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terça-feira, 19 de março de 2024

CONCERTO: Bruno Pernadas



CONCERTO: Bruno Pernadas
Centro de Artes de Ovar
15 Mar 2024 | sex | 21:30


Foi em festa e com casa esgotada que o Centro de Artes de Ovar recebeu o concerto de celebração do 10º aniversário do álbum de estreia de Bruno Pernadas, “How can we be joyful in a world full of knowledge?”. Uma década em que o meu desconhecimento do universo musical deste que foi já designado por “meteorito” foi praticamente total, o que me levou a abraçar sem reservas a possibilidade de ouvir o que o músico tinha para mostrar, longe de imaginar o turbilhão de sensações e emoções que me esperava. A primeira surpresa veio com os nove elementos em palco – quase uma “big band”, com a  respectiva secção de metais –, entre os quais descortinei o saxofonista João Capinha, a trompetista Jéssica Pina e a guitarrista Francisca Cortesão, gente conhecida de outras andanças. Mas a surpresa maior veio graças ao engenho, inspiração e bom gosto dos temas compostos por Pernadas para este disco, distintos e harmoniosos, leves e densos ao mesmo tempo, geradores de imagens inesperadas e surpreendentes, como que atravessadas pelo cinema de Lynch, Kubrick ou Tarantino.

A propósito desta tour festiva, Rui Catalão escreveu: “Dez anos depois, quatro álbuns impecáveis e muitas bandas sonoras para filmes e espetáculos, o meteorito Bruno Pernadas continua a orbitar tranquilamente o nosso planeta. Com ouvintes espalhados um pouco por todo o mundo, a sua música está reservada a gente esclarecida com o sentido da alegria momentânea. Em cada novo tema, em cada nova canção (que no seu caso parecem várias canções dentro de uma só canção, como um álbum em miniatura), ele reinventa essa arte combinatória de viagem e descoberta que herdámos do barroco e que só por fogachos de distração se vai mantendo viva, quando memória, técnica e intuição se alinham. O título do seu primeiro disco veio a revelar-se um oráculo orientador do seu trabalho: como ter alegria num mundo soterrado em conhecimento? Como voltar à sensação de descobrir o paraíso que é música num cenário em que tropeçamos em tanta cópia e imitação?”

Pautando o alinhamento do concerto pela fidelidade ao álbum faixa a faixa, o artista foi abrindo uma verdadeira caixa de pandora e revelando as múltiplas faces de um projecto com uma boa dose de experimentalismo a unir a música folk ao jazz, a pop à world music, a electrónica ao rock psicadélico. O ecletismo da música de Bruno Pernadas faz com que sejam sedutores e envolventes os quatro cantos do seu mundo musical, intrigantes nas suas linhas, convergentes no seu colorido. Num convite à viagem, o artista propõe um conjunto de geografias indefinidas que são um desafio à nossa imaginação. “Indian Interlude” é um passeio à beira-mar, “Pink ponies don’t fly on Jupiter” é uma tarde a ler numa cama de rede, “Première” é um piquenique na floresta e “L.A.” é L.A., seja lá o que isso for. A solaridade que se desprende de cada música abraça e conforta. Afinal, de que forma podemos ser felizes num mundo atulhado de conhecimento? Seminal, a questão tem na música de Bruno Pernadas uma resposta bem simples.

[Foto: Joana Linda | Culturgest - Fundação CGD https://www.facebook.com/culturgest/]

segunda-feira, 18 de março de 2024

CONCERTO: "Liberdade25"



CONCERTO: “Liberdade25”
Sérgio Godinho & Os Assessores
Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha
16 Mar 2024 | sab | 21:30


Seis anos passados sobre o último concerto, volto ao sempre saboroso e apetecido frente a frente com Sérgio Godinho e a sua música. Uma espécie de ciclo que se repete, no recordar de músicas e poemas que são uma parte de mim, inscritos de forma indelével no conjunto das minhas mais gratas memórias, banda sonora dos meus ideais de liberdade e democracia. Aqueles que viveram as alegrias do “dia inicial inteiro e limpo”, que fizeram da esperança certezas e se deram as mãos por uma sociedade mais justa e melhor, sabem o quanto da força da luta se abriga nas canções de intervenção, na razão do seu protesto, no tocar a reunir que se ergue das vozes de Zeca Afonso ou José Mário Branco, de Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, Fausto Bordalo Dias, Manuel Freire ou, claro está, Sérgio Godinho. Esse mesmo Sérgio Godinho de quem guardo discos de muitas décadas, nomeadamente o “Pano Cru”, de 1978, LP inaugural da minha colecção, comprado com um dos meus primeiros salários. São infindáveis as vezes que o ouvi no gira-discos lá de casa… 

Assistir a um concerto de Sérgio Godinho - e são já muitos os regressos ao longo dos anos -, é tornar aos tempos em que mandávamos cartas em papel perfumado, exigíamos os pontos nos iis, queríamos todos ser Etelvinas e abraçávamos os pequenos nadas de que a vida é feita. É por isso que oportunidades como esta, espécie de cursos de actualização e aperfeiçoamento, não se podem perder. Mesmo se a idade do cantor já pesa bastante. Mesmo se a voz perdeu muito da sua elasticidade e a energia em palco já não é o que era. Mas este é homem é eterno, continua a “dar o litro”, o brilhozinho nos olhos quiçá mais intenso e vivo, as palavras avisadas sempre atentas na denúncia do trabalho infantil, na mão dada aos imigrantes, na lembrança de que a liberdade não está a passar por aqui. Foi isto que vivemos e sentimos ao longo de uma hora e três quartos de emoções fortes, gargantas ao rubro, aplausos vibrantes e dois regressos ao palco em “encores” mais do que reclamados. Sempre na certeza de que, aqui e agora, este é o primeiro dia do resto das nossas vidas.

Cobrindo um arco temporal de mais de meio século, onde cabem vinte álbuns de estúdio e dez gravações ao vivo, o concerto teve o seu início com “O Rei do Zum-Zum”, do álbum “Ligação Directa” e chegou ao fim com “Liberdade”, essa canção icónica do álbum à “Queima Roupa”, que nos põe a cantar a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Pelo meio jogámos ao boxe e tocámos bateria, fomos grão da mesma mó, dançámos no mundo, pusemo-nos em guarda, juntámo-nos ao coro das velhas, tivemos cuidado com as imitações e, até não se poder mais, jogámos, bailámos e cantámos. Recordámos canções menos conhecidas como “Na Prisão”, “Benvindo Sr. Presidente” e “Foi a Trabalhar”, escutámos “O Fugitivo” com o coração apertado, abraçámos Zeca Afonso com os “Vampiros” e José Mário Branco com “O Charlatão” e “Mariana Pais” e lembrámos que foi precisamente há 50 anos que teve lugar o Levantamento das Caldas, prenúncio de um 25 de Abril que não tardou. Os aplausos ainda ecoam ao deixar para trás o CCC numa noite memorável. Hoje soube-me a tanto. Portanto, hoje soube-me a pouco.

domingo, 17 de março de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "The Way to the High Mountain"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “The Way to the High Mountain”,
de Eldad Rafaeli
Curadoria | Ângela Ferreira
Centro Português de Fotografia
02 Mar > 23 Jun 2024


“Se realmente quiser conhecer o Eldad, tem de viajar até ao Grande Além, um mundo que nunca se vê. Uma antítese deste lugar pálido que chamamos de “nosso mundo”. O mundo do Eldad é um lugar onde a Noite reina supremamente, onde encontrarás fantasmas, demónios, arrependimentos e auto-acusação. Neste mundo, a emoção voa como uma águia escura gigante, vendo tudo abaixo numa obscuridade cheia de almas atormentadas. Esta escuridão que se torna o lugar dos maiores medos da humanidade, entrelaçada pelos nossos mais profundos horrores, torna-se a origem da consciência e o nexo da nossa batalha imortal com o destino. Para os fotógrafos, o técnico e o metafórico fundem-se. Luz e escuridão tornam-se o meio com que lutam ao explorar e transformar o conflito primordial em arte.”
Gilles Peress

Nascido em 1964, Eldad Rafaeli foi correspondente, durante quase duas décadas, entre 1991 e 2010, de vários meios de comunicação internacionais, nomeadamente o Libération, a Newsweek e Yedioth Ahronot. Foi um início de carreira marcado pelo fotojornalismo, com sucessivas (e premiadas) reportagens em zonas de conflito. Foi também durante esse período que fundou e dirigiu o Festival Internacional de Fotografia de Israel, assinou a curadoria de vários projetos na área da Fotografia e começou a explorar outros campos da imagem, desenvolvendo um diário pessoal, subjectivo e poético, ponto de convergência entre a intimidade e a crítica social. É com estes pergaminhos que o fotógrafo chega pela primeira vez ao nosso país, mostrando no Centro Português de Fotografia “The Way to the High Mountain”, obra seminal de uma trajetória artística de quase quarenta anos, que oferece ao visitante um retrato impactante da complexidade das narrativas humanas, permeado por uma tensão dialéctica entre a vida e a morte.

A ampla sala onde se encontram expostas as fotografias de Eldad Rafaeli está tomada por um conjunto de sons imprecisos, estridentes, perturbadores. É a “banda sonora” que acompanha a projecção de um vasto conjunto de imagens, mescla das dinâmica do fotojornalismo e da disponibilidade do autor em “escavar” outros territórios, desiguais mas não necessariamente divergentes entre si. Ante o nosso olhar desfilam eventos de protesto, marchas, funerais, lançamentos de pedras, tiroteios. As pessoas são o foco principal: os rostos tensos, os braços estendidos, a coesão dos grupos, os movimentos coordenados. Do interior da turbulência e da comoção, Rafaeli isola e congela um conjunto de poderosas evidências daquilo que é o conflito israelo-palestiniano na Terra Santa. Não menos perturbadoras são as paisagens, quilómetros e quilómetros de terra queimada, campos com restos de vegetação e animais, zonas tampão cercadas, postos de observação que se estendem a perder de vista. Cada imagem é a evidência de uma história trágica que se repete continuamente, uma arena abandonada onde são claros os indícios de um drama sem fim à vista.

Passando da sequência de imagens para os trabalhos expostos nas paredes da galeria ou em enormes suportes dispostos no seu centro, torna-se claro o convite a que atentemos no detalhe, uma vez que há na fotografia de Eldad Rafaeli mais do que aquilo que vemos. A relação entre a luz e a escuridão em torno de diferentes áreas nas fotografias muda-as de um lugar bi-dimensional no tempo para uma poderosa representação tridimensional. Rafaeli utiliza uma luz discreta nas suas imagens, obrigando-nos a atentar naquilo que se abriga nos lugares mais esconsos. Observando cuidadosamente, aproximamo-nos das preocupações mais profundas do fotógrafo, da tensão que envolve o estado em que vivemos, desse lugar sem fronteiras nem limites. Como refere o próprio Eldad Rafaeli, “esta exposição trata da intimidade, em quatro capítulos: Intimidade com uma mulher amada, com uma paisagem e intimidade tal como se confronta com a multidão e com a morte. Esta abordagem exposta à vida, à alma e à fotografia, requer uma coragem para tocar em lugares dolorosos e difíceis, para oferecer uma interpretação directa e poética que nos permita lidar destemidamente com a nossa própria dor.”

sábado, 16 de março de 2024

TEATRO: "A Farsa de Inês Pereira"

 

TEATRO: “A Farsa de Inês Pereira”
Texto e encenação | Pedro Penim, a partir de Gil Vicente
Cenografia e adereços | Joana Sousa
Figurinos | Béhen
Interpretação | Ana Tang, Bernardo de Lacerda, David Costa, Hugo Van Der Ding, João Abreu, Rita Blanco, Sandro Feliciano
Produção | Teatro Nacional D. Maria II
100 Minutos | Maiores de 14 Anos
Teatro Carlos Alberto
15 Mar 2024 | sex | 15:00


Há algo que interessa a Pedro Penim, no teatro e em tudo aquilo que se propõe fazer e que tem a ver com a ideia de nuance, ou seja, “complexificar as situações para humanizar as personagens, (…) permitindo‑lhes expor ideias difíceis de julgar, até do ponto de vista ético”. Quem o diz é o próprio, acrescentando: “Quando se fala da abolição da família ou do trabalho, há questões éticas e práticas que entram em linha de conta, e estas personagens são colocadas nesse sítio mais nebuloso em que a própria convicção oscila”. No caso concreto desta peça, aquilo que temos é uma Inês “muito ciente da falta de aplicabilidade do que propõe, mas [que] não deixa de jogar com esse facto e de torná‑lo muitas vezes uma questão lúdica, outras vezes destrutiva ou até auto-destrutiva”. Há aqui uma abertura que esta Inês encontra para o que chamaríamos um espaço de desaceleração, de falta de produtividade, com o propósito de contrariar as estruturas produtivas que nos empurram no sentido do auto-aperfeiçoamento, da melhoria da performance, da evolução rumo ao ganho.

Em linha com os seus mais recentes trabalhos – “Pais & Filhos” e “Casa Portuguesa” –, Pedro Penim volta a olhar as gerações abaixo da sua, “os millennials, a geração Z”, expondo aquilo que designa por “abismos intergeracionais”. Partindo do sofrimento histórico perante as estruturas hegemónicas e de como existem franjas importantes da população que foram martirizadas por esse poder principal, o encenador mantém a sua Inês Pereira nesse lugar de revolta que já está na peça do Gil Vicente, mas reserva-lhe um espaço mais íntimo, um espaço de liberdade onde possa sonhar com outras realidades e outros futuros: o seu quarto, a sua cama. Esse gesto, de acordo com Pedro Penim, “põe a Inês numa posição activista, mas um activismo que subverte a ideia imediata do que é ser activista. Ela encontra um caminho para concretizar essa revolta e foi surpreendente usá‑lo como tema principal: a passividade enquanto formato possível de luta.”

A personagem interpretada pela Rita Blanco recebe o mesmo tratamento que a Inês. Há uma tentativa de colocá‑la também num sítio de revolta – contra as instituições –, mas na perspetiva do trabalho, de sair para a rua, uma forma mais clássica de luta e activismo. Estas novas dimensões humanizam as personagens, o que faz com que a peça se situe em 1523, mas tenha os pés bem assentes no presente e um discurso claramente contemporâneo. As questões mercantilistas do século XVI estão distantes daquilo que vivemos hoje, mas, até como questão estética e poética, resulta muito bem o anacronismo de a peça se passar no século XVI e ser claramente vicentina, criando uma reação ora de distanciamento, ora de aproximação à personagem de Inês, “porque ela admite que não é no seu tempo de vida que poderá experienciar o mundo que idealiza, transportando essa ideia para 500 anos depois”. A Inês entra no campo da ficção científica, mas devolve‑nos a responsabilidade de sabermos que permanecemos num tempo e num lugar onde as relações com as estruturas de poder continuam a ser tensas e conflituosas.


sexta-feira, 15 de março de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Os Sobreviventes"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Os Sobreviventes”,
de Pedro Lopes
Curadoria | Lígia Pode
Entrevistas | Adriana Rocha
🖤 GALERIA, Rua Gomes Freire nº1
09 Mar > 21 Abr 2024


“Das memórias, das histórias, dos rostos das pessoas é também feita uma cidade.
De quem se entrega, de quem trabalha, de quem fica.
E ao longo dos anos que passaram, tantas lojas que desapareceram e tantas que permanecerão para sempre marcadas no tempo… Mas ficaram muitas de que gostamos. As lojas desta cidade. Permanecem vivas, são precisas, são nossas.
E é bonito homenagear-se assim a nossa terra, homenagear-se também uma Mãe. Uma flor para quem aqui trabalha, para quem aqui continua a honrar e a preservar a nossa identidade! E uma flor para a Mãe das nossas gentes, donde vimos, por quem somos: a nossa linda Ovar!”
Alexandra Gondin

Há, no Ovarmemórias, uma foto de 1962 que mostra a Igreja Matriz à noite, vista da Capela da Senhora da Graça. Nela se percebe, do lado esquerdo da Rua Gomes Freire, o muro de uma quinta que termina naquela que é hoje a Casa-Museu de Arte Sacra da Ordem Franciscana Secular. Aquela quinta não é do meu tempo, sempre conheci no seu lugar o “prédio da Marimar”. Digo isto porque, salvo raras excepções, a toponímia da vila era marcada pelos vários comércios: o Reis dos jornais, o Rodrigues da farmácia, o Idálio da barbearia, o Jorge da mercearia, o Diamantino dos móveis, o Zé dos vidros ou a Marimar, uma loja de electrodomésticos. Era o tempo de um comércio que dispensava o “tradicional” porque não havia outro. Um tempo recheado de histórias e memórias que se assumem hoje como parte intrínseca do ser vareiro. E que revisitamos graças ao olhar atento e sensível de Pedro Lopes e dos textos magníficos de Adriana Rocha, numa exposição de fotografia muito justamente intitulada “Os Sobreviventes”.

Entremos, pois, no “prédio da Marimar”. É lá que somos acolhidos de braços abertos pela D. Ana do Delmar, com ela lembrando viagens de tempos idos, quando nem sonhávamos com ryanair’s, airbnb’s e tripadvisor’s. Também pelo Senhor Lopes, com quem partilhámos gloriosas noitadas de ping-pong na sede do Orfeão, ali aos Combatentes; ou pelo Paciência e o seu brio na afinação das “máquinas” a pedal; ou pelo Coutinho e o dedo para a cozinha que é parte do seu ADN. De quase todas estas pessoas guardamos uma palavra avisada, um conselho, uma opinião, uma atenção. Daí que “Os Sobreviventes” seja uma mostra do domínio dos afectos. Porque nos convida a demorar o olhar na Maria José Ferreira e no Joaquim Matos e a ver que, entre as mãos, seguram o retrato do Zé Calor, um homem que recordo bem com a sua oficina e loja de móveis ali ao cimo dos Pelames. Porque me lembra o Coutinho pai, o Paciência pai, os irmãos Saramago, o Silvério, o Senhor Machado ou o Senhor Gama, pessoas que guardamos com a maior estima. Porque me traz outros nomes que aqui não constam, do Casas ao João e à Álida Costa, do Fonseca da Carvalho à Estrelinha, do Alberto do Batista ao Amaral das barbas ou ao Amarino do cinema.

Sabia que a Lavandaria Branca de Neve guarda uma história de trabalho com 57 anos? Que a Florista Fernandinha começou por ser um negócio agrícola com a venda de sementes, milho e farinhas? Que a Foto Lisboa é a loja mais antiga de fotografia no território nacional e uma das mais antigas do mundo em actividade? Que foi Áureo Neves quem abriu a primeira óptica de Ovar? Entre “comos” e “porquês”, com muitos dados interessantes de permeio - a idade média das quase quatro dezenas de pessoas representadas neste painel é superior a 65 anos -, vemos que nem só de imagens vive “Os Sobreviventes”. Cada protagonista desta história bonita tem a(s) sua(s) história(s) para contar e Adriana Rocha faz, ao nível das entrevistas, um trabalho admirável. Os textos que enquadram cada um dos “sobreviventes” são um resumo daquilo que é a sua história completa e que pode ser lida abrindo uma página através da leitura dos QR code disponibilizados. O resto é a coragem, a resiliência, as histórias de superação que todos partilham, os vínculos fortes que os unem à sua terra (por nascimento ou adopção). Rejeitando saudosismos e olhando o futuro de frente.

quinta-feira, 14 de março de 2024

CINEMA: "Quatro Filhas"



CINEMA: “Quatro Filhas” / “Les Filles d’Olfa”
Realização | Kaouther Ben Hania
Argumento | Kaouther Ben Hania
Fotografia | Farouk Laâridh
Montagem | Qutaiba Barhamji
Interpretação | Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui, Nour Karoui, Ichrak Matar, Majd Mastoura, Hind Sabri, Zine El-Abidine Ben Ali
Produção | Nadim Cheikhrouha, Martin Hampel, Thanassis Karathanos
Tunísia, Alemanha, França, Arábia Saudita | 2023 | Documentário | 107 Minutos | Maiores de 12 anos
Cinema Trindade - Sala 1
13 Mar 2024 | qua | 16:00


Quando, no centro de Tunes, os ortodoxos salafistas clamam contra os inimigos do Islão e oferecem niqabs (véus que cobrem o rosto, deixando a descoberto apenas os olhos) às mulheres que os escutam, Ghofrane não hesita em aceitar um e vesti-lo. Mas aquilo que começou por ser quase uma brincadeira, depressa se revela o início de um processo de radicalização que culminará com a ligação desta rapariga de 16 anos ao Estado Islâmico, arrastando consigo a irmã Rahma, ligeiramente mais nova do que ela. As duas cumprem agora 16 anos de pena numa prisão da Líbia e a sua mãe, Olfa, clama nas televisões e nos jornais pela libertação das filhas, ao mesmo tempo que critica a inacção do governo tunisino quanto à extradição das filhas. A determinação e carisma desta mãe acabaram por captar a atenção de Kaouther Ben Hania, levando-a a partir para a realização de um documentário. O problema está em perceber onde se encontra a verdade de uma mulher que, envolta num grande sentimento de tragédia, desempenha um papel à medida do que dela espera um jornalista e não um cineasta.

Com Ghofrane e Rahma ausentes, a realizadora recorre a duas actrizes para reproduzir os sentimentos que atravessam uma família onde cabem, além de Olfa, Eya e Tayssir, as duas irmãs mais novas. Por outro lado, Olfa tem um “duplo”, uma terceira actriz que a substitui nos momentos de maior perturbação. É neste ambiente de documentário a roçar a ficção que decorre “Quatro Filhas”, um filme que escalpeliza a unidade familiar enquanto prova de experiência partilhada, revivendo um passado muito duro, dizendo o que nunca tinha sido dito, reabrindo feridas que se julgavam saradas e oferecendo-nos uma visão do que é ser mulher numa sociedade patriarcal e misógina. Aquilo que Kaouther Ben Hania tão bem faz é pegar nestas mulheres, alvo de uma educação em tudo semelhante, e mostrar que a transição para a maioridade pode acarretar profundas alterações nos vínculos familiares, pondo em causa dogmas sociais, educacionais, religiosos e políticos.

À medida que Olfa e as duas filhas mais novas desfiam memórias e recordam Ghofrane e Rhama, vão-se revelando os exactos pontos onde o ser mulher se encontra com as particularidades culturais em sociedades dominadas pelo fervor religioso e pelas restrições que daí advém. Neste exercício de dissecação das suas histórias e dos mundos que em torno de si foram construindo, salta para primeiro plano o desejo subconsciente de que todas as mulheres possam ser donas de si mesmas. A ligação entre mãe e filhas – actrizes e não actrizes – é feita à custa de um enorme investimento emocional, no reavivar de traumas como nas interrogações que mais não são do que formas disfarçadas de acusação. É neste momento que se impõe o olhar emocional de Kaouther Ben Hania, a justeza das suas conclusões, a forma como dispõem a narrativa em camadas e nos prova que o todo é muito mais do que a soma das partes. Entre o ajuste de contas e a catarse, “Quatro Filhas” é um documentário com uma enorme força e que importa ver com toda a atenção.

quarta-feira, 13 de março de 2024

LIVRO: “Revolução Inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril”



LIVRO: “Revolução Inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril”,
de João Pedro Henriques
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2024


“Posto noutros termos: Se considerarmos momentos como o 5 de Outubro de 1910, o 28 de Maio de 1926 ou o 25 de Abril de 1974 como ruturas de significações e de estruturas sociais e políticas, é notável que o compadrio e as suas cunhas tenham permanecido razoavelmente imunes a essas alterações - mais democracia política e económica não parece ter resultado em menos compadrio ou em menos cunhas.”

Numa altura em que nos preparamos para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, um livro como “Revolução Inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril” é precioso. Invertendo a natural tendência de elencar o que mudou com a revolução dos cravos, o que ganhámos em matéria de direitos, liberdades e garantias com o abraçar a democracia - “viajar livremente, reunirmo-nos livremente, beijarmo-nos em público, votar, expressarmo-nos livremente, ter acesso a um serviço universal de saúde” -, João Pedro Henriques obriga-nos a olhar os factos de um outro ângulo, a atentar no que não mudou, naquilo que está cristalizado nas relações pessoais e de poder e representa uma ferida aberta no nosso viver em sociedade. Para tal, coloca em cima da mesa dois assuntos prementes e que devem merecer a nossa maior atenção: o elitismo da classe governante e o insistente machismo que continua a marcar a relação da Justiça portuguesa com as mulheres, nomeadamente nos crimes de violência doméstica e nos crimes sexuais em geral.

Olhados em separado, os dois fenómenos são representativos “da profunda inércia na sociedade portuguesa”, perpetuando-se no tempo, “por mais que revoluções e golpes de Estado lhes abalem as fundações”. Ambos se alimentam da desigualdade e ambos contribuem para que essa mesma desigualdade se cave de forma mais profunda, seja de um ponto de vista social, no caso do elitismo, seja nas questões de género, no caso do machismo. “Assim continuará a ser enquanto a sociedade portuguesa não perceber, no seu conjunto, que desigualdade rima com indignidade”. Matérias como estas, escalpelizadas com a ajuda dos números e a contribuição de figuras ligadas à política, às ciências sociais ou à justiça, são de um valor inestimável. Quando, na ressaca duma noite eleitoral, assistimos com perplexidade à meteórica ascensão dos populistas de extrema-direita e constatamos que a liberdade e a democracia não são dados adquiridos, estas páginas representam um contributo importante para a compreensão daquilo que somos e para a forma como nos comportamos.

Apadrinhamento, patrocinato, clientilismo, protetorado, compadrio. À medida que as palavras vão desfilando e tomam o seu lugar na narrativa, vamos percebendo o quanto a tolerância face à desigualdade encerra em si a razão do(s) problema(s). Atentando nas questões ligadas à violência de género, vemos que a Justiça em Portugal foi “feita por homens, pendeu para o lado dos homens”, e que só 35 anos depois daquele “dia inicial inteiro e limpo” é que “emergimos da noite e do silêncio” aprovando no Parlamento (onde os homens nunca deixaram de ser maioritários) uma lei a consagrar a violência doméstica como categoria criminal. Entre o que é e o que parece - com alheiras de Mirandela ao barulho -, os factos vão sendo apresentados e o leque de temas vai-se ampliando, mostrando que há mais assuntos que não passaram do 24 de Abril, nomeadamente “o peso alucinante que os debates sobre futebol têm no espaço público”. À beirinha do fim, João Pedro Henriques deixa uma questão deveras pertinente: “Estará a política a futebolizar-se?”. E lembra que é desses debates televisivos que nasce para o espaço público o líder do partido que está a mostrar o quão pouco sólidas podem ser as fundações da nossa democracia.

terça-feira, 12 de março de 2024

CONCERTO: "Ressaca Bailada" | Expresso Transatlântico



CONCERTO: Ressaca Bailada | Expresso Transatlântico
Auditório de Espinho - Academia
09 Mar 2024 | sab | 21:30


Espinho, sábado à noite. Apesar do tempo pouco convidativo, o Auditório enche-se de público para ouvir os Expresso Transatlântico e a sua “Ressaca Bailada”, trabalho que viu a luz do dia (ou as luzes da noite) em finais de Setembro do ano passado. O burburinho na sala está uns decibéis acima do que é habitual e a expectativa cresce à medida que se aproxima o momento em que a tela recolhe e se fazem ouvir as palavras “bem vindo ao Auditório de Espinho, vai dar-se início ao espectáculo”. Os primeiros temas - “Primeira Rodada” e “As Ladras”, duas “malhas” do primeiro EP da banda - dão o mote àquilo que vamos poder esperar do tempo do concerto, deixando perceber que há ali uma guitarra portuguesa a apimentar a coisa, a brincar ao jogo do gato e do rato, divertida, atrevida, enérgica, destemida, irreverente, de bem com a vida. Será ela a marca distintiva de um projecto que, tocando uma e outra margem do grande lago atlântico, arrisca fundir géneros musicais tão díspares quanto o rock e o fado e fazer dessa ousadia a afirmação da sua identidade musical.

Do novo álbum seguem-se “Western à Lagareiro” e “Porque Nada Tem Um Fim”, temas que deixam entender uma maior complexidade nas composições e mais ambição na mensagem, mas ainda assim sem capitalizarem junto do público o seu potencial de qualidade e interesse. Gaspar Varela percebe isso e “obriga” toda a gente a levantar-se e a dançar o tema seguinte, “Azul Celeste”. O tiro, porém, sai-lhe pela culatra, já que, apesar de belíssimo, o tema é muito pouco “dançável”, dado a tímidos ademanes de anca que mais valia continuar sentado. Mas eis que surge “Bombália” e a sala parece despertar. Quem já estava em pé, em pé continuou. Quem não estava, levantou-se e juntou-se à garra e energia que se desprendia de um tema que é uma pérola de harmonia e ritmo. “O Gangster” e “Barquinha” reforçam o ambiente de dança que se vive na sala e é tempo de escutar as primeiras grandes ovações, nomeadamente ao ser nomeado o nome de Pedro Gonçalves e dos Dead Combo, referência incontornável da música dos Expresso Transatlântico.

Em jeito de parêntesis, diria que é inegável a proximidade entre a música dos Dead Combo e a deste Expresso, mas é justamente a guitarra portuguesa que, nas mãos de Gaspar Varela, marca a diferença. O que nos Dead Combo é introspectivo, crepuscular, imersivo, é nos Expresso Atlântico esfuziante, redentor, solar. E foi nesta toada que seguimos até ao final do concerto, “atravessando” um poema seguido de um solo (a abraçar o fado tradicional e o fado mais erudito), naquele que foi o momento mais intimista da noite (e também o mais saudado). “Ressaca Bailada” e “Beco da Malha” voltaram a puxar pelo público num permanente convite à dança, com “Alfama, Texas” a colocar um ponto final em pouco mais de uma hora de concerto. Muito reclamado, o “encore” permitiu escutar “Eu Dantes Cantava”, sentida homenagem dos irmãos Sebastião e Gaspar Varela à sua bisavô, Celeste Rodrigues, irmã de Amália. Faltou apenas o Conan Osíris a dar voz à “Barquinha” para o concerto ser perfeito. Mas não se pode ter tudo…

[Foto: Monstro Creative Studio | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]

segunda-feira, 11 de março de 2024

LIVRO: “O Mundo Visto do Meio - Crónicas seguidas de Um auto do século XX”



LIVRO: “O Mundo Visto do Meio - Crónicas seguidas de Um auto do século XX”,
de Conceição Lima
Ed. Editorial Caminho, Fevereiro de 2023


“A África é um grande continente, aquilo era só um bocado de organização e menos corrupção. Corrupção há em todo o lado, mas lá é demais. Mas a África tem tudo, tem tudo e já nem falo do sol… os chineses perceberam e a Índia também anda à espreita e o Brasil não deve andar na sorna. Mas o problema mesmo são aqueles dirigentes, tá a ver? querem tudo só para eles, é só carros de luxo, mansões com piscina, luxo e mais luxo e o povo que se lixe.”

Guiados por Conceição Lima, viajamos até esse “meio do mundo” que é S. Tomé e Príncipe, mil quilómetros quadrados de terra lávica, o mar em volta de onde nasce a cor azul. Uma viagem poética prenhe de emoções, que carrega o peso da história e da cultura, dos sabores e tradições, da prodigalidade da terra e da generosidade das gentes. Que nos abre um mundo novo feito de paisagens de cortar a respiração, de plantas como a fya-ponto ou a gimboa, de peixes como o maxipombo ou o zanvé, de frutos como a goiaba ou o limão da terra, de pássaros como o tomé-gagá, o suin-suin, o ossobô ou o selêlê. Que nos senta à mesa sob um frondoso micondó e nos dá a provar o calulú e o ijógó, “pratos cerimoniais, testes de aptidão”. Que nos fala da escritora Maria Odete Costa Semedo, da poetisa Alda do Espírito Santo ou do cantor José Aragão. Que nos traz a doçura ritmada do crioulo. “Uma kuesa qui non mudô aqui ainda, é êssi chêro di baro molhado, quando água rebenta como kuesa qui deus tá a despejá todo rio di céu pa cima di genti, pa cima di planta, pa cima di tera.”

Reunindo um conjunto de vinte e três crónicas publicadas originalmente na revista África 21 e no jornal digital Téla Nón, “O Mundo Visto do Meio” traz também com ele “Um Confronto Imaginado e uma Profecia”, texto vencedor da primeira edição do Prémio de Literatura Dramática Isaura Carvalho. De forma breve mas intensa, a autora teatraliza o encontro de Salustino Graça do Espírito Santo, agrónomo, proprietário agrícola e líder dos forros (descendentes de colonos brancos e escravos alforriados do séc. XVI), com o Tenente-Coronel Carlos de Sousa Gorgulho, governador da colónia de São Tomé e Príncipe, no qual este último pede ajuda para a angariação de mão de obra para as roças de cacau, numa altura em que o preço do produto nos mercados internacionais está em alta. Improdutiva, a tentativa de negociação virá a ficar marcada, nos dias 03 e 04 de Fevereiro de 1953, por violentos confrontos com a população, naquilo que ficou conhecido como o Massacre de Batepá. Vinda de longe, transfigurada, é a voz de Salustino Graça que rompe o silêncio, honrando o sacrifício dos mártires numa pungente cena final. Uma pérola preciosa que vale, por si só, o investimento na leitura deste livro.

De regresso às crónicas, importa dizer que nem só de tranquilidade, beleza e doçura se escrevem as páginas deste livro. A prosa de Conceição Lima é uma declaração de amor à sua terra, mas é também - e por isso mesmo - um objecto de reflexão e denúncia, alertando para os “lôgôzos” de toda a espécie que pululam na sociedade são-tomense, para a chocante falta de literacia da classe estudantil, para a corrupção endémica que cava assimetrias e trava o crescimento económico. São significativas as crónicas onde se percebe a vontade de mudança, seja através do exemplo de cidadania dado pelo Movimento Civil contra a Desflorestação do Sul da ilha de São Tomé, da denúncia de uma rusga que é, toda ela, uma encenação, uma “coreografia de máscaras negras para suscitar um (E)estado de medo”, ou de um parlamento em que uma maioria chumba o pedido de apoio à deslocação do Primeiro-Ministro a uma República vizinha (ainda que as viagens do chefe do governo não careçam de aprovação pelo parlamento, “mas a imaginação é livre”). Um livro onde é clara a entrega de Conceição Lima à sua terra. Uma prosa que é expressão do desejo de um país melhor e mais justo, onde a liberdade e a democracia sejam a expressão da vontade férrea do seu povo.

domingo, 10 de março de 2024

DANÇA: "ÔSS"



DANÇA: “ÔSS”
Direcção artística | Henrique Amoedo
Coreografia | Marlene Monteiro Freitas
Figurinos | Marlene Monteiro Freitas
Performance | Bárbara Matos, Bernardo Graça, Joana Caetano, Maria João Pereira, Mariana Tembe, Milton Branco, Rui João Costa, Sara Rebolo, Telmo Ferreira
Produção | Dançando com a Diferença, P.OR.K
80 Minutos | Maiores de 6 anos
Rivoli - Grande Auditório
09 Mar 2024 | sab | 19:30


“Construir um esqueleto forte, onde um pé tem a função de cérebro, o coração serve de cotovelo e os joelhos são um fígado e uma orelha, ser-nos-á naturalmente possível já que, entre duro e mole, no final, pouco importará. As partes deste compósito e seu posterior destino, serão tratados em leilão.” As palavras da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas não deixam margem para dúvidas. “ÔSS”, do colectivo “Dançando com a Diferença”, será aquilo que cada um quiser que seja. Tenda de circo ou praça de touros, coberta de navio ou campo de batalha, é um objecto desconcertante, imaginativo, mordaz, jocoso, trocista, avesso a convenções, colorido, vivo. Tão vivo como esse “ôss” - “osso”, em crioulo -, “guardador e revelador de segredos milenares, guardião de orientações anatómicas, caixa estruturante de partes moles e frágeis.” Ou como o “ôss” que abraça os praticantes de karaté, expressão polissémica que, “na sua origem, condensa ideias como pressionar, empurrar, suportar, tolerar.”

Em “ÔSS”, o palco é um mundo onde se marcam fronteiras e cavam trincheiras, se esbatem diferenças e desatam nós, se contornam medos e libertam amarras, se choram os mortos e celebra a vida. Um mundo feito de barras e grades, de caixas e plintos, geografias precisas que na sua ordem castradora, no que implicam e impõem, se afirmam como elementos repressivos e punitivos que importa contrariar. Obedecendo a uma geometria linear, os corpos obrigam-se a movimentos rígidos e precisos, no depositar de um lençol sobre uma cama como no transportar de uma bacia, ninho onde um corpo se abriga. O espectáculo cresce do visual para o performativo ao longo de uma sucessão de quadros fortemente impressivos, acompanhados por uma banda sonora onde cabem a música operática e os ritmos africanos, a música techno e um “hit” de Rihanna. Da ordem ao caos vai o tempo da peça.

Os espectadores estão ainda a chegar aos seus lugares e já o palco se agita com a animação de um DJ de serviço. É clara a intenção de pôr o público à prova desde o início, de ganhar a sua atenção, de lhe pedir que decifre as situações contrastantes que está prestes a viver. Na sua singularidade, os dançarinos assumem as suas personagens com um rigor e um empenho exemplares. É tocante a forma como, individualmente, concorrem para a criação de um corpo de dança enigmático e de grande complexidade, capaz de despertar no espectador as mais díspares emoções. São eles que dão forma ao imaginário coreográfico de Marlene Monteiro Freitas, seres instáveis por natureza, em metamorfose constante, capazes de passar do polícia ao ginasta, do militar ao camareiro, num piscar de olho. Ficará para sempre na memória a interpretação desse clássico intemporal de Gershwin, “The Man I Love”, na voz de Maria João Pereira. Como ficarão as passadas marciais de Mariana Tembe, a gaiatice de Sara Rebolo, a mímica da Bárbara Matos. A energia e cumplicidade do conjunto.

[Foto: © Laurent Philippe | https://www.teatromunicipaldoporto.pt/]

sábado, 9 de março de 2024

LIVRO: “Um Dedo Borrado de Tinta: Histórias de quem não pôde aprender a ler”



LIVRO: “Um Dedo Borrado de Tinta: Histórias de quem não pôde aprender a ler”,
de Catarina Gomes
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2024


“O agá chega finalmente ao papel. Depois dele, Horácio prossegue com o desenho das outras letras do seu primeiro nome. “Primeiro é o agá, que não se lê, mas lê-se o ó à frente, eu sei que levava aqui um ó, ainda lá aprendi na escola; aqui tinha, então, aqui fazia assim um rê, assim; aqui era um a e tinha acento; aqui era um quê; ao fim, aqui à frente, era um i, é mesmo assim; e um ó.” Levava, fazia, era. São letras arrancadas ao passado.”

Não é demais sublinhar o quão preciosos são os “retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, conjunto de pequenos-grandes livros publicados regularmente desde Maio de 2014 e que, da saúde à cultura, da ciência à justiça, da educação ao ambiente, das questões sociais à política, nos trazem um olhar próximo sobre a realidade do país e nos ajudam a compreender o que fomos e o que somos no Portugal de hoje. Faço este preâmbulo - em jeito de convite a que considerem a sua inclusão nas vossas listas de leitura -, na altura em que acabo de ler “Um Dedo Borrado de Tinta: Histórias de quem não pôde aprender a ler”, o mais recente volume dos “Retratos da Fundação”, da autoria de Catarina Gomes. Em seis capítulos, o livro narra as histórias de Horácio, Isabel, Conceição, Maria José, Emília e Olívia na sua relação com as letras, histórias de quem não pôde aprender a ler por razões que se prendem, entre outras, com a falta de condições económicas, com o facto de se ser menina, com a ideia feita de que “o saber não dá pão”.

Com Catarina Gomes percorremos as ruas do Casteleiro, aldeia no concelho do Sabugal. Dizia o recenseamento populacional de 2011 que era aqui, ao nível da freguesia, que existiam proporcionalmente mais analfabetos em Portugal (41,5% dos casteleirenses com mais de dez anos, contra os 5% em termos nacionais). Com ela entramos na casa de algumas pessoas que não tiveram a oportunidade de aprender a ler. São, como todos os analfabetos, “uma camada de passado ainda à mostra” e é esse passado que, nas conversas, vem à superfície. Um passado que traz consigo os manuais do Estado Novo, o quadro de ardósia que “parece triste da cor da noite” mas que “é dele que sai a luz que ensina muitos meninos ao mesmo tempo”, as longas distancias a percorrer até à escola, os castigos quotidianos e bem aceites. Um passado do qual sobraram, em muitos casos, “assinaturas disformes, mal elaboradas, deixando supor que o autor apenas possui um conhecimento vago das letras, podendo desenhá-las ao contrário.” Onde a mágoa e o ressentimento são figuras maiores num emaranhado de emoções que todos fazem por sublimar.

Apetece-me chamar-lhe “narrativa de proximidade” porque, no gesto e na palavra, é de proximidade que se faz este livro. Essa é, porventura, uma das suas marcas distintivas, que o afasta da linguagem fria e calculista dos números e das estatísticas. Lemos aquilo que cada uma destas pessoas diz e é como se estivéssemos ali, escutando a chuva que cai com força e vendo as brasas sob o caldeirão negro de ferro onde se apura um almoço de arroz com entrecosto. Ouvimos falar de “crianças com frio, malnutridas, sobrecarregadas de trabalho, crianças pequenas a tomarem conta de bebés, impedidas de ir à escola”. Vamos “à Beatriz”, a juntadora de letras, a decifradora, para que nos leia uma carta que chegou num envelope diferente, agora que o filho morreu e já não há quem leia. Visitamos a antiga escola primária, hoje reabilitada e rebaptizada “Casa da Memória”, parecendo ainda escutar os risos e brincadeiras das crianças, “às carreiras e aos pinotes”. Mais do que um mero retrato, “Um Dedo Borrado de Tinta” é todo um tempo feito de histórias de vida que importa reter. Histórias de quem não pôde aprender a ler.

sexta-feira, 8 de março de 2024

LIVRO: "Um Preto Muito Português"



LIVRO: “Um Preto Muito Português”,
de Telma Tvon
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2024


“Admite, Budjurra, admite que não consegues. Admite que procuras no sonho a ilusão de uma realidade que desmantela tudo o que conheces como verdadeiro e coerente. Admite que navega na secura da incompreensão um compasso de espera de ti para ti. Admite que não te arrependes. Que caminhas perdido e encontrado na sombra dessa luz que não te ilumina por completo. Estarei só? Serei solitário? Claro que não. Sou a gargalhada que feliz deposita confiança nas suas mentiras. Sou, certamente, o escravo do otimismo irritante.”

Chama-se João Moreira Tavares, mas todos o conhecem por Budjurra. É o Budjurra do Cacém, irmão do Carlos e da Sandra, nascido em Lisboa há 26 anos. Mora na casa dos pais, cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal. O seu não é um daqueles bairros a que chamam problemáticos, mas diz-se “um ser deveras problemático”. Problemático porque não se enquadra em nenhum dos cenários em que as estatísticas o querem meter. É licenciado em Gestão Ambiental. Fala português convenientemente, seja lá o que isso for. Ninguém sabe se é Preto o suficiente ou se anda a tentar passar por Branco inconscientemente. O que é correcto notar nele é que é amigo de toda a gente. Amigo e companheiro. Tem princípios e valores que passam pelo respeito à vida de outrem e à sua também. É apaixonado pela vida mas anda confuso com a injustiça e as desigualdades sociais. É completamente pacífico, um pouco preguiçoso. É um bacano que se sente sozinho no mundo em que vive e incapaz de o mudar. É um preto muito português.

Telma Tvon tem neste Budjurra o seu alter ego. Mesmo sendo mulher, mesmo tendo nascido em Luanda, é nele que se projecta para nos convidar a atravessar as fronteiras do preconceito e a olhar para a falta de visibilidade, de representatividade e de liberdade que se abate sobre as comunidades tidas como marginais. Do meio dos seus medos, das suas vontades, das suas verdades, Telma Tvon fala de bondade, de humanidade, do que a inspira, do que a torna mais forte. Mas também do que sente, não podendo ser. Fala de emigrantes e imigrantes, de inclusão e rejeição, de “raivas encarceradas no politicamente correcto”. De como se manipulam as ideias, do racismo estrutural no seio das polícias, do inconformismo face à insensibilidade de quem a ignora, de ser mais uma preta que ameaça o Portugal Branco. De se sentir “à margem de uma sociedade que se quer imaculada e de raízes meramente lusitanas”. Por isso proclama mais comunidade, mais poder, mais preta!

Escrito na primeira pessoa, “Um Preto Muito Português” tem uma construção narrativa que o afasta do romance. As reflexões implícitas em cada um dos seus quase cinquenta capítulos faz pensar nele como um livro de crónicas ligadas entre si pela vontade própria de quem se reclama parte da verdade universal de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Primeira obra com uma força invulgar, o livro é fruto do empenhamento pessoal da autora, dele sobressaindo essa urgência de mostrar, de denunciar, de nos fazer passar “para o lado do outro”, que é algo de que todos precisamos muito. Simples sem ser simplista, a prosa é rica em emoções, oscilando entre o divertido e o magoado. É uma prosa fortemente ritmada - “momentos nitidamente transparentes e sorridentes sem motivos aparentes” -, reveladora do facto de a sua autora estar bem integrada na cultura Hip Hop. Por outro lado, faz-nos sorrir com expressões como maka, nha kamba, sabura ou beber uma jola. Um livro fundamental nessa necessidade de nos encontrarmos com aquilo que somos.

quinta-feira, 7 de março de 2024

LIVRO: "O Quarto Rosa"



LIVRO: “O Quarto Rosa”,
de Francisca Camelo
Coordenação | Maria Bochicchio, Nuno Brito
Ed. Editora Exclamação, Agosto de 2019


“hoje reparei que a tira magenta
da embalagem de rivotril
combina com as paredes
do meu quarto rosa:
foi a primeira vez que me deram
comprimidos com algodão
menina, é dormir tudo o que eu quero
não é morte o que vim comprar
só preciso de algum descanso, (…)”

Ao mergulhar neste “quarto rosa”, regresso às palavras de Francisca Camelo a abrir a penúltima mesa das Correntes d’Escritas. Recordo-lhe o tom de desânimo nesse pedido de desculpas por escrever poemas sobre tristeza quando lhe pedem poemas sobre liberdade. Estou ainda a ouvi-la falar do país, dos pais, de si e é como se fosse eu a falar do país, dos pais, de mim. Da estrada que corremos à procura de uma paragem e de só encontrarmos um semáforo. Vermelho. Parado. Há tanto tempo parado, um mar de gente que se acumula do outro lado da estrada. Como pedras, as palavras da poeta ferem o silêncio. Contam de um medo que “cheira a podre, mas segue vivo”. De ter calhado passar por aqui “a falta de dinheiro, o mercado flexível, a crise de habitação, o juro imprevisível”. “Já não se distingue pátria, estrada ou fome”, diz. Como diz que sem alegria não se fazem revoluções.

“aqui se faz a carne”. Leio devagar cada verso e reencontro-me com a aspereza das palavras que rasgam por dentro, a força da mensagem que arroja aos abismos da condição humana. Refúgio (subterfúgio?), o quarto é cada vez menos rosa nessa impotência de dizer não a quem oprime e agride, nessa raiva de atear a dor por calar a voz. O rosa faz-se cinza e o cinza faz-se negro. Espesso, pestilento, vejo-o espalhar-se pelo chão, subir pelas pernas da cama, cobrir a cadeira e a mesa de cabeceira, derrubar o abajur, “como se apenas o que nos destrói merecesse retrato”. Na mais profunda escuridão, as palavras da poeta tornam-se distintas. São como pedaços do seu corpo, escavados com as unhas do mais fundo de si, dados a ver em carne e sangue. “A carne dos que morreram antes de conhecer os seus poetas”. O “sangue na estação de metro quando pelo telefone me lês em italiano o poema da súplica à mãe de pasolini”.

Seco como um osso na aridez do deserto, insurgente como um fogo que teima em arder, intencional como uma entrada de pé em riste, assim é “O Quarto Rosa”. Olhado de um lado, do outro e de frente, não passa de um quarto igual a tantos outros. É ao penetrarmos nele que percebemos a diferença. No que noutros é aceitação, brandura, permissividade, nele é imposição, protesto, rebeldia. Por isso retemos os lugares onde depois de cair muitas vezes nos ensinámos a cair melhor, tacteamos as rotinas, escapamos da festa em silêncio, envelhecemos dentro de aviões. Podemos não ter a certeza de que é este o combóio certo, mas sabemos que todos nós podemos ser embalsamados um dia. A forma como nos cingimos às quatro paredes é o que faz de nós parecidos. Esbocemos, pois, um sorriso à mona lisa, imaginemos a temperatura mais acertada do forno e deixemos que o açúcar imaginário se espalhe debaixo da língua. Até que a morte nos separe.

quarta-feira, 6 de março de 2024

EXPOSIÇÃO: "Calor"



EXPOSIÇÃO: “Calor”, 
de André Romão
Curadoria | Inês Grosso
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
17 Nov 2023 > 02 Jun 2024


Uma raposa aconchegada num sono profundo. Um antigo tronco de glicínia torcido do qual emergem mãos de bronze. Uma cadeira que lembra um louva-a-deus ostentando uma cabeça parcialmente coberta por corais marinhos. Uma perna humana iluminada por lâmpadas. Uma escultura de acrílico transparente com o exterior revestido de vaselina, escorrendo como um corpo que transpira e irradia vitalidade. Assim é “Calor”, conjunto de obras de André Romão representativas de um ambiente inquietante, feérico e onírico, situado algures entre o céu e a terra, entre o mundo dos vivos e o desconhecido. A partir de uma prática que inclui uma pesquisa pseudo-arqueológica de apropriação de objectos e uma pilhagem ética de formas passadas em objectos presentes, Romão retoma os temas fundamentais da sua investigação, que abarca conceitos de hibridização e metamorfose e reforça uma noção de fluidez e horizontalidade entre natural e artificial, orgânico e anorgânico, humano e animal ou humano e maquinal.

Nas paredes, uma coleção de cartazes antigos provenientes de diferentes países introduzem um elemento disruptivo que contribui para desestabilizar algo que sentimos não ser logicamente firme. Originalmente desenhados como instrumentos de sensibilização e incentivo à participação, os cartazes denotam modelos de preconceito e exclusão, recorrendo muitas vezes a apelos emocionais associados a ideias de patriotismo e dever cívico. Isto não seria problemático se esta idealização do dador não correspondesse a políticas violentas de discriminação assentes em estereótipos como o da “qualidade do sangue”, e não em critérios médicos e científicos adequados. Assim enquadrada, a doação de sangue é um ato de altruísmo sujeito a várias regulamentações que reforçam a discriminação e a segregação. Neste ponto, é inevitável lembrar que em diversos países, incluindo Portugal, só muito recentemente foi proibida a discriminação de doadores de sangue com base na orientação sexual ou identidade de género.

Pontuando e expandindo uma relação íntima com a natureza, as esculturas dispostas sobre plintos de madeira apresentam uma ampla variedade de formas de vida em distintos ambientes e nichos ecológicos. Combinam elementos da flora, fauna, seres humanos e elementos mecânicos e representam corpos simultaneamente estranhos e familiares que habitam um terreno de ambiguidade e indiscernibilidade de género. Este é um esforço que nos faz entrever a forma de um mundo mais justo e equitativo no qual se reconhece a igualdade entre as espécies. O artista abre caminho para novas perspectivas e níveis de consciência na nossa relação com o Outro, aquele que é diferente, que habita o mundo de maneira distinta. Na sua poesia e estranha melancolia, as esculturas de Romão assumem uma forma de resistência às categorias rígidas e binárias de identidade e comportamento. Ao mesmo tempo, celebram a diversidade e a complexidade das relações entre os seres vivos, questionando a ideia de que existe uma única forma correcta de ser e agir.

[Texto extraído do Roteiro da Exposição, da autoria de Inês Grosso, e que pode ser lido em https://cdn.bndlyr.com/nsa343pdfl/_assets/2311_andreromao_roteiro_site.pdf]