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sábado, 22 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “100 Anos de Gérard Castello-Lopes”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “100 Anos de Gérard Castello-Lopes”,
de Gérard Castello-Lopes
Colecção Nacional de Fotografia
Centro Português de Fotografia
25 Out 2025 > 04 Jan 2026


Celebrar o centenário de Gérard Castello-Lopes no Centro Português de Fotografia é revisitar a génese silenciosa, mas decisiva, de um dos olhares mais singulares da fotografia portuguesa do século XX. Entre a inquietação intelectual e a discrição quase monástica, Gérard Castello-Lopes construiu uma obra marcada pela reflexão sobre o acto de ver: “Trata-se, claro, dum olhar fotográfico”, escreveria em artigo para a revista INDY, do já extinto jornal O Independente. A “dúvida” (assim se intitulava o artigo) acompanhou-o toda a sua vida. Haveria ou não um “olhar português”, parecia perguntar-se na forma como identificava as posturas mínimas, os gestos ínfimos, a verdade de um país. A fotografia do homem que, de costas, lê a tabela do comboio Lisboa–Sintra é paradigmática: não vemos a face, mas adivinhamos a história: O viajante vindo “de fora”, o melhor fato vestido, as mãos atrás das costas a segurar talvez a merenda. Gérard reconhece ali o que um estrangeiro dificilmente veria: a coreografia íntima do quotidiano português. É a isso que esta exposição regressa, ao modo como um fotógrafo, que começou a fotografar em 1956, soube distinguir o peso simbólico de cada gesto num país fechado e desigual, muito antes de Portugal se descobrir a si próprio através da imagem.

A carreira fotográfica de Gérard Castello-Lopes teve um início precoce e uma longa interrupção. Nos anos 50, a repressão estética e moral do Estado Novo e a hegemonia dos “academismos de salão” — aqueles salões onde se repetiam eternamente a ponte no nevoeiro, a loira intitulada Ingrid ou o seio casto da modelo paga à hora — afastaram-no do meio fotográfico. “Enfiei a Leica no saco”, confessará mais tarde. Só uma geração depois, em 1982, António Sena baterá à sua porta e “arrombará a arca” onde as fotografias jaziam esquecidas. “Vale Tudo Menos Tirar Olhos”, a primeira exposição na galeria Ether, marca o renascimento inesperado de um autor que regressa ao mundo artístico com a serenidade de quem nunca precisou de provar nada. Sena e Gérard coincidem na crítica à mediocridade e à censura dos júris oficiais entre 1910 e os anos 60, mas divergem no tom: Gérard é irónico, mordaz, irritado ainda com a “escatológica dieta” dos salonistas; Sena é metódico, historiográfico, quase militante na reconstrução de uma memória fotográfica portuguesa. Ao voltar a fotografar, já nos anos 80, Gérard Castello-Lopes procura um novo princípio: ver “como se fosse a primeira vez”. No Guincho, diante de uma pedra iluminada por um milagre de luz e mar, encontra a revelação de “fotografar o peso e o seu contrário”. A obra tardia nasce desta simplicidade sublime.

A presente exposição no Centro Português de Fotografia reúne não apenas a obra inicial, mas também os frutos de um percurso que, após 1982, se multiplicou em livros, documentários e projectos de redescoberta do país. O regresso a Monsaraz, em 2001, é talvez o episódio mais tocante da sua maturidade: revisitara o local onde fotografara, em 1963, na companhia de João Cutileiro, e encontra agora uma comunidade capaz de identificar todas as figuras retratadas trinta e sete anos antes. “Invadiu-me a saudade dum paraíso onde toda a gente se conhece”, escreveu a propósito. Essa capacidade de gerar reconhecimento, primeiro no fotógrafo, depois nos fotografados, é uma das marcas essenciais do seu trabalho e reforça a pertinência do tal “olhar português” que o acompanhou como dúvida existencial. Gérard Castello-Lopes fotografava de modo atento, anti-retórico, centrado na dignidade das pessoas e na delicadeza das situações banais. Não buscava o pitoresco, mas a intensidade silenciosa do real. Ao visitante desta mostra pede-se, como o artista pedia, benevolência e disponibilidade: olhar para as imagens não como documentos de época, mas como actos de percepção que decifram um país. Ao fazê-lo, talvez descubramos que essa dúvida — a existência de um certo “olhar português” — é menos uma questão teórica e mais um convite a ver o que sempre esteve diante de nós.

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