco (guitarra eléctrica), David Santos (baixo), João Correia (bateria) e Inês Sousa (voz e sintetizador). Saltitando entre “Morada” (2019) e “Demorar” (2024), os seus dois trabalhos de estúdio até ao momento, Afonso Cabral mostrou à saciedade as suas qualidades de enorme cantautor, capaz de permanecer fiel a si próprio e explorar a língua portuguesa com frescura, elegância e sentido. Temas como “Entre as Palavras e os Actos”, “Resistir”, os inevitáveis “Morada” e “Demorar”, “Indivisível” ou um muito belo e significativo “Manel”, distinguem-se pela subtileza e pelo modo como articulam entre si forma e emoção, sofisticação e proximidade, se enraizam num minimalismo elegante e se mantêm relevantes numa altura em que o “indie” nacional busca novas vozes, novas texturas, outro nível de ambição. Um momento repleto de muita e boa música a encerrar uma noite rica em emoções.

Por razões óbvias, deixei para o fim o concerto de abertura do serão, preenchido pelo concerto de Bia Maria + Coro da Comunidade. O “óbvio” prende-se com o facto de eu próprio ter integrado o Coro da Comunidade e ter podido acrescentar ao sentir de um momento musical a emoção da cumplicidade e da partilha. A apresentar em Ovar “Qualquer Um Pode Cantar”, o seu mais recente álbum, Bia Maria foi capaz de unir a beleza da voz à força da comunhão colectiva num projecto que é um verdadeiro sopro de frescura no panorama da música portuguesa contemporânea. Enraizadas no cancioneiro popular, com um “cheirinho” de fado e de bossa nova, as suas melodias fazem da voz — da dela e de todos — instrumento primordial e elo de partilha. Com Alberto Hernandez na guitarra e Samuel Louro na bateria, a artista vestiu de cumplicidade e inclusão temas como “Roupa Velha”, “O Corpo”, “Aconchegos de um Sujeito”, “Marcha da Paridade” ou “Qualquer Um Pode Cantar”, juntando em palco um coro de dez pessoas de diferentes gerações e transformando o concerto num acto de encontro com o outro e consigo própria. A combinação de tradição e inovação, intimidade e comunhão, música e cidadania, resultou num trabalho vibrante de conhecimento, escuta, partilha e comunidade, ao qual o público não ficou indiferente. Entre o acto da escuta e o de cantar mediou um pequenino passo que fez de “qualquer um pode cantar” não apenas título, mas vibrante bandeira.

sábado, 18 de outubro de 2025

CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2025 (I)



CONCERTOS & CONVERSAS: Ovar Expande 2025
Com Mazela e Manel Cruz
Escola de Artes e Ofícios
16 Out 2025 | qui | 21:30


Foi no Verão de 2020, em plena crise pandémica, que o Ovar Expande soltou amarras e juntou esforços, decidido a “desconfinar” a nova música portuguesa e a dar palco às suas vozes singulares e projectos inovadores. Ao mesmo tempo, assumia com veemência a ideia de transformar espectadores em protagonistas de uma experiência cultural única, de valorização do talento nacional e de celebração da força da canção enquanto arte viva. Cinco anos decorridos, o certame mostra-se imparável. Ano após ano, tem sabido repensar-se e reinventar-se – estendeu-se a novos espaços, cativou e consolidou um público apaixonado e afirmou-se como uma forte marca identitária da cultura em Ovar e uma referência incontornável no panorama musical do nosso País. Celebrando os cantautores, esta sexta edição traz à Escola de Artes e Ofícios nomes como os de Manel Cruz, Afonso Cabral, The Legendary Tigerman, Mazela, Bia Maria, Ela Li, Lana Gasparøtti e IBSXJAUR, apostada em fazer de cada concerto um encontro emotivo e intimista entre a dádiva da música e o abraço do público.

Natural de Castelo Branco, Maria Roque abriu a série de concertos da presente edição do Ovar Expande, trazendo consigo o projecto Mazela, através do qual lança um olhar sobre as imperfeições humanas, mas também sobre o acto de cuidar e curar. Acompanhada pela produção atenta de Alexandre Mendes, igualmente encarregue do acompanhamento com a guitarra, a voz suave e introspectiva de Maria Roque impôs-se ao longo do concerto em temas como “Naveguei”, “Luz no Escuro” e “Entre Amor e Ódio”, extraídos do seu primeiro EP, intitulado “Desgostos em Canções de Colo” (2024). O destaque vai para a riqueza poética de Mazela, para a sua capacidade de devolver um olhar delicado sobre temas como a dor, a perda ou a esperança, e de o fazer com uma sensibilidade que ressoa profundamente no público. Introspectivas e carregadas de emoção, as letras convidam à reflexão pessoal e à empatia. Consiga ela soltar-se de constrangimentos – mais acústica e menos eco, mais naturalidade e menos eletrónica - e cantar da forma límpida como fez em “Canção sem Final”, e rapidamente se afirmará como uma das gratas certezas da nova música portuguesa.

O final do primeiro dia de concertos do Ovar Expande foi assegurado por Manel Cruz. E que final! Em dia de aniversário, aquele que é um dos mais geniais músicos portugueses brindou o público com um leque vasto de canções, respigadas de um repertório pouco conhecido, em grande parte não editado em disco e apenas à disposição dos sortudos que têm a possibilidade de o escutar em palco. “Onde Estou Eu” e “Beija Flor”, do álbum “Vida Nova” (2019) foram os primeiros temas da noite, abrindo espaço a uma hora e um quarto da mais pura sedução. Estabelecendo um ponto de equilíbrio entre a sofisticação musical e a crueza emocional, o cantor prendeu o público de forma intensa (quase apetece dizer que o amordaçou), induzindo nele uma escuta quase reverencial. Tratando como ninguém os seus poemas, carregou-os de intimismo e de uma expressiva sensibilidade emocional em temas universais como o amor e a dor, a melancolia e a nostalgia, mas também a natureza e o quotidiano. Seria redutor destacar esta ou aquela canção, de tal forma cada uma delas se mostrou como um "ramo" diferente da experiência humana, nessa "árvore" maior da existência e do conhecimento, da dádiva e da partilha. Um concerto inesquecível, revelador do porquê de ser Manel Cruz um dos maiores cantautores portugueses de hoje e de sempre.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

CONCERTO: "Sons do Brasil" | Orquestra das Beiras & Gileno Santana



CONCERTO: “Sons do Brasil”
Orquestra das Beiras & Gileno Santana
Direcção músical | Fernando Marinho
Estarrejazz 2025
Cine-Teatro de Estarreja
11 Out 2025 | sab | 21:30


A encerrar mais uma edição do Estarrejazz, o Cine-Teatro de Estarreja acolheu um concerto verdadeiramente singular que uniu o trompetista brasileiro Gileno Santana à Orquestra Filarmonia das Beiras, sob a direção do maestro Fernando Marinho. A proposta, descrita como “um diálogo com as influências culturais que conectam Brasil e Portugal”, ganhou forma através de arranjos assinados por compositores de enorme craveira internacional, casos de Gil Goldstein ou Nelson Ayres, alguns deles criados em especial para esta ocasião. O repertório viajou por marcos emblemáticos da música brasileira — Garota de IpanemaCarinhosoAquarela do Brasil, “Dindi”, “Vambora” ou “Tico-Tico no Fubá” —, evocando não apenas a beleza melódica destes temas, mas também o seu contexto histórico e afectivo, agora reinterpretado com a densidade tímbrica e harmónica de uma orquestra clássica. A presença de Gileno Santana, considerado um dos mais talentosos trompetistas da sua geração, trouxe um sopro de autenticidade e sofisticação a este encontro cultural de grande fôlego artístico, contribuindo para uma experiência sonora marcada pela confluência de linguagens aparentemente distintas, mas profundamente conectadas.

A singularidade destes “Sons do Brasil” residiu, em grande parte, na forma como se cruzaram os universos da música erudita e dos ritmos populares brasileiros — uma amálgama que, longe de ser apenas um exercício de estilo, é reveladora de afinidades profundas entre estas expressões musicais. Do samba à bossa nova, do choro ao frevo, passando ainda por influências do baião e sem esquecer o jazz, o programa destacou a riqueza e complexidade rítmica do Brasil, que encontrou na Orquestra Filarmonia das Beiras um intérprete à altura do desafio. Com mais de duas décadas de actividade, a Orquestra tem vindo a afirmar-se como uma referência nacional no panorama da música clássica, destacando-se pela versatilidade com que transita entre o repertório sinfónico, a música contemporânea e projectos interdisciplinares. Sob a batuta precisa de Fernando Marinho, os músicos souberam captar as nuances da linguagem popular brasileira, sem perder a clareza e o rigor próprios da execução orquestral, revelando uma escuta mútua rara e um compromisso artístico colectivo notável.

Com uma secção rítmica de luxo - João Ferreira (piano), Gonçalo Cravinho (contrabaixo) e João Cunha (bateria) -, Gileno Santana viu neste concerto representou mais do que uma colaboração entre todos os intervenientes — foi, segundo o próprio, “um dos mais aguardados” momentos da sua vida. Nascido em Salvador da Bahia e radicado em Portugal, Gileno construiu um percurso ímpar que atravessa o jazz, a música clássica e os ritmos afro-brasileiros, tendo já partilhado o palco com nomes como Hermeto Pascoal, Maria João, Pedro Abrunhosa, Vitorino ou a Banda Sinfónica Portuguesa. A sua abordagem ao trompete funde lirismo e virtuosismo com uma expressividade profundamente enraizada na identidade cultural brasileira. Em Estarreja, essa identidade encontrou ecos na paleta sonora da Orquestra, num espetáculo que foi, acima de tudo, um exercício de empatia musical: entre solista e orquestra, entre tradição e contemporaneidade e entre as duas margens do grande lago Atlântico. Na sua singularidade, “Sons do Brasil” constituiu uma celebração da música como ponte e como espaço de reencontro, cada nota a servir de elo entre mundos distintos mas complementares — o erudito e o popular, o europeu e o tropical, o passado e o presente.

[Foto: Cine-Teatro de Estarreja | https://www.facebook.com/cineteatrodeestarreja]

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

CONCERTO: Meredith Monk



CONCERTO: Meredith Monk
Com | Meredith Monk (voz e teclados), Katie Geissinger (voz), Allison Sniffin (voz, violino e teclados)
Auditório de Espinho – Academia
14 Out 2025 | ter | 21:30


““I still have my hands / I still have my mind / I still have my money / I still have my telefone / Hello, hello, hello?
I still have my memory / I still have my gold ring, / beautiful, I love it / I still have my allergies / I still have my philosophy.”
Meredith Monk, “The Tale”


Que extraordinário serão, o da passada terça-feira na companhia de Meredith Monk, uma artista que, aos 82 anos, permanece determinada em continuar a escavar a própria origem da voz e do som. Nascida num meio musical — a sua mãe era cantora profissional —, Meredith Monk sempre entendeu a voz como um instrumento ilimitado. A sua obra cresceu numa Nova Iorque fértil em experimentação artística, ao lado de figuras como Philip Glass ou Steve Reich, com quem partilhou o minimalismo como ponto de partida, mas que ultrapassou ao focar-se não tanto na repetição rítmica, antes na expressão corporal e vocal pura. Pioneira do que hoje se designa por “técnica vocal alargada” e “performance interdisciplinar”, as suas influências encontram-se tanto no Oriente como no Ocidente – do canto tibetano ao teatro Noh, da música medieval europeia às tradições indígenas —, não por uma fusão estilística, mas por um reconhecimento de que o som, antes de ser linguagem, é rito e respiração. Nela é claro esse impulso de regressar às fontes do som, explorando a voz como um território sagrado, íntimo e ilimitado, onde o tempo parece suspenso e o corpo é o primeiro instrumento da alma.

Atentemos nos primeiros momentos do concerto. Sozinha em palco, com as suas enormes tranças e um belo sorriso no rosto, começou por entoar “Wa-lie-ho”, um tema da maturidade apesar do seu meio século, abrindo-nos a imensidão do deserto do Novo México e a infinidade de sons que associamos às emoções, mais do que os sons que o próprio deserto nos devolve. O que à primeira escuta pode parecer uma música “simples”, revela-se, na verdade, como um refinado processo de despojamento, reduzindo a composição ao essencial, na busca de uma forma de pureza quase espiritual. Depurada ao máximo, esta, como todas as restantes peças que compuseram o concerto, não conta uma história no sentido narrativo convencional, antes convoca sensações, estados de alma, geografias interiores. A voz, esse enorme instrumento, é moldada com uma liberdade quase xamânica — como se Monk quisesse cantar antes das palavras, antes da gramática, antes mesmo da consciência de ser. Há algo de poeira e terra molhada, de vento nas montanhas, de infância da humanidade em cada composição. Cada emissão vocal, cada gesto ou respiração, convoca algo de profundo, atávico, como se estivéssemos a escutar a primeira tentativa de comunicação entre dois seres.

Primeiro com Katie Geissinger e depois com Allison Sniffin em palco, as músicas foram-se derramando não apenas em beleza ou emoção estética, mas também como experiência sensorial e espiritual total. Temas como “Gotham Lullaby”, “Scared Song”, “Simple Sorrow”, “Happy Woman” ou, já no “encore”, “The Tale”, são viagens imersivas onde corpo, som e silêncio se entrelaçam. Viagens que convidam a uma presença, não como espectadores passivos, mas como testemunhas de uma exploração da memória colectiva e corporal. Apesar de muitas das obras lidarem com temas como a transitoriedade e a fragilidade, a morte e o renascimento, há nelas, sempre, uma luz que brilha através da dor, uma aceitação radical da impermanência. E há, também, uma ética ecológica implícita: Em Meredith Monk, a comunhão com a natureza não é uma metáfora, mas uma vivência sensível, quase litúrgica. O canto torna-se ponte entre o humano e o mundo natural, um gesto de escuta e humildade. Por isso, escutar Monk é aceitar que a arte pode ser semente, oração e vestígio de civilizações esquecidas. A sua música não pertence a um tempo, antes ecoa em muitos tempos. Inclusive em tempos que estão para chegar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Photographo” | Alfredo Cunha



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Photographo”,
de Alfredo Cunha
Curadoria | David Santos
Encontros da Imagem de Braga 2025
Zet Gallery
19 Set > 26 Out 2025


No momento de pôr um ponto final na sua carreira como fotojornalista e abraçar novos projectos artísticos, Alfredo Cunha passa em revista um olhar de mais de cinco décadas sobre a História e a Cultura contemporâneas. Engajado com um mundo em permanente ebulição, o fotógrafo reúne cerca de oito dezenas de imagens sob o título “Photographo” – curiosa a grafia, a remeter para um passado cada vez mais distante –, consideradas das mais relevantes da sua carreira. O destaque vai para uma selecção de icónicas imagens do 25 de abril de 1974, mas também do conturbado processo de descolonização das antigas colónias portuguesas em África que se lhe seguiu. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé são palco privilegiado das suas fotografias, reveladoras quer do impacto político e social do fim do colonialismo, quer das tensões e conflitos que o acompanharam. A sua fotografia “Descolonização”, com o amontoado de caixas a bloquear a vista da cidade, é um símbolo poderoso dessa nova realidade, mostrando o desafio de lidar com as consequências do passado colonial.

Além dos eventos políticos e sociais, Alfredo Cunha destacou-se pela sua capacidade de captar a essência das pessoas, desde figuras públicas como Mário Soares, Miguel Torga, José Saramago, Maria Helena Vieira da Silva ou Maria Teresa Horta, até anónimos que viveram a repressão da ditadura. Os seus retratos a preto e branco mostram não apenas rostos, mas histórias e emoções, refletindo a privação da liberdade e a luta pela dignidade humana. Aos 70 anos de idade, justo é reconhecer na obra de Alfredo Cunha um testemunho humanista que ajuda a preservar a memória colectiva, especialmente precioso para as gerações que não conheceram a repressão do Estado Novo. A sua capacidade de capturar a energia, o drama e a esperança nos rostos das pessoas, levam-nos a olhá-lo como uma voz visual da verdade, cuja obra vai muito além do simples registo documental, refletindo um compromisso profundo com a liberdade e a justiça social.

“A fotografia de Alfredo Cunha tem mais tempos e mais lugares, muitos mais, do que os contemplados nesta selecção do fotógrafo e do curador David Santos. Afinal, é já mais de meio século de trabalho. Contudo, em “Photographo” temos uma oportunidade única de olhar, com realismo, o país e o mundo e de, através da lente de Alfredo Cunha, nos questionarmos sobre quem somos. E quando a Arte nos devolve ao lugar das perguntas e das identidades, mais do que um contexto, ela é já merecedora de toda a eternidade. A Arte não é neutra, a fotografia não é neutra, a fotografia de Alfredo Cunha não é neutra. É uma escolha e o que somos revê-se nessa escolha.” As palavras são de Helena Mendes Pereira, Directora-Geral e Curadora da Zet Gallery, em Braga, que acrescenta: “Não tínhamos como não acolher esta exposição. Obrigada, Alfredo Cunha, pelas tantas estórias que são a nossa História”. A mostra integra os Encontros da Imagem de Braga e está patente ao público até 26 de Outubro.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Reaching for Dusk” | Stefanos Paikos



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Reaching for Dusk”,
de Stefanos Paikos
Curadoria | Alexia Alexandropoulou
Encontros da Imagem Braga 2025
Avenida da Liberdade, Braga
18 Set > 02 Nov 2025


No coração vibrante da Avenida da Liberdade, em Braga, uma exposição da 35.ª edição dos Encontros da Imagem convoca o olhar do público para a crua realidade do aterro de Mbeubeuss, nas imediações de Dakar, capital do Senegal. Activo desde 1968 e com uma área total de cerca de 115 hectares, este espaço aberto e intenso recebe diariamente três mil toneladas de resíduos, transformando-se num palco onde a sobrevivência se tece entre o caos e a esperança. Aqui, quatro milhares de pessoas vivem e trabalham em condições degradantes e altamente perniciosas para a saúde, recolhendo cobre, alumínio, plástico e vidro para conseguirem ganhar o suficiente para sobreviver, muitas vezes o suficiente apenas para seguir em frente. Entre as montanhas de resíduos e a poeira do tempo, as imagens emergem como janelas para um mundo onde o lixo é matéria-prima e a dignidade se constrói a cada pedaço recuperado.

Parte de uma série a longo prazo que descreve o outro lado do deslocamento, dando visibilidade àqueles que permanecem num limbo, longe das costas europeias, mas profundamente envolvidos nas consequências dos movimentos migratórios, “Reaching for Dusk”, do fotojornalista grego Stefanos Paikos, é uma viagem sensível e poderosa ao maior aterro sanitário a céu aberto da África Ocidental. Mais do que um local de despejo, Mbeubeuss é o refúgio de milhares que buscam no trabalho árduo o sustento para continuar, muitas vezes à custa da saúde e da segurança. Estas imagens captam o limiar entre o fim e o começo, um espaço onde o sonho da migração se entrelaça com a dura realidade da luta diária. É um testemunho que rompe o silêncio sobre a face oculta do deslocamento: aqueles que permanecem, que resistem longe dos seus territórios de origem, imersos numa economia informal que desafia a precariedade. A exposição na Avenida da Liberdade convida-nos a olhar de frente para estas histórias de sobrevivência, nas quais o impacto visual se traduz em urgência e empatia, tornando palpável o drama invisível.

À sombra da modernidade e da expansão urbana de Dakar, Mbeubeuss revela a complexidade da gestão dos resíduos num contexto onde o crescimento económico não elimina as desigualdades profundas. De lago seco a montanha de lixo, este aterro é hoje um epicentro ambiental e social, onde o desafio da poluição se junta à luta por condições mais humanas. Enquanto se aguarda a reabilitação do aterro, há projectos inovadores e inclusivos a serem desenvolvidos, valorizando o trabalho dos recolectores e oferecendo-lhes melhores condições de vida e de trabalho, desde casas de banho móveis a equipamentos de proteção e espaços comunitários de lazer e saúde. Entretanto, não cessa de aumentar o fluxo daqueles que viajam desde a África Ocidental para Mbeubeuss, atraídos pelos testemunhos de um lugar onde o trabalho, embora perigoso, oferece esperança. A exposição nas ruas da cidade, sob o céu aberto da Avenida da Liberdade, transforma estas realidades em imagens que confrontam e sensibilizam, aproximando o público de um mundo distante e, ao mesmo tempo, urgente e presente, um local como beco sem saída e como ponto de partida, onde o futuro é sonhado a peso.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

FESTIVAL: Encontros da Imagem Braga 2025



FESTIVAL: Encontros da Imagem - Festival Internacional de Fotografia e Artes Visuais Braga 2025
Direcção | Manuel da Cunha Santos, Carla Bacelar Ferreira
Direcção artística | Vítor Nieves
Equipa Curatorial | Alexia Alexandropoulou, Daniel Bastos, Elina Heikka, José Bacelar, Manuel Sendón & Xosé Lois Suárez Canal, Daniel Moreira e Rita Castro Neves, Rui Prata, Xosé Lois Vázquez
Artistas | Alfredo Cunha, Carlos Folgoso, Elisa Freitas, Gérald Bloncourt, Gil Raro, José Cruzio, Matevž Čebašek, Miguel De, Pierpaolo Mittica, Roberto de la Torre, Sergio Marey, Stefanos Paikos, Vari Caramés e outros
Avintes, Barcelos, Braga, Guimarães, Porto e Vila Verde
18 Set > 02 Nov 2025


Os Encontros da Imagem constituem o maior festival de fotografia existente no país e emparceira os grandes festivais de fotografia europeus. Com inicio em 1987, o certame tem constituído, nestes últimos trinta anos, uma esteira essencial para a divulgação e a criação fotográfica. As primeiras edições centraram-se na apresentação de autores clássicos essenciais para a compreensão da história da fotografia e, simultaneamente, autores contemporâneos que apresentavam as linhas mais recentes de representação. Paulatinamente, os Encontros foram alargando os seus objetivos, chegando em 2025 à sua 35.ª edição e fazendo dela uma forma de apresentar uma verdadeira “manifestação de interesses”. Mais do que um mote, este título funciona como um gesto público, um manifesto de interesses renovados que o festival adquire e partilha, consolidando o seu legado e lançando novos compromissos para o futuro. Este mote reflete também a intenção de olhar criticamente para o seu percurso. Na sua meia-idade — 35 edições ao longo de 38 anos — os Encontros da Imagem assumem a necessidade de uma pausa reflexiva que questiona a função deste e, por extensão, de outros festivais de primeira geração: repensar as conquistas alcançadas e avaliar a sua pertinência na actualidade.

O visitante ocasional não terá esta percepção, mas os “habitués” dos Encontros da Imagem perceberão muito facilmente uma, digamos, “reconfiguração” em relação a anteriores edições. Os limites entre as disciplinas artísticas mostram-se mais diluídos, com o festival a expandir-se para além da fotografia. Embora esta continue a ser o seu foco central, o programa integra de forma decisiva a performance, a instalação, a escultura e a videoarte, explorando territórios que enriquecem a experiência estética do público. Para reforçar a ligação com a comunidade e atrair novos públicos, a edição de 2025 inclui mais exposições de rua, expandindo a presença do festival para além dos espaços convencionais. Numa assumida “Manifestação de Interesse”, esta edição do Festival estrutura-se em três núcleos expositivos, cada um com a sua abordagem única e complementar. Estes núcleos — “Dissidências”, “Argumentários” e “Transições” — foram concebidos para explorar o tema central sob diferentes perspectivas, gerando diálogos, tensões e conexões. Cada programa aponta para aspectos cruciais da fotografia contemporânea e das artes visuais, desde a celebração da inovação e diversidade até à reflexão sobre o percurso e identidade do próprio festival, culminando na exploração das conexões regionais e identidades divergentes.

Braga continua a ser o fulcro dos Encontros da Imagem, com os pólos expositivos a estenderem-se a Avintes, Barcelos, Vila Verde, Porto e Guimarães. Daquilo que me foi possível ver num dia sempre preenchido, destacaria as exposições “Lebensborn”, de Angeniet Berkers, no Museu Nogueira da Silva, e que aborda o “Lebensborn”, programa fundado na Alemanha em 1935 e que foi concebido para proporcionar ao Terceiro Reich uma nova geração de líderes e oficiais da SS, e “Reaching for Dusk”, de Stefanos Paikos, em plena Avenida da Liberdade, e que documenta o quotidiano em Mbeubeuss, o maior aterro sanitário a céu aberto da África Ocidental, localizado nos arredores de Dakar, no Senegal, uma frente negligenciada na história da migração. Patente na Galeria da Estação, “Cinematica”, de Teresa Freitas, tem a curiosidade de confrontar o visitante com uma estética cromática específica, levando-o a questionar a autenticidade das cenas apresentadas. Na sua dimensão foto-documental, “Photographo”, de Alfredo Cunha, e “A Emigração Portuguesa a Salto”, de Gérald Bloncourt, são duas exposições a não perder. A primeira pode ser vista na Zet Gallery, enquanto a segundo está patente no Arquivo Municipal. Os Encontros da Imagem prolongam-se até ao dia 02 de Novembro.

domingo, 12 de outubro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Terra e os Camponeses - Trás-os-Montes na Década de 1980” | Georges Dussaud



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Terra e os Camponeses - Trás-os-Montes na Década de 1980”,
de Georges Dussaud
Curadoria | Alexandre Castro
Centro de Fotografia Georges Dussaud
Exposição de Longa Duração


A série fotográfica que Georges Dussaud desenvolveu em Trás-os-Montes, a partir da década de 1980, constitui um corpo de trabalho fundamental para a compreensão dos cruzamentos entre fotografia documental, antropologia visual e memória colectiva. O fotógrafo encontrou, nas aldeias do Nordeste português, comunidades cuja organização testemunhava - e, em certa medida, continua a testemunhar - um forte enraizamento comunitário, no que tem de social, económico e cultural. Importa lembrar que a sua aproximação ao território português ocorreu num contexto histórico de transição democrática e reconfiguração histórica, em que o país procurava redefinir-se após décadas de clausura política. Ao privilegiar o espaço rural transmontano, Dussaud fez deslocar o foco do discurso modernizador dominante, propondo uma leitura contra-hegemónica da contemporaneidade. As suas imagens funcionam, assim, como dispositivos de observação etnográfica e, simultaneamente, como construções estéticas que problematizam as noções de autenticidade e intemporalidade.

A prática fotográfica de Dussaud inscreve-se na genealogia da fotografia humanista, mas distingue-se pela dimensão fenomenológica do seu olhar. O sujeito representado não é objecto de contemplação, mas interlocutor num processo dialógico de co-presença. Cada imagem constitui um enunciado visual em que a dimensão estética se conjuga com uma epistemologia do real, problematizando as fronteiras entre documento e representação. O seu olhar é, assim, simultaneamente analítico e poético, articulando observação participante e tradução visual da experiência humana. O uso do preto e branco, aliado a uma composição rigorosa e à exploração da luz natural, opera como estratégia de abstracção simbólica, sublinhando a densidade material dos corpos, dos gestos e das paisagens. Dussaud converte o quotidiano rural em signo de resistência ontológica face à aceleração histórica, elaborando uma poética da permanência. Neste sentido, a sua obra propõe uma hermenêutica da vida rural enquanto espaço de identidade e memória, constituindo-se como arquivo sensível que desafia as narrativas lineares do progresso e da modernidade.

No contexto português e internacional, Georges Dussaud ocupa um lugar de relevo na consolidação da fotografia documental enquanto campo interdisciplinar onde arte, antropologia e história cultural se misturam e confundem. O seu contributo ultrapassa a dimensão estética, configurando-se como uma forma de investigação visual orientada para a salvaguarda do património imaterial e das práticas sociais em vias de transformação. O Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança, institui-se como dispositivo de mediação e transmissão desse legado, promovendo a investigação científica, a formação especializada e a difusão pública da fotografia como instrumento cognitivo e cultural. É lá que vamos encontrar “A Terra e os Camponeses - Trás-os-Montes na Década de 1980”, exposição de longa duração que se afirma como laboratório de reflexão sobre a arte e a história. Deste modo, a obra e o seu enquadramento institucional contribuem para repensar o papel da fotografia na construção de identidades e memórias, consolidando o valor do olhar de Dussaud como um gesto crítico e humanista de resistência à amnésia contemporânea.

sábado, 11 de outubro de 2025

CINEMA: "Lavagante" | Mário Barroso



CINEMA: “Lavagante”
Realização | Mário Barroso
Argumento | António-Pedro Vasconcelos
Fotografia | Mário Barroso
Montagem | Micael Espinha
Interpretação | Francisco Froes, Nuno Lopes, Júlia Palha, Leonor Alecrim, Diogo Infante, Rui Morisson, Afonso Lagarto, José Alberto Lemos, Rodrigo Balseiro, Ricardo Rodrigues, Sérgio Martins, Rafaela Simas, Simão Costa, Rui Miguel, Carlos Leitão, Manuel Neto
Produção | Paulo Branco
Portugal | 2025 | Drama, Romance | 92 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar Castello Lopes
07 Out 2025 | ter | 19:00


De tempos a tempos, o cinema português surge como fórum privilegiado de interrogação e reconstrução da memória histórica da ditadura e das suas implicações políticas, sociais e morais. De forma crítica, é capaz de operar como instrumento de análise das estruturas de poder e das formas subtis de repressão que marcaram a ditadura, emergindo como um laboratório de memória colectiva, onde se revisitam traumas e se reconfiguram identidades. Filmes como “Brandos Costumes”, de Alberto Seixas Santos, “Os Mutantes”, de Teresa Villaverde, “A Costa dos Murmúrios”, de Margarida Cardoso ou “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, são exemplos de uma certa desmontagem dos mecanismos quotidianos de opressão e conformismo moral que sustentaram o Estado Novo. Por sua vez, “Capitães de Abril”, de Maria de Medeiros, e “Linha Vermelha”, de José Filipe Costa, questionam o próprio imaginário da revolução e da utopia. É nestas águas que “Lavagante” mergulha, afirmando-se no particular território da resistência simbólica, onde recordar é um gesto político e ético: Uma forma de compreender o que fomos, para continuar a pensar o que somos.

Realizado por Mário Barroso, aclamado director de fotografia com colaborações em alguns dos filmes mais emblemáticos de Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou José Fonseca e Costa, “Lavagante” é uma alegoria pungente sobre um país paralisado, entre a repressão da ditadura e as frustrações da oposição democrática. Cecília, jovem calculista e enigmática, seduz Daniel, médico solidário com os estudantes durante a Crise Académica de 1962, mas acaba por trair a relação ao ceder à pressão sedutora e insidiosa de um inspector da polícia política. Através de uma história de predação e chantagem amorosa, o filme recompõe o universo masculino marialva e encena os impasses de uma geração esmagada entre a fraude eleitoral de 1958, a Guerra Colonial e a asfixia provocada pela censura, pela moral católica e pela brutalidade da PIDE. Conduzida retrospectivamente por um narrador interventivo e irónico, a narrativa instala-se num espaço onde o realismo social se cruza com a fábula, abrindo caminho à metáfora do lavagante — o animal que engorda a presa até devorá-la — e que se aplica tanto ao regime como às próprias personagens, consumidas por forças maiores do que elas.

Académico no melhor sentido do termo, filmado num preto e branco depurado e de enorme beleza, “Lavagante” vive da subtileza de um argumento apenas simples na sua aparência. Lisboa surge como palco principal da acção, especialmente nos momentos vividos em torno do 1.º de Maio de 1962 fortemente reprimido, marcado por despedimentos, espancamentos, prisões, torturas e assassinatos, mas que viria a valer à classe operária a conquista da jornada de oito horas de trabalho diário. Embora simbólicas, as personagens são marcadas por um certo esquematismo funcional, servindo o propósito do filme sem nunca caírem na caricatura. Francisco Froes, Nuno Lopes e Júlia Palha, particularmente esta última, atingem patamares interpretativos de excelência, mostrando-se convincentes nos seus papéis. Melodramático, com o “E Lucevan le Stelle”, famosa ária do terceiro acto da “Tosca” em pano de fundo, “Lavagante” é todo um sonho de vida que se desfaz que surge aos olhos do espectador. Libertado mas destroçado, Daniel abandonará um país eternamente adiado, mão trémula que acena por entre os escombros — ideia fantasmática de uma esperança desfeita, à espera de um futuro que tarda em nascer.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CONCERTO: “Na Pele da Terra” | Mário Barreiros



CONCERTO: “Na Pele da Terra”
Com | Mário Barreiros (bateria), Ricardo Toscano (saxofone alto), Carlos Barreto (contrabaixo) e Leonardo Pinto (electrónica)
EstarreJazz 2025
Cine-Teatro de Estarreja
08 Out 2025 | qua | 21:30


“Na Pele da Terra” começou por ser um projecto apresentado por Mário Barreiros à Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música – Interpretação Artística, especialização Bateria Jazz. O projecto trazia consigo a ideia de combinar um trio de jazz com processamento electrónico por computador, abrindo espaço a que os músicos controlassem os efeitos e as alterações sonoras durante a performance, apoiando-se na dinâmica transformadora da tecnologia nesse fascinante diálogo entre o orgânico e o digital. “Isso gera uma dinâmica única e imprevisível, desafiando a ideia tradicional de que o jazz é puramente baseado na espontaneidade humana”, referia, a propósito, Mário Barreiros. Graças à electrónica, efeitos como delay, modulação, sampling e distorção tímbrica são passíveis de serem manipulados em tempo real, transformando os sons tradicionais do jazz em paisagens sonoras complexas e camadas texturais que transcendem os limites dos instrumentos acústicos convencionais. Em última análise, a música para trio de jazz com processamento electrónico representaria uma jornada de exploração musical onde o passado encontra o futuro. Uma abordagem disposta a desafiar as convenções, abrindo portas para a criatividade ilimitada e a descoberta sonora.

Foi com esta disposição que Mário Barreiros se apresentou ao público de Estarreja, na noite inaugural do EstarreJazz 2025. Em palco, ao seu lado, Ricardo Toscano (saxofone alto) e Carlos Barreto (contrabaixo) assumiram a parte instrumental, enquanto Leonardo Pinto assinou o desenho de som e Nélson Carvalho tratou da sua distribuição espacial - de forma magistral, diga-se. Ao unir a riqueza da tradição do jazz com as possibilidades da tecnologia moderna, os músicos poderam criar uma música enraizada na história e, ao mesmo tempo, verdadeiramente contemporânea. Mas “Na Pele da Terra” foi além deste lado, digamos, experimental (nos anos 1970, já Miles Davis se apoiava na electrónica para desenhar o seu jazz vanguardista). Delicada e elegante, a música contida no projecto é também uma pequena reflexão sobre a frágil e microscópica dimensão daquilo a que chamamos “vida na Terra” quando comparada com a imensidão do Cosmos. A sensação de humildade diante da vastidão do Universo, pode inspirar uma apreciação mais profunda da beleza e da fragilidade da vida na Terra e, nessa medida, “Na Pele da Terra” é um manifesto sobre a responsabilidade, individual e colectiva, que temos no actual estado de pré-colapso do nosso ecossistema e uma homenagem a todos os que participam na preservação do nosso habitat.

Socorro-me da Folha de Sala (um verdadeiro luxo nos tempos que correm) para dar nota do alinhamento de um concerto breve no tempo, mas de alta intensidade, contagiando de emoção e energia um público entusiasta. “O Solo”, composição de Mário Barreiros, abriu o concerto a olhar as árvores e a terra, o que cresce e permanece, oferecendo aos presentes uma experiência sensorial única. Barreiros, Barreto e Toscano punham em prática o seu enorme virtuosismo, mas era na electrónica que o ouvido se apurava, no que reverberava e amplificava de dimensão acústica. Dedicada a todos os que de alguma forma contribuem para uma reconciliação entre a humanidade e a natureza, atitude de importância crucial para o futuro do nosso ecossistema, “One Billion Trees”, de Mário Barreiros, foi um grande momento de jazz, assente na enorme capacidade de improvisação de Ricardo Toscano e Carlos Barreto. “Fall”, de Wayne Shorter, surge como uma meditação sobre a passagem do tempo - o Outono como metáfora da maturidade artística e humana, oferecido em harmonias amplas e movimentos introspectivos, num convite à contemplação do tempo e da existência.

A segunda metade do concerto abriria com “Goal 14”, uma composição assinada conjuntamente por Mário Barreiros e Ricardo Toscano. Apelando à protecção dos ecossistemas marinhos, ao combate à poluição e à sobrepesca, o tema tem como ponto de partida uma improvisação de saxofone alto, pontuado por arcadas de contrabaixo, e processamento electrónico por computador em tempo real. Mário Barreiros compôs “Sol” (fantástica a imagem projectada na tela), balada inspiradíssima que homenageia o coração luminoso que faz pulsar o planeta e que mereceu do público a mais prolongada e entusiástica ovação da noite. John Coltrane não podia faltar no serão de Estarreja e “Naima” foi mais um momento alto do concerto, uma balada pontuada por uma sequência de acordes suspensos capazes de criar uma atmosfera etérea e meditativa. “Na Pele da Terra”, de Leonardo Pinto, encerrou da melhor forma o momento inaugural do EstarreJazz, fazendo assentar a música na crosta terrestre, o verdadeiro palco da vida, a “pele” que sustenta e transforma tudo o que existe à sua margem. O solo inicial do contrabaixo é precioso, como preciosos são os diálogos que virá a estabelecer com o saxofone e a bateria, sob as boas graças - ainda e sempre - da electrónica. Um concerto memorável.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

CONCERTO: Orquestra de Jazz do Douro & Júlio Pereira



CONCERTO: Orquestra de Jazz do Douro
Com | Júlio Pereira
Direcção musical | Paulo Martins
Festival Internacional Douro Jazz 2025
Teatro Municipal de Vila Real
03 Out 2025 | sex | 21:30


Júlio Pereira não precisa de apresentações… Figura incontornável no panorama musical português, destaca-se enquanto compositor, instrumentista, investigador e produtor. O seu trabalho tem sido determinante para a valorização e redescoberta dos instrumentos de corda tradicionais e estende-se à criação de escolas e instrumentistas, verificada em Portugal a partir dos anos 80. No seu percurso, destaca-se também a íntima ligação à carreira de José Afonso, a partir de finais dos anos 70, bem como a sua participação em trabalhos conjuntos com Pete Seeger, Kepa Junkera e The Chieftains. A partir da década de 1980, a sua obra assumiu um papel crucial na reabilitação do cavaquinho, instrumento que elevou a novos horizontes estéticos através do álbum homónimo, onde tradição e inovação se conjugam com uma notável sensibilidade artística. A sua acção tem contribuído de forma significativa para o reconhecimento institucional e académico de um conjunto particular de cordofones, afirmando-os como elementos centrais da identidade musical portuguesa. É num duplo eixo que se inscreve o seu legado: preservação e revitalização da tradição, aliadas a um impulso criativo que permite a sua reinterpretação e permanência no presente e no futuro.

Foi com estes pergaminhos que Júlio Pereira se apresentou no Teatro Municipal de Vila Real, na noite inaugural da 20.º edição do Festival Internacional Douro Jazz 2025. Ao seu lado esteve a Orquestra de Jazz do Douro, sob a direcção do maestro Paulo Martins, estabelecendo uma tão forte quanto insuspeita ponte entre a música de raiz tradicional e as virtualidade do jazz no que pode ter de inovação e improviso. Foi uma noite ao encontro de novas possibilidades tímbricas, formais e expressivas, que teve no álbum “Rasgar” a sua âncora e nos arranjos para orquestra o lastro de uma noite de sonho. “Rasgar”, tema que dá nome ao mais recente trabalho de Júlio Pereira, abriu o concerto, trazendo com ele a essência de uma música que soube afirmar-se ao longo dos tempos no que tem de inspiração, pureza e liberdade. Nela, cada acorde é um sopro de essência, um fio invisível que tece o silêncio em melodia viva. Seguiu-se “Pulga Saltitante” e, com este novo tema, uma viagem pela história ao tempo da emigração madeirense para o Havai, na bagagem a braguinha, o machete e o rajão, instrumentos que viriam a estar na origem do ukelele (no idioma havaiano, “ukulele” quer dizer “pulga saltitante”, por causa do movimento frenético das mãos do tocador).

O público começa a entrar na festa e ouvem-se as primeiras palmas a compasso. Os acordes que abrem o tema seguinte fazem lembrar o avançar dos ponteiros de um relógio. “Ler Devagar” é uma homenagem àquela que viria a ser considerada uma das vinte livrarias mais belas do mundo. Seguem-se incursões em universos menos explorados por Júlio Pereira, com “Museu do Fado” e “Noitada Extravagante”, este último dedicado ao Alentejo e que viria a receber a mais prolongada ovação da noite. Celebra-se a boa música e não podia faltar Zeca Afonso, com quem Júlio Pereira colaborou a partir de 1979, vindo mesmo a acompanhá-lo no último concerto da sua carreira, em 1983, no Coliseu do Porto. “Os Índios da Meia-Praia” foi o tema escolhido e nele o público teve uma acção importante, chamado a afinar as gargantas e a trautear o estribilho. Também Sara Tavares foi lembrada em “Malhão Morno”, bem como a galega Uxía, com o tema “Laranxa”. Num momento só seu, a Orquestra interpretou “Escrever o Sol”, um tema do álbum “Janelas Verdes”, mostrando a harmonia e o rigor que foram seu apanágio ao longo do concerto. Faltou apenas o rasgo de um ou outro solista a colocar a sempre desejada nota de irreverência num todo certinho, mas apenas isso. Um belo serão, a mostrar que Júlio Pereira continua a “rasgar” os melhores caminhos da melhor música.

[Foto: Teatro Municipal de Vila Real | https://www.facebook.com/teatrovilareal]

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

CINEMA: "Batalha Atrás de Batalha" | Paul Thomas Anderson



CINEMA: “Batalha Atrás de Batalha” / “One Battle After Another”
Realização | Paul Thomas Anderson
Argumento | Paul Thomas Anderson, Thomas Pynchon
Fotografia | Michael Bauman
Montagem | Andy Jurgensen
Interpretação | Leonardo DiCaprio, Sean Penn, Benicio Del Toro, Teyana Taylor, Regina Hall, Wood Harris, Alana Haim, Shayna McHayle, Paul Grimstad, Dijon Duenas, Nia Leon, Tisha Sloan, Alberto Garcia, Eric Schweig, Tony Goldwyn, D.W. Moffett
Produção | Paul Thomas Anderson, Sara Murphy, Adam Somner
Estados Unidos | 2025 | Comédia, Acção, Crime, Drama. Thriller | 161 Minutos | Maiores de 16 Anos
Vida Ovar Castello Lopes
06 Set 2025 | seg | 15:55


Bob, um ex-revolucionário que vive marginalizado e sob o efeito constante de drogas, é puxado de volta à realidade quando a sua filha Willa desaparece. Lançado numa busca desesperada, o homem irá viver uma série de aventuras imprevisíveis, onde convergem as tensões do presente e o seu passado revolucionário. O regresso do seu grande antagonista, o Coronel Steven J. Lockjaw — um nome quase caricatural, a remeter para os vilões dos filmes da Marvel ou da DC Comics —, adiciona à acção uma camada extra de perigo e simbolismo, enquanto o filme explora temas candentes como o racismo, a imigração, a repressão estatal e o clima político polarizado, em particular na instável e conflituosa zona de fronteira entre os Estados Unidos e o México. Esta base sólida transforma o filme numa espécie de sátira mordaz, mas que, ao contrário de outras obras, se recusa a ser categorizada num único género cinematográfico, transitando entre a acção, a comédia, o drama e o thriller, com alguns pozinhos de ficção científica de permeio.

Apoiado numa trama simples, “Batalha Atrás de Batalha” apresenta uma narrativa multifacetada, provocadora e com um forte contexto político e social. O talento do elenco é um dos pontos altos da produção, dando vida a uma obra que se expande entre o hilariante o sombrio. Sean Penn encarna Lockjaw com uma intensidade repulsiva que cimenta o personagem como um verdadeiro vilão, num papel que é mais uma prova da sua capacidade de se transformar e impactar o público. Mesmo numa prestação breve, Benicio del Toro eleva-se ao melhor nível graças ao seu carisma inconfundível. Enfim, Leonardo DiCaprio brilha como Bob, num papel cómico e estranhamente cativante, revelador de um actor confortável em papéis excêntricos e complexos. A cena em que se esforça por recordar uma parte crucial de uma linguagem codificada é memorável, evidenciando o humor involuntário que permeia o filme. Tal como é memorável a cena da perseguição automóvel numa recta a perder de vista, toda ela em sobe e desce, capaz de deixar nauseados os espectadores mais sensíveis.

Apesar destas qualidades, a longa duração do filme e o excesso de linhas narrativas sobrecarregam o espectador, diluindo o impacto de algumas sequências. Ainda assim, esta obra de Paul Thomas Anderson destaca-se pela coragem de experimentar, pela actualidade e relevância dos temas abordados e pelo humor incisivo que, mais do que entreter, se destina a fazer pensar. Em suma, “Batalha Atrás de Batalha” é uma obra cinematográfica que provoca, diverte e desafia ao mesmo tempo. A mistura de géneros e a abordagem mordaz ao contexto político actual transformam o filme numa peça relevante no – paupérrimo, diga-se – contexto do cinema recente, enquanto os desempenhos marcantes de DiCaprio, Penn e companhia garantem um conjunto de momentos de excelente cinema. Longe de ser um filme perfeito, a sua ousadia formal e o comentário social penetrante elevam-no a um patamar acima do simples divertimento, reforçando a reputação de Paul Thomas Anderson como um mestre da sátira contemporânea.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

LIVRO: "Leme" | Madalena Sá Fernandes



LIVROS: “Leme”,
de Madalena Sá Fernandes
Edição | Madalena Alfaia
Ed. Companhia das Letras, Março de 2023 (7.ª republicação, Agosto de 2025)


“A necessidade de ‘escrever’ uma pessoa para, de alguma forma, nos apaziguarmos com ela ou dela nos libertarmos, é o que me tem movido para escrever sobre o papel do Paulo na minha vida. Transformando-o em personagem, alimento a crença de que ele passe a pertencer mais a estas páginas do que à minha vida. É uma tentativa de me salvar, não pela fuga, mas pelo encontro na escrita. Um encontro feito de palavras. Passei anos a evitar pensar nele, a fugir, e não resultou, pelo contrário. Talvez só desta forma eu consiga eliminar a sua presença, como se estivesse a limpar finalmente toda a areia que ficou colada entre os dedos dos pés.”

“Leme” narra a história de Madalena, uma criança que cresceu num ambiente familiar disfuncional, assistiu à separação dos pais e, mais tarde, viveu com a mãe e o padrasto. O clima de tensão e os episódios frequentes de violência doméstica obrigaram-na a carregar dentro de si um peso esmagador. Em estado de alerta permanente, soube que um som mais brusco ou um olhar mais frio poderia ser o prenúncio de um novo momento de terror. O medo tornou-se o seu idioma secreto; aprendeu a ler o ambiente com olhos de sobrevivente, a esconder-se no silêncio, a antecipar a raiva como quem tenta adivinhar uma tempestade. Esporádicos, os gestos de amor surgiam feridos, confusos, raramente seguros. Na ausência de conforto, aprendeu a alimentar-se da solidão - não porque quisesse, mas porque nela encontrava algum refúgio, algum controlo. A fúria e a tristeza misturaram-se com uma culpa que não era sua, mas que se instalou como se fosse. Cresceu depressa demais, mas por dentro permaneceu prisioneira, parada no tempo, o coração cheio de perguntas sem respostas e uma carência funda, incapaz de nomear.

“Escreve de forma clara e limpa sobre o que dói.” A frase de Ernest Hemingway está na origem de uma obra literária incisiva e libertadora, exercício catártico que possibilitou a Madalena Sá Fernandes resolver um passado sempre presente e assumir com normalidade a figura de uma pessoa que, além do que fez sofrer, sofreu também de maneira intensa. Dividido em capítulos curtos, o livro mescla os momentos de tensão com os de acalmia, vertidos em longos dias de férias na praia, nas pequenas alianças, no gosto da mãe pela leitura - “os livros dela pareciam sobreviventes de guerra; acabavam enrugados, com páginas amareladas pelo café ou danificadas pela cinza dos cigarros, marcas de quem lhes imprimia vícios enquanto absorvia as virtudes.” São momentos felizes, que servem de contraponto às conturbadas vivências junto de alguém que sofria de bipolaridade, vivia obcecado pela organização e pela arrumação, e que tinha nos ímpetos de agressividade, nos insultos, nos gritos ou nas portas arremessadas com dramatismo, traços distintivos de uma personalidade doentia.

Narrado na primeira pessoa, o romance revela-se de uma enorme coragem, a escritora a partilhar com o leitor um viver e um sentir que foi o seu. Fá-lo de forma inteligente, alimentando uma proximidade cuidada às situações de maneira a imprimir-lhes a carga dramática que verdadeiramente possuem, mas distanciando-se o suficiente para evitar a prosa condescendente, a tentação panfletária ou a vitimização. Ao assumir o livro no plano literário como excelente obra que é, mostra a sua rejeição pelo sensacionalismo e foge do universo da auto-ajuda. A escrita é fluida, solta, recheada de momentos com os quais o leitor facilmente se identifica, integrando na história o calor da compreensão e da empatia por alguém que vive em solidão. Eis a melhor forma de iluminar a vida de Madalena e de ergue-la no que tem de intrinsecamente humano, bom e justo. Entre o romance biográfico e a auto-ficção, “Leme” é um retrato de vida amargo, de uma crueza que agride no que tem de medo e dor, mas ao mesmo tempo redentor, pelo que revela de firmeza, esperança e força de viver.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: "A Natureza e a Graça" | Graça Morais



EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: “A Natureza e a Graça”,
de Graça Morais
Curadoria | Graça Morais, António Meireles
Centro de Arte Contemporânea Graça Morais
15 Fev > 26 Out 2025


Nascida em 1948 na aldeia de Freixiel, concelho de Vila Flor, em pleno coração de Trás-os-Montes, Graça Morais tem vindo a construir uma obra profundamente enraizada nas vivências do mundo rural transmontano. A paisagem agreste, os ritmos da vida agrícola e as tradições ancestrais da região marcaram de forma determinante o seu percurso artístico. A infância passada num ambiente fortemente ligado à terra e à natureza traduziu-se numa sensibilidade pictórica que dá voz ao universo rural, particularmente à figura da mulher camponesa, frequentemente representada como símbolo de resistência e de ligação primordial à terra. Longe de surgir como mero pano de fundo, a natureza é elemento activo e simbólico na sua obra, reflectindo uma visão telúrica e quase arquetípica do mundo. As suas composições, de traço expressivo e paleta dominada por tons terrosos, evocam a dureza e a dignidade da vida no campo, conferindo-lhe uma dimensão simultaneamente poética e política. Dessa forma, Graça Morais constrói uma linguagem visual singular, onde a memória, a identidade e o território se entrelaçam de forma íntima e indissociável.

“A Natureza e a Graça” responde ao desejo da artista de partilhar obras que testemunhem a sua ligação à natureza. “Este é o mundo das pequenas coisas. É o universo singular das plantas, dos animais, dos objectos, dos humanos que sempre influenciaram a minha vida pessoal e sensível”, pode ler-se na Folha de Sala da exposição. Ciente de que “tudo está ligado a tudo”, Graça Morais expõe-se, através deste notável conjunto de trabalhos, no que há em si de emoções, pensamentos, memórias carregadas de beleza. São suas as seguintes palavras: “Ao encontrar na terra uma enxada velha e abandonada, trago-a para a minha pintura porque ela representa um tempo oposto ao mundo da perfeição das máquinas e à robotização que se aproxima e domina a vida dos nossos dias.” E ainda: “Quando desenho e pinto as cerejas, as uvas, os tomates, as azeitonas, as perdizes, dou-lhes um novo sentido. Nas minhas curas de silêncio e solidão, faço um inventário de uma história colectiva, através destes registos.” São palavras de quem se sente habitada pela natureza, se mostra grata e feliz pela obediência aos ciclos das estações do ano, mas que também sente medo quando esta se revolta e traz a destruição e o caos ao mundo.

“Considero que a Arte pode ajudar a Humanidade a enfrentar com coragem as situações de guerra e da ameaça dos desastres climáticos que nos trazem tanto sofrimento”, diz Graça Morais. “A Natureza e a Graça” é uma exposição luminosa e seminal, revelando o que a Pintora e a Natureza têm de solar e de demanda persistente da felicidade. Graça Morais pinta uma Natureza em graça, a do ciclo da vida em permanente geração e renovação. Promessa cumprida de semente que germina, mesmo que as condições sejam difíceis. Assim é a Natureza. Assim é a Pintora. Forças matriciais que nos surpreendem e deslumbram pelas suas criações, nunca fins em si mesmas, mas sementes de muitas outras germinações. Esta exposição apresenta sobretudo obras inéditas. Com alguns anos, algumas. Recentes, muitas. Surpreendentes todas as obras, pelo virtuosismo e pela expressão viva, brilhante e inovadora, chegando até à abstração, raríssima na obra da Pintora. Mostrando que, como a Natureza, Graça Morais não cabe em limites fechados e fazendo o convite para que cada visitante encontre a sua Natureza e a Graça.

domingo, 5 de outubro de 2025

CONCERTO: "Anónimos de Abril" | Joana Alegre, José Fialho Gouveia e Rogério Charraz



CONCERTO: “Anónimos de Abril”
Com | Joana Alegre, José Fialho Gouveia e Rogério Charraz
XI Festival Literário de Ovar
Escola de Artes e Ofícios
19 Set 2025 | sex | 22:30


“Naquele 25 de Abril de 1974, um restaurante em Lisboa, situado na Rua Braancamp, celebrava um ano de existência. Para assinalar o aniversário, o gerente comprara cravos para oferecer às clientes. Mas com uma revolução em marcha o restaurante não abriu as portas e as flores foram distribuídas pelos funcionários. Celeste Caeiro, na altura com 40 anos, pôs-se a caminho de casa e cruzou-se com os tanques e os militares. Houve um que lhe pediu um cigarro, mas ela não tinha. Entregou-lhe, em vez disso, um cravo, que ele colocou no cano da espingarda. E, assim, Celeste criou para sempre a ligação entre os cravos e a liberdade.”

E se Abril fosse apagado da memória? Não o Abril dos livros ou dos palcos consagrados - que a esse nada nem ninguém o poderá apagar -, mas o outro, o dos rostos sem nome, das mãos anónimas que também fizeram história. Rogério Charraz, nascido depois da Revolução, tropeça um dia na história de Celeste Caeiro e é como se ouvisse Abril respirar pela primeira vez. Com José Fialho Gouveia, jornalista e letrista, decide erguer um palco onde as vozes caladas encontrassem música. Joana Alegre soma-se à viagem e as histórias ganham ainda mais corpo, ainda mais alma. E assim nasceu “Anónimos de Abril”, um espetáculo de canções que celebram as figuras escondidas por entre os ecos de cravos e memórias. O espetáculo cresceu, ganhou estrada, percorreu o país e encontrou novas histórias no coração do público. A memória de Abril alargou-se, ramificou-se. A coroar uma noite de celebração da palavra, “pousou” na Escola de Artes e Ofícios, tirando da sombra heróis discretos e enchendo de luz uma noite de liberdade.

Celeste Caeiro é apenas um dos “anónimos” celebrados num espectáculo que traz a Abril um rol de protagonistas cujas vozes e gestos nunca saíram do pequeno reduto da suas própria liberdade. Está neste caso Francisco Miguel Duarte, conhecido como Chico Sapateiro, um dos dez condenados que fugiram de Peniche em 1960. No total, passou vinte e um anos atrás das grades, dez dos quais no Tarrafal, para onde foi desterrado em duas ocasiões. Foi ele o último preso do campo de concentração aquando do seu primeiro encerramento, em janeiro de 1954, tendo passado seis meses sozinho com os carcereiros. Está também Belmira da Conceição Gonçalves, conhecida como a Sãozinha e que foi assassinada em 1962, na sequência do protesto das populações contra a decisão das autoridades da Ilha da Madeira em desviar as águas que corriam na Levada do Moinho para um novo curso. A PSP decidiu intervir em força e abriu fogo e uma das balas atingiu mortalmente a jovem estudante. Estão ainda Aurora Rodrigues e o Padre Alberto Neto, Benedicto Sousa Villar e Francisco Sousa Mendes, Jorge Alves e Arajaryr Campos e tantos outros, descobertos em relatos partilhados com outros “anónimos” ou em conversas com historiadores e guardiões da memória.

Numa sala cheia de gente com Abril nos genes, o concerto logrou esse desiderato maior de dar vida às vidas de outrora, contando a revolução dos cravos em vozes que nunca tiveram microfone, em gestos que não couberam nos jornais. José Fialho Gouveia abria cada um dos catorze temas com as histórias que lhes serviam de base. Rogério Charraz e Joana Alegre emprestavam a voz aos significativos e muito belos poemas e Sérgio Charrinho (trompete), Carlos Garcia (piano e clarinete) e Luís Pinto (baixo) cumpria a sua função de retaguarda, emprestando substância e consistência às histórias partilhadas. Numa dessas partilhas conhecemos Luísa, presa e torturada pela PIDE, que vive até hoje na angústia de ter aberto a porta à prisão do namorado ao admitir que pertencia ao PCP. Celeste Caeiro partiu em Novembro de 2024. Na altura da estreia do espectáculo, só quatro dos dezanove homenageados se encontravam vivos e Celeste era um deles. Rogério Charraz resumiria tudo num aviso decidido: “Se não preservarmos estas histórias, elas vão-se perder, vão-se esfumar.” Abril foi feito por muitos e muitos desses ainda esperam ser lembrados. Foi com este sentimento que, de pé, se cantou “Grândola Vila Morena”, a fechar um extraordinário serão.