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sábado, 27 de abril de 2024

TEATRO: "A Paz é a Paz"



TEATRO: “A Paz é a Paz”
Criação | UmColetivo
Dramaturgia | Ricardo Boléo, a partir de “A Paz”, de Aristófanes, da obra jornalística e poética de Maria João Carvalho, de “Nea Kavala, Nea Kavala”, de Frederico Martinho e de entrevistas a refugiadas, madrinhas e enfermeiras de Guerra
Cenografia | Bruno Caracol
Figurinos e adereços | Raquel Pedro
Composição musical e sonora | João Maria Carvalho, João P. Nunes, Sofia Pinto
Interpretação | Cátia Terrinca, Mariana Ramos Correia, João Maria Carvalho, Vasco Pereira, Afonso Teixeira Miguel, Teresa Corte-Real, André B. Silva, Ousmane Thiocone, André Nunes da Silva, Maria Falca, André Silvestre, Maria Ceia, Diego Almeida, Inês Gomes, Diego Almeida, Gonçalo Nunes
Produção | UmColetivo
60 Minutos | Maiores de 12 anos
Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre
25 Abr 2024 | qui | 21:30


“O que fazer com esta gente, perguntam os televisores aos televisivos. O que fazer com as frases que ensinaram aos filhos e depois esconderam debaixo do sal para que pudessem ser consumidas mais tarde, quando o problema for menos que uma fractura? Menos que uma coragem que não desponta. As reportagens alertam para um drama, os comentadores para uma ponderação. Quem são estes corpos, cujos temores de violação de um falso equilíbrio os atiram para os aglomerados nas ilhas? Quem são estes corpos que se lançam ao mar como piratas sem a caveira hasteada, ousando um recorte no mapa?”
Frederico Martinho, in “Nea Kavala, Nea Kavala” (2022)

“Desde que chegámos a este mundo, temos vivido como refugiados. Na espera, perdemos a conta dos dias que transportam a náusea para a insónia das noites. Não temos nada, não possuímos nada. Apenas o desejo de querermos viver. De vivermos em liberdade, em harmonia com aqueles que foram os nossos capatazes.” Tinha o olhar cravado em mim e dizia estas palavras como quem se agarra às tábuas de um barco naufragado nas costas de Lesbos ou de Lampedusa. Pausada, mas firme, a sua voz era isenta de raiva, isenta de dor. Talvez incompreensão, talvez resignação, talvez apenas o querer viver em liberdade, em paz, em harmonia, o “querer o impossível”. “Meu peito feito campo de batalha”, eu baixava os olhos e eram as palavras de Ana Luísa Amaral que me apareciam, iniciais, inteiras, limpas: “Em vez de peixes, Senhor, / dai-nos a paz, / um mar que seja de ondas inocentes, / e, chegados à areia, / gente que veja com o coração de ver, / vozes que nos aceitem”. Na mulher à minha frente via-lhe os fios que se desprendiam das suas vestes, fios vermelhos de sangue. Quis dar-lhe a mão. Quis tanto dar-lhe a mão e dizer-lhe que, também eu, sou refugiado.

A peça vai começar. Seguimos por um corredor até encontrarmos uma porta onde se pode ler “palco”. Entramos. Sob uma luz ténue, duas fileiras de bancos corridos alongam-se na diagonal. É neles que nos sentamos, frente a frente. Na penumbra percebemos que são vários os corpos deitados no chão. Dois deles erguem-se lentamente. Dirigem-se para as margens do palco e pegam em andaimes que vão montando, à frente e atrás do público, com a determinação de quem não tem tempo a perder. O campo aberto do palco transforma-se, a pouco e pouco, no espaço concentracionário de uma trincheira na qual o público se refugia, inquieto e tenso. Com os seus instrumentos de música, os actores vão-se dispondo no cimo dos andaimes, como anjos a sobrevoar as nossas cabeças. Os sons dissonantes trazem-nos o barulho das bombas que caem do outro lado da cidade, um avião de guerra que estala nos céus, ruídos secos que podem ser de balas, gritos abafados. Estamos ali e estamos em Cabul ou em Damasco, em Kharkiv ou em Rafah. Somos talvez trinta, talvez quarenta espectadores, e aquele é o nosso abrigo. Estamos entregues a nós e não falamos, aguardamos apenas. Ansiosamente. A Guerra é a Guerra.

“A Paz é a Paz” é um extraordinário exercício de teatro. Duro, intenso, imersivo, exige do espectador na medida exacta daquilo que dá. E o que dá é muito. A montagem inicial do dispositivo cénico chega a ser desconcertante. “ - Porque é que os andaimes não estão já montados?”, interroguei-me eu uma mão cheia de vezes, a ver o tempo passar sem que outra coisa acontecesse senão esse labor das duas mulheres a montar andaimes. E, de súbito, estou numa trincheira em Erbil, num abrigo em Gaza, nas profundezas de uma estação de metro em Kiev, e não sei o que pensar, o que dizer. Sinto e sofro com os murros no estômago que não param de se suceder. “Na Guerra é sim ou não; situações de mais ou menos não existem”! “Em guerra, alcançar a meta é chegar vivo”! “Não há cães nas ruas porque comem-se os cães”! “Cuidado, cuidado, cuidado, cuidado”! É preciso dizer ainda que o trabalho de Mariana Ramos Correia e Cátia Terrinca na condução do espectáculo é de um nível superior. Ambas são comoventes de sinceridade, de coragem, de humanidade, na forma como tocam, como olham, como desenham a poesia que poisa e alastra, que harmoniza, pacifica, liberta. A Paz é a Paz.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Os Mercados e a Tradição Pascal em Castelo de Vide”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Os Mercados e a Tradição Pascal em Castelo de Vide”,
de Diogo Margarido
Átrio dos Paços do Concelho de Castelo de Vide
27 Mar > 01 Mai 2024


Em Castelo de Vide assistimos a uma fusão de culturas e religiões que, segundo os investigadores, é única no mundo. As celebrações da Páscoa, a gastronomia ou a onomástica da população local, são testemunhos vivos das influências judaicas na região, de finais do século XV até aos nossos dias. No tocante aos ritos pascais - para os castelovidenses a festa da família por excelência, com mais relevância até que o Natal -, para além das habituais procissões do Enterro do Senhor e da Ressurreição (em cujo cortejo não estão presentes quaisquer imagens religiosas), são de referir a Emulação do Cordeiro Pascal, a Benção dos Borregos e o almoço de Páscoa que junta toda a família à mesa e em que nenhuma outra carne, para além do cordeiro, é servida. É o tempo do Sarapatel, dos molhinhos de tomatada e do cachafrito, do folar e do bolo finto, das queijadas e das boleimas. Na memória de muitos restam ainda os mercados como momentos importantes nos dias que antecediam a Páscoa, transformados em locais de compra e venda, mas também de convívio e de troca de ideias entre a população.

“Os Mercados e a Tradição Pascal em Castelo de Vide” recupera, através do olhar de Diogo Margarido, esses momentos únicos de reunião e partilha. Nascido no Escoural em 1932, num contexto humilde que não lhe permitiu uma formação estética e técnica de base, a sua ligação à fotografia surge com o ingresso na CUF - Companhia União Fabril, e ligação ao Departamento Fotográfico do Grupo Desportivo da CUF. O forte associativismo operário da zona do Barreiro foi também determinante, cujas bibliotecas alimentaram um espírito curioso e insatisfeito, com câmara emprestada, e sem acesso a laboratório, dependendo das casas comerciais para revelação e ampliação dos seus trabalhos. Uma vida profissional intensa ligada à indústria não evitaria uma continuada prática fotográfica, numa aprendizagem esmagadoramente autodidacta, fundada numa colecção de livros que foi acumulando e num investimento pessoal em equipamento. Foi este Diogo Margarido que no século XX descobriu e retratou a etnografia, a preto e branco, de Castelo de Vide, registando quadros verdadeiramente únicos e elucidativos da vida quotidiana, festiva e popular desta sua segunda terra.

Uma parte do seu imenso acervo sai agora à rua para enriquecer a oferta cultural da Páscoa castelovidense, com uma selecção de vinte quadros que ilustram uma realidade perdida no dealbar deste novo século. O átrio dos Paços do Concelho volta a ser ponto de encontro de quem pretende conhecer ou recordar a tradição. É lá que vamos ao encontro da Procissão e dos momentos que a antecedem, da banda de música que afina os últimos acordes, das pessoas que aguardam sentadas nos muros a passagem do cortejo, de gente nas varandas, anjinhos, freiras, o padre debaixo do pálio com a custódia. Mas também do mercado onde os borregos aguardam em cortes improvisadas a hora de serem comprados e onde percebemos outros que já seguem às costas de novo dono. Há quem venda cestaria e quem venda alhos, há quem esteja a apreçar e quem esteja apenas a apreciar. No seu modo de retratar a azáfama à sua volta, Diogo Margarido capta de forma única os olhares que se estendem para fora de campo, deixando-nos a tarefa de imaginar aquilo que a fotografia não mostra. Para ver até 01 de Maio.

TEATRO: "Fado Alexandrino"



TEATRO: “Fado Alexandrino”
Texto | António Lobo Antunes
Encenação, adaptação cénica e dramaturgia | Nuno Cardoso
Cenografia | F. Ribeiro
Música | Pedro “Peixe” Cardoso
Figurinos | Nélson Vieira
Interpretação | Ana Brandão, António Afonso Parra, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias, Roldy Harris, Sérgio Sá Cunha, Telma Cardoso
Produção | Teatro Nacional de São João
240 Minutos | Maiores de 16 anos
Teatro Nacional de São João
21 Abr 2024 | dom | 16:00


“Estou em Lisboa e em Moçambique, vejo ao mesmo tempo os jardinzitos gotosos e as palhotas devastadas pelas metralhadoras”. Em “Fado Alexandrino”, António Lobo Antunes mergulha-nos num tempo compósito, accionado pelo movimento da rememoração. Cinco personagens, militares que regressaram da guerra em África dez anos antes, juntam-se num jantar, um encontro de reflexões sobre um fim e o seu luto, uma espécie de Última Ceia. Nuno Cardoso leva à cena aquele que é considerado o grande romance sobre o 25 de Abril, na celebração do seu cinquentenário. O palco devém um imenso mural, que confere matéria, pela presença e contracena dos actores, pelo trabalho dos criativos, às vivências das personagens em quatro tempos que se interpenetram: o Estado Novo, a memória da guerra colonial em Moçambique, a Revolução dos Cravos, o pós-Revolução. História com histórias dentro, Fado Alexandrino é uma alegoria sobre o fado de ser português.

Não li “Fado Alexandrino”, mas creio ter lido o suficiente de António Lobo Antunes para poder afirmar, com enorme certeza, que o respeito pelo texto foi uma das grandes preocupações de Nuno Cardoso, a ela acrescentando, na adaptação cénica como na dramaturgia, uma fidelidade absoluta ao pensamento do escritor. Encontramos na peça a mesma ausência de linearidade discursiva, a decomposição da palavra, a polifonia, a narrativa metaficcional, as metáforas e hipérboles sempre presentes ou a forma como Lobo Antunes se repete, enquanto marcas distintivas de um pensamento delirante e imagético, capaz de repelir o leitor com a mesma força que o atrai. É todo este mundo, fechado sobre si mesmo, claustrofóbico, obsessivo, labiríntico, paranóico, um mundo onde as personagens se sobrepõem e misturam o passado com a realidade, a memória com o presente, que se abre ao espectador em quatro horas de fúria e desejo, raiva e terror, desprezo e paixão, dor e morte.

Quatro horas. Leram bem. Quatro horas de uma exigência brutal, tanto para o público, que percebe de imediato estar perante um exercício de teatro invulgar e a cujo envolvimento não conseguirá escapar, quanto para os actores, quase ínfimos face ao “Adamastor” físico e psicológico que têm à sua frente, comoventes na sua coragem, na sua bravura, de aceitarem ser cartas de um baralho destinadas a serem mil vezes embaralhadas, partidas e tornadas a dar. É duma extraordinária peça de teatro que falo, já se percebeu. Absorvente, provocante, não pega no espectador pela mão e passeia com ele por um qualquer jardim zoológico, antes o agarra pelas tripas, obrigando-o a sentir o cheiro do medo, a provar o gosto do sangue, a olhar de frente o pesadelo da guerra, a pesar, uma a uma, as letras com que se escreve a palavra morte. Peça de teatro total, “Fado Alexandrino” mistura, sem meias palavras, o trágico e o cómico, colocando-nos perante o abismo da ausência e o fantasma do horror e mostrando-nos as almas que se esgotam lentamente até ao vazio absoluto. Uma extraordinária forma de festejar os 50 anos do 25 de Abril, neste país que fomos, neste país que somos.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "Golpe de Estado no Chile"



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Golpe de Estado no Chile”,
de Horacio Villalobos
MFA - Mostra de Fotografia & Autores
Clube Fenianos Portuenses
23 Mar > 11 Mai 2024


No dia em que celebramos 50 anos do 25 de Abril e prestamos a nossa homenagem ao movimento dos capitães e à forma como, pondo cobro a quase meio século de ditadura, nos abriram um futuro assente nos valores da liberdade, da justiça e da democracia, abrimos espaço a uma extraordinária reportagem de Horacio Villalobos, integrada na “Mostra de Fotografia & Autores”. Com o fotógrafo recuamos a 11 de setembro de 1973 e ao Golpe de Estado protagonizado por militares comandados pelo general Augusto Pinochet que derrubou o Governo socialista de Salvador Allende e levou à instauração de uma ditadura que se prolongou até 1990. É desse dia que nos falam as imagens de Villalobos, as ruas tomadas de assalto por carros de combate, as balas nas paredes das instalações da United Press International, um corpo tombado no meio da rua, o olhar vazio dos (poucos) transeuntes, o palácio de La Moneda em chamas após ter sido bombardeado.

O Golpe de Estado chileno de 1973 foi um derrube militar do governo da Unidade Popular, liderado pelo Presidente Salvador Allende. Allende, o primeiro socialista a ser eleito presidente numa democracia liberal latino-americana, enfrentou uma grande agitação social dos setores conservadores, tensões políticas com o Congresso, controlado pela oposição, e uma guerra económica ordenada pelo Presidente norte-americano Richard Nixon. Em 11 de setembro de 1973, as forças armadas, lideradas pelo General Augusto Pinochet, tomaram o poder através de um golpe, pondo fim ao regime civil e instalaram uma ditadura militar. Durante os ataques aéreos e terrestres ao Palácio de La Moneda, Allende proferiu o seu último discurso, manifestando a sua determinação em permanecer no palácio presidencial e rejeitando ofertas de salvo-conduto para o exílio, e suicidou-se após um combate desigual que faz lembrar a batalha das Termópilas.

A resistência obstinada de Salvador Allende e do pequeno grupo que o acompanhou na defesa de La Moneda contra o assalto, privou Pinochet do triunfo de ver um presidente deposto fugir para um exílio dourado, tão comum na região e na época, e poderia ser resumida pela frase exposta no desfiladeiro das Termópilas, na Grécia: “Viajante, vai dizer a Esparta que os que aqui jazem tombaram em defesa das suas leis”. Durante o período que mediou entre 1973 e 1990, foram incontáveis as violações dos direitos humanos, perseguições de opositores, repressão política e terrorismo de Estado, que haveriam de vir a ser considerados crimes contra a humanidade. Segundo a “Comissão da Verdade” e a “Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura”, o número total de pessoas oficialmente reconhecidas como mortas ou desaparecidas no Chile é de 3.216 e o de sobreviventes de prisão política ou tortura ascende a quase quarenta mil. Durante este período, centenas de milhares de chilenos foram obrigados a exilar-se e a sua resistência continua a inspirar o resto do mundo democrático.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “MFA – Mostra de Fotografia & Autores”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “MFA – Mostra de Fotografia & Autores”
Vários artistas
Clube Fenianos Portuenses
23 Mar > 11 Mai 2024


A comemorar 120 anos de existência, o Clube Fenianos Portuenses assinala a efeméride com um conjunto de iniciativas de âmbito cultural, entre as quais se destaca a “Mostra de Fotografia & Autores” que, até 11 de Maio, ocupa dois pisos do edifício sede do emblemático clube da Invicta. Integrando dezanove exposições de fotografia, quatro delas coletivas, e uma exposição de ‘cartoons’, produzida em parceria com a Casa da Imprensa, a mostra ocupa espaços conhecidos e menos conhecidos do Clube, surpreendendo pela sua dimensão e qualidade das propostas, a pedir meças aos melhores Festivais do país. Organizado pela CC11 – associação cultural fundada em 2020 que produz e divulga projectos ligados ao jornalismo visual –, o evento propõe um olhar transversal e eclético sobre a sociedade contemporânea e traz com ele a promessa de abalar o pensamento social, através da lente de 126 fotógrafos de várias latitudes.

Passando um olhar pelos momentos que compões a “Mostra de Fotografia & Autores”, começaria por duas exposições que têm a ver, de forma íntima, com a casa que as acolhe. A primeira é “Aurélio Paz dos Reis, Uma Vida”, onde se expõe, pela primeira vez, uma parte do espólio de família deste portuense nascido em 1862, reconhecido como “fotógrafo exímio” e que foi um dos mais notáveis sócios do Clube Fenianos Portuenses. A outra apresenta-se sob a bandeira “Colectivo” e junta António Pedrosa, Lara Jacinto e Miguel Proença na sua visão fragmentária dos Fenianos. As restantes exposições colectivas são o projeto “Casa”, que junta vinte e sete fotógrafos, “Kioskzine”, de treze autores, e “Edição Limitada - Grande Formato”, o projeto maior da exposição, que reúne o contributo de sessenta e sete fotógrafos. Rompendo com a arte dominante, Cristina Sampaio apresenta os seus melhores cartoons de 2023, alguns dos quais lhe renderam importantes prémios internacionais.

No tocante às exposições individuais, a relevância de uma parte delas faz com que sejam merecedoras de destaque aqui no blogue ao longo dos próximos dias. Uma delas é “Corpo em Dança”, do conceituado fotojornalista Paula Pimenta, vista anteriormente no Teatro Municipal de Vila do Conde e cuja recensão crítica pode ser recuperada AQUI“Fundação Lar do Emigrante Português no Mundo”, da autoria de Nélson Miranda, mostra o olhar sobre quem está fora e leva Portugal consigo. Horacio Villalobos traz-nos as imagens do “Golpe de Estado no Chile”, em 1973, ao passo que Elisa Freitas mostra “Na hora da verdade não sabia como lê-las”, projecto documental que mergulha na história de um casal que se conheceu na época da Guerra Colonial em Portugal, a partir de um anúncio no jornal. Em “Ponto de Chegada”, André Rodrigues fala-nos da descoberta do litoral alentejano como uma espécie de soalheira Califórnia europeia para os colossos multinacionais dos frutos vermelhos. Entre as demais propostas, há também essa extraordinária exposição de Clara Azevedo, “365 Dias que Mudaram as Nossas Vidas” e que fala de um vírus que virou o Mundo do avesso. Aconselho a que não percam esta exposição e que a vejam com o tempo que ela merece.

terça-feira, 23 de abril de 2024

CINEMA: "O Poder da Terra"



CINEMA: “O Poder da Terra” / “Chlopi”
Realização | DK Welchman, Hugh Welchman
Argumento | DK Welchman, Hugh Welchman
Fotografia | Szymon Kuriata, Radek Ladczuk, Kamil Polak
Montagem | Beata Hincke, Patrycja Piróg, Miki Wecel, DK Welchman
Interpretação | Kamila Urzedowska, Robert Gulaczyk, Miroslaw Baka, Sonia Mietielica, Ewa Kasprzyk, Cyprian Grabowski, Mateusz Rusin, Cezary Lukaszewicz, Dorota Stalinska, Helena Korczycka, Andrzej Mastalerz, Andrzej Konopka, Sonia Bohosiewicz
Produção | Sean M. Bobbitt, Hugh Welchman
Polónia | 2023 | Animação, Drama, História | 114 Minutos | Maiores de 14 anos
UCI Arrábida 20 - Sala 7
22 Abr 2024 | seg | 16:05


“O Poder da Terra” é um filme de animação e, simultaneamente, uma ficção histórica sobre a vida na Polónia rural no início do século XX. A história centra-se em Jagna, uma mulher pobre que vive na aldeia de Lipce. Dotada de uma grande sensibilidade, gosta de fazer recortes em papel, mas sabe que a arte não é caminho viável num meio onde a ambição não vai além de uma boa colheita e a desconfiança e a tacanhez se impõe nas conversas e nas atitudes. Acabado de enviuvar, o primeiro agricultor, de entre todos o mais rico, acaba por despojar Jagna, cujo coração pende para um dos enteados. Numa cidade pequena e coscuvilheira, são poucos os segredos que podem permanecer ocultos e Jagna acaba por ser apanhada pelo marido e o castigo não tarda em chegar. Entretanto, a aldeia vive momentos de crise, com a perda das colheitas, e é necessário encontrar um bode expiatório. Jagna será maltratada e vilipendiada, acabando por ser expulsa da aldeia.

É difícil ver “O Poder da Terra” como um filme de animação, de tal forma estamos habituados ao estilo específico de uma Disney ou de uma Pixar. Animação é sinónimo de desenho animado, feito para ser algo que claramente não tem base no realismo. Mas olhamos para este filme e estamos, obviamente, no domínio da animação. Cada fotograma parece uma pintura exibida nas paredes de um museu que, como por magia, ganha vida. Um rubor nas bochechas de Jagna, um brilho nos olhos de Antek, um sorriso nos lábios, falam-nos de arte em movimento entendida de uma forma literal. As personagens não parecem ter sido criados apenas para o filme. Os seus movimentos são naturais, há emoção no seu olhar, e isto deve-se à rotoscopia, um processo de animação utilizado com maestria pela dupla de cineastas DK e Hugh Welchman. Um processo lento e meticuloso que permite recriar rostos e ambientes, roupas e movimentos, e que resulta num deleite visual absolutamente cativante.

Baseado numa obra em quatro volumes de Władysław Reymont, escritor e romancista polaco galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1924, “O Poder da Terra” lança um olhar sobre a liberdade da mulher no início do século XX. Ambiciosa, a adaptação cinematográfica procura abranger os acontecimentos dos quatro volumes, o que fatalmente joga contra si. Parece faltar alma às personagens, órfãs de um desejo profundo que explique as suas motivações. Há folclore a mais, e momentos introspectivos de construção e desenvolvimento das personagens a menos. Apesar destes problemas estruturais, seria injusto não valorizar o filme, sobretudo naquilo que ele tem de labor artístico. Foram mais de duzentas mil horas a criar as pinturas a óleo que dão origem ao movimento que o público vê no ecrã. Artistas da Polónia, Lituânia, Ucrânia e Sérvia juntaram-se para tornar possível este filme, e a experiência visual de “O Poder da Terra” é algo de verdadeiramente inesquecível.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

EXPOSIÇÃO: "Mundo da Canção"



EXPOSIÇÃO: “Mundo da Canção”
Curadoria | Manuela Matos Monteiro, João Lafuente
Consultores | José Pacheco Pereira, Manuel Vitorino, Rita Maltez
Mira Fórum
06 Abr > 08 Jun 2024


Mundo da Canção. Serão cada vez menos aqueles que recordam a Mundo da Canção (MC), revista publicada pela primeira vez em 19 de Dezembro de 1969 e que viria a tornar-se uma referência cultural no Porto e no país. Tendo Avelino Tavares como fundador e editor, a MC deu palco a músicos da canção portuguesa e internacional como José Afonso, José Mário Branco, Luís Cília, Fausto, entre outros, mas também Leonard Cohen, Donovan, Deniz Cintra, Arrival, The Beatles e Bee Gees, chegando a ter uma tiragem de 25 mil exemplares. Activista cultural, Avelino Tavares viria a trabalhar na organização, produção ou divulgação de festivais, como o Festival de Jazz do Porto, o Praia Blues ou o Intercéltico do Porto, a ele se devendo a vinda à cidade de reputados nomes da “world music”, como Cesária Évora (que celebrou os 25 anos de carreira, num espetáculo no extinto Cinema Terço), Leo Ferré, Paco de Lucía, Gal Costa, Astor Piazzola ou Miles Davis. É o labor e o legado deste homem dos sete instrumentos que os promotores da exposição “Mundo da Canção” pretendem recuperar, através de um conjunto de objectos intimamente ligados à sua história e que podem ser vistos no Mira Fórum até 08 de Junho.

Torna-se difícil dizer uma revolução e a do 25 de Abril ainda o é mais porque foge aos modelos que a História descreve. Há subtis realidades que escaparam às narrativas maiores e o tempo, lentamente, tem-nas trazido ao de cima. Filtradas, decantadas, as causas profundas da rotura de quase meio século de ditadura aparecem como realidades que pareciam menores mas que, afinal, tiveram um papel importante na formação de uma consciência cívica, de uma cidadania crítica que trouxe para a rua um país em busca de liberdade. É neste contexto que surge esta exposição cujo objectivo é explorar o papel que o projecto / revista Mundo da Canção teve na formação de tantos adolescentes e jovens adultos, hoje septuagenários ou mais adiantados no tempo. Partindo do acervo do Arquivo EPHEMERA - doado por Avelino Tavares -, que conta com milhares de documentos que ilustram o percurso de um projecto com múltiplas vertentes, a exposição “Mundo da Canção - Quem canta o MAL espanta. A cantiga é uma ARMA” pretende dar a conhecer o lugar do MC na história da Revolução de Abril.

Porque a memória é uma certa forma de vida, esta é também uma oportunidade para homenagear Avelino Tavares que acompanhou a elaboração deste projecto de contar a MC, mas que infelizmente não pode vivê-lo. A sua presença faz-se sentir ao longo de toda a exposição, dos muitos cartazes onde avultam os nomes de Pablo Milanes, Paco Ibañez, Nara Leão e Zeca Afonso, aos “Livre Trânsito” de concertos ou Festivais icónicos, do cuidado posto na organização do concerto de Fausto na apresentação de “Por Este Rio Acima” ao levantamento nas instalações da extinta PIDE/DGS do nº 34 da MC, uma edição que “viajou” directamente da tipografia para os armazéns da polícia política e aí passou 13 longos meses. Refira-se, ainda, que esta exposição é mais uma prova da importância do Arquivo EPHEMERA que permite contar realidades que escapam à fontes formais de registo da História. Neste tempo de celebração da Revolução de Abril, o Arquivo EPHEMERA disponibilizou materiais para mais de cinquenta iniciativas em Portugal e no estrangeiro no que pode ser considerado um verdadeiro serviço público.

domingo, 21 de abril de 2024

CONCERTO: Amaro Freitas



CONCERTO: Amaro Freitas
Ovar em Jazz 2024
Centro de Arte de Ovar
20 Abr 2024 | sab | 21:30


Não podia ter terminado da melhor forma a sétima edição do Ovar em Jazz. Sozinho em palco com o seu piano, Amaro Freitas ofereceu ao público uma noite inesquecível, fortemente espiritual, num despertar constante de emoções e sensações ao encontro da floresta amazónica e da sua biodiversidade. É lá longe, entre a estridência da vida animal e o cheiro intenso a terra molhada, o brilho da lua nas várzeas e a delicadeza da flor do aguapé, o encontro das águas e o poder incandescente dos espíritos encantados, que o compositor e pianista parte à descoberta de um novo reino de criação musical. Da impressiva exuberância da vida selvagem e do forte sentimento de pertença que as comunidades indígenas nutrem pela terra, nasce “Y’Y” (pronuncia-se “eey-eh, eey-eh”), o seu mais recente trabalho discográfico, no qual o artista rende homenagem à floresta e aos rios, num convite a “viver, sentir, respeitar e cuidar da natureza, reconhecendo-a como nosso ancestral”. Um disco que é também “um alerta para a necessidade de estarmos conscientes do impacto que causamos, a partir dos conceitos de civilização e modernidade que nos afastam dessa conexão, e da sua importância para o equilíbrio da vida no planeta”.

Fazem-se ouvir as primeiras notas e já os sentidos se apuram na certeza de esta poder vir a ser uma experiência única e irrepetível. Buscamos o Jazz, mas ele mostra-se esquivo, percebendo-se a espaços uma pitada de avant-jazz ou uma frase com ritmos do Caribe. Procuramos o Contemporâneo, mas é o Clássico que se impõe, em rigor e delicadeza. Julgamos abraçar o experimental, numa dimensão minimalista, mas é na música de raíz étnica, feita de magia e encanto, que desaguamos. Uma música que quebra os preconceitos e questiona as noções daquilo que o Jazz pode (ou deve) ser. Qualquer tentativa de classificar a música de Amaro Freitas esbarra na multiplicidade de texturas que a compõem, nos sons que são ecos, num piano que se transforma em tamborim ou berimbau, numa kalimba que é gota de chuva ou grito da selva. Deixarmo-nos levar nas asas do sonho e do encanto é a solução. Fechemos, pois, os olhos e aceitemos os espíritos poderosos que voam ao nosso encontro. Sucedem-se os ritmos e harmonias complexas e é natural perguntarmo-nos como é possível tocar em dois compassos diferentes, um em cada mão. Terá Amaro Freitas dois cérebros?

Se com o anterior “Sankofa”, o pianista apostava na recuperação de um mundo ancestral, usando as lições do passado como farol no esforço de seguir em frente, agora, com “Y’Y” (uma palavra do dialeto Sateré Mawé, um código indígena ancestral que significa “água” ou “rio”), é possível ver temas que não são falados em português ou inglês, mas que fazem parte da construção de um conceito social solidamente entrosado. Daí que não espante a sua opção de entrelaçar neste projecto, tão significativamente, os conhecimentos mais antigos. Isto torna-se particularmente evidente no tema que dá nome ao concerto e que procura traduzir a força ancestral do encontro das águas dos rios Negro e Solimões em dois movimentos opostos, as vocalizações carregadas de eco a soarem como cânticos do passado. Tema final do alinhamento, “Gloriosa” - uma homenagem a Rosilda, a mãe de Amaro Freitas, suporte e fonte de inspiração musical desde a infância - teve o condão de juntar ao piano as vozes do público, num momento de espiritualidade e cumplicidade maior. Público que, com as gargantas afinadas, reclamou um “encore” no qual as vozes voltaram a ser postas à prova. O final perfeito de um Ovar em Jazz mais consolidado, mais forte, mais livre e vivo. Um Ovar em Jazz maior!

[Foto: Ovar/Cultura]

sábado, 20 de abril de 2024

CONCERTO: Abe Rábade



CONCERTO: Abe Rábade
Ovar em Jazz 2024
Centro de Arte de Ovar
19 Abr 2024 | sex | 21:30


A preencher a terceira noite do Ovar em Jazz, Abe Rábade trouxe ao Centro de Artes os sons da Galiza. Entre a magia de uma música de raiz celta e a versatilidade e originalidade que caracterizam o próprio Jazz, o músico e a sua banda abriram clareiras por entre as árvores que povoam os bosques do Noroeste peninsular, apontando aos espaços onde se fundem a ancestralidade e o presente, o místico e o pragmático, o rural e o urbano. Colhendo a inspiração na vegetação autóctone da Galiza, “como um prolongamento das nossas emoções e intuições”, o pianista e compositor de Santiago de Compostela abraçou o projecto “Botánica” e fez questão de presentear o público com um conjunto de temas extraídos deste que é o seu décimo quinto álbum de estúdio em nome próprio. Sobre o palco, além de Rábade, estiveram Davide Salvado na voz e percussões, Daniel Juárez no saxofone tenor, Virxilio da Silva na guitarra, Ton Risco no vibrafone, Jimena Andión no violoncelo, Alejandra López no contrabaixo, Naíma Acuña na bateria e ainda o bailador Miguel Pardo de Castro. Foi este grupo artístico heterogéneo que fez do tempo do concerto um tempo de integração de estéticas musicais e de exploração rítmica e melódica descomplexada e livre. O público gostou.

Um “díptico” inspirado na bétula, ou vidoeiro - árvore cujo tronco é de “um branco quase espectral e com uma folha muito pequenina, muito cantarina” -, abriu o concerto, funcionando como uma espécie de resumo daquilo que iríamos escutar. Mas se a árvore que servia de ponto de partida era a mesma, as músicas mostraram-se tão diferentes entre si como o Inverno do Verão. “Menciñeira Nua” é um tema intimamente ligado à chamada música celta, um género inscrito na world music, ao passo que “Vestida de Bop” vai beber a sua essência às fontes clássicas do Jazz. Este último tema, o mais longo do concerto com os seus doze minutos, teve ainda o condão de “apresentar” os músicos e a sua qualidade instrumental, em solos onde a classe e o virtuosismo de Daniel Juárez, Ton Risco e Virxilio da Silva, sobretudo estes, veio ao de cima. No seu todo, o concerto viria a alternar entre os dois géneros, ora mostrados na sua forma mais genuína e pura, ora correndo ao longo de uma linha de fronteira nem sempre distinguível, misturando-os e confundindo em composições com tanto de refrescante como de vivo e livre.

Firmados os pressupostos, prosseguimos a viagem sobrevoando um bosque de freixos - “cantarei pola túa vida / tu que bailas con bo xeito / de meniño que me miras / entre as poliñas do freixo” - rumo à Serra do Courel e à Devesa da Rogueira. É desse lugar mágico e da sua vegetação que Abe Rábade extrai uma espécie de “suite” onde cabem o Narciso e a Faia, o Castanheiro e o Teixo, numa alusão clara ao ciclo da vida e ao conhecimento que vamos adquirindo com o passar do tempo. Entre os ramos do salgueiro e as folhas do sobreiro, o concerto prosseguiu numa espécie de adoração aos quatro elementos, com a mensagem implícita de uma natureza ameaçada que cabe a todos defender e preservar. Termino dizendo que é legítimo que cada um queira para si o melhor de dois mundos, mesmo sabendo que, as mais das vezes, isso é impossível. A abordagem conjunta a dois géneros que, embora próximos entre si, têm características próprias e fortemente vincadas, faz com que este projecto corra o risco de não agradar “nem a gregos nem a troianos”. Por mim, grego ou troiano que seja, gostaria de ter visto mais Jazz na noite de ontem. Mas não me posso queixar, já que os momentos ligados ao género de forma mais íntima foram preciosos.

[Foto: Ovar/Cultura]

sexta-feira, 19 de abril de 2024

CONCERTO: L. U. M. E.



CONCERTO: L. U. M. E.
Ovar em Jazz 2024
Centro de Arte de Ovar
18 Abr 2024 | qui | 21:30


Nascido em 2006 da vontade e do crer de Marco Barroso, o projecto L.U.M.E. (Lisbon Underground Music Ensemble) preencheu o programa da segunda noite do Ovar em Jazz 2024. Atendendo à presença em palco de quinze instrumentistas, é legitimo pensar que esta foi “a noite da big band”, o que não deixa de ser verdade. Mas aquilo que o público pôde escutar foi um agrupamento que ostenta a particularidade de saber distanciar-se dos padrões convencionais do “bigbandismo”, reformulando-lhe o património natural e alargando os seus horizontes ao acrescentar-lhe estéticas novas, assentes na irreverência da abordagem e nos ritmos não lineares. Original, provocadora e desafiante, a música do L. U. M. E. revelou-se um deslocar constante entre a dramatização, muitas vezes irónica, das práticas e vocabulários do jazz, e o experimentalismo, numa espécie de caleidoscópio onde se percebe a efervescência criativa do ensemble nessa tensão constante entre a composição e o improviso.

A surpresa foi a nota dominante nos momentos iniciais do concerto. Sobretudo para aqueles que tiveram o privilégio de assistir à primeira noite do Ovar em Jazz, a “mudança de chip” foi tudo menos fácil. Passar da caixa de palco para [uma música] “fora da caixa” levou a que a adesão não fosse imediata – Mário Barroso chegou mesmo a dizer, não sem uma pontinha de ironia, que “este público não vai lá com duas cantigas” – e entre o estranhamento o entranhamento, o concerto terá merecido as mais diversas apreciações. Já com algum distanciamento, a avaliação que se faz acaba por ser muito positiva e, se falei de estranhamento, a conclusão é que foi um estranhamento bom. “L.U.M.E. que arde sem se ver”, a música soube assentar, acabando por se impor e deixar a certeza de que o tempo do concerto não foi perdido. Enérgica e atrevida, foi direita aos sentidos, num apelo ao sinesteta que há em cada um de nós. E desfez-se em gosto e em gesto, em raios de luz e pele de galinha.

A apresentar “Las Californias”, o seu mais recente trabalho discográfico, o projecto L. U. M. E. fez incidir no novo disco os três primeiros temas interpretados. Impulsionados pela bateria de Diogo Alexandre, os músicos impuseram a sua individualidade, chegando a ser desconcertante a forma como cada um contribui com a sua autonomia e rigor para um resultado de conjunto refrescante e livre. O solo inaugural de Tomás Marques, um prolongado grito do seu saxofone alto, pode servir de mote aos vários solos que se lhe seguiram em temas posteriores, com destaque para as prestações de João Silva (trompete), Rúben da Luz (trombone), Gonçalo Prazeres (saxofone tenor), Paulo Gaspar (clarinete) e, claro, Marco Barroso (piano). Sequência de pequenas peças, “AM fantasies” trouxe-nos os primórdios do jazz, Dr. Tulp ofereceu-nos (a “violência gráfica” de) uma aula de anatomia e “Freestyle boogie” e “Lux”, recuperados do extraordinário álbum de estreia, foram momentos de ritmo e energia contagiantes. “Bugalu”, já no encore, fechou da melhor forma uma noite que não deixou ninguém indiferente.

[Foto: Ovar/Cultura]

quinta-feira, 18 de abril de 2024

CONCERTO: Mário Costa Quarteto



CONCERTO: Mário Costa Quarteto
Ovar em Jazz 2024
Centro de Arte de Ovar
17 Abr 2024 | qua | 21:30


O Ovar em Jazz está de regresso com a sua sétima edição. Assente numa programação diversificada e de enorme qualidade, que o vem consolidando como um dos grandes eventos do género no nosso país, o Festival volta a oferecer, ao longo de quatro dias, um conjunto de momentos fortemente alicerçados no melhor que o Jazz pode oferecer, combinando a aprendizagem com a experimentação, a escuta com a festa e a celebração. O “pontapé de saída” foi dado na noite de ontem, cabendo ao Mário Costa Quarteto o momento inaugural com a chamada para primeiro plano de “Chromosome”, o mais recente trabalho discográfico do agrupamento. Depois dos merecidos elogios ao seu álbum de estreia “Oxy Patina” – considerado pela Jazz.pt como o “melhor disco de jazz nacional” em 2018 –, e da recente nomeação de “Chromosome” para os Prémios Play na categoria de Melhor Álbum de Jazz, este concerto era aguardado com natural expectativa e o mínimo que se pode dizer é que não defraudou os presentes, saldando-se por uma extraordinária noite.

Partilhando com os músicos o intimismo da caixa de palco do Centro de Arte de Ovar, o público teve a oportunidade, desde os momentos iniciais, de perceber a noção de “cromossoma” que subjaz ao título do concerto e do álbum. Gileno Santana no trompete, Benoît Delbecq no piano, sintetizadores e samplers, Bruno Chevillon no contrabaixo e Mário Costa na bateria, fizeram questão de mostrar as formas e cores do material genético que incorpora a sua música, dissecando, nas componentes estruturais, o ritmo e a harmonia, pondo em evidência a “tetraploidia” que é, neles, sinónimo de cumplicidade, e fazendo dos emparelhamentos, translocações e crossovers entre si, momentos de intimidade e liberdade, prazer e fruição. Ao rigor e talento da sua escrita, junta Mário Costa o cuidado pelas particularidades de cada um dos músicos, o respeito pela sua individualidade, o valor do seu ADN, material genético onde a ousadia se combina com a irreverência, a subtileza com a elegância, a versatilidade com a espontaneidade e a genialidade.

Sem território definido, entre o clássico e a vanguarda, o swing e o experimental, com uma não desprezível componente electrónica e um piscar de olho ao rock, o concerto começou por propor uma viagem em águas abertas ao encontro de um tremendo “Adamastor”. Com Mário Costa ao leme, dobrada a tormenta, foi o Pacífico que se abriu à nossa frente, numa subversão geográfica, uma daquelas excentricidades metafóricas que fazem parte do ADN do próprio Jazz. O trompete de Santana conduziu-nos às ilhas “Moluccas” e daí seguimos até à Lua, experimentando a gravidade zero de “Moonwalk”, impulsionados por Chevillon e pelo seu contrabaixo em registo minimalista. Descemos então à terra, ao corpo, ao núcleo do núcleo da célula e percebemos a maravilhosa diversidade de “Chromosome”. Enfim, tocados pelo melodrama, contemplámos a tenda de circo remendada, os palhaços tristes e o amor impossível do trapezista por “Victoria”, a rapariga de tranças que vende bilhetes, chupa-chupas e batatas fritas. Fazendo a ponte com o ábum anterior, “Erosion” fechou a noite da melhor forma. Um concerto memorável, que podemos classificar numa palavra apenas: Perfeição!

[Foto: Ovar/Cultura]

quarta-feira, 17 de abril de 2024

LIVRO: "País de Abril - Uma Antologia"



LIVRO: “País de Abril – Uma Antologia”,
de Manuel Alegre
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2014


“Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.”

Quarenta anos volvidos sobre a Revolução dos Cravos, Manuel Alegre reuniu numa antologia, à qual chamou “País de Abril”, um conjunto de 29 poemas, extraídos dos seus livros “Praça da Canção”, “O Canto e as Armas”, “Atlântico”, “Chegar Aqui” e “Livro do Português Errante”, e ainda dois poemas, um publicado na Nova Renascença e outro no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias. São poemas de Abril, no país de Abril. Poemas que sabemos de cor, alguns deles mil vezes escutados na voz, sobretudo, de Adriano Correia de Oliveira. Poemas que têm na resistência o seu sentido e na defesa dos valores de Abril a sua linha de combate e de acção. Poemas que exaltam a igualdade, a solidariedade e a justiça, que se fazem sentir no sentido das palavras. Poemas que nos falam de gente que não sabe ler os avisos secretos do poema e que nos dizem quão triste pode ser Abril no País de Abril. Mas que não nos negam a esperança, em cravos acesos na boca e trovas a florir (“verdes folhas verdes mágoas”), crianças a rir na madrugada e mãos que são o canto e são as armas.

São inúmeros os aspectos a valorizar nesta Antologia, nomeadamente a força que emana de cada poema e que é um traço que os une de forma indelével. Mas aquilo que mais chama a atenção e, no meu caso, permanece fonte de admiração (e algum desconcerto), é o facto de encontrar aqui poemas que falam de Abril antes de Abril e de Maio antes de Maio. “Poemarma”, do livro “O Canto e as Armas”, anuncia, com sete anos de antecedência, os primeiros comunicados do Movimento dos Capitães: “Que o poema seja microfone e fale / uma destas noites de repente às três e tal / para que a lua estoire e o sono estale / e a gente acorde finalmente em Portugal.” Mais antigo ainda, o poema “Nós Voltaremos sempre em Maio”, antecipa em dez anos um momento de enorme felicidade, quando Manuel Alegre regressa ao nosso País, em Maio de 1974, após um longo período no exílio.

Saber ler os sinais do tempo é um dos mistérios do poema. Talvez por isso a poesia soe de uma maneira tão intensa e arrebatadora. Se dúvidas houvesse, “Vinte Anos Depois” estaria aí para as dissipar. Poema dedicado ao 25 de Abril e publicado na Primavera de 1994, vem-nos dizer: “Vinte anos depois a história escreve-se ao contrário / Abril é uma data do avesso e os tanques / estão a voltar em marcha-atrás a Santarém. / se por acaso alguém dissesse É a Hora / verias que ao redor ninguém ninguém.” Mais trinta anos passados e o desencanto não cessa de crescer. Termino com uma nota muito pessoal e que tem a ver com a circunstância de, pela primeira vez na vida, ter declamado poemas perante um público. Foi no Centro de Reabilitação do Norte na tarde de ontem, “a pedido de várias famílias”, e o facto de ter comigo esta Antologia fez com que dela escolhesse, para celebrar Abril e os 50 anos em liberdade, “Poemarma”, “Letra Para um Hino” e “As Mãos”. Uma de muitas escolhas possíveis de um todo intenso, vivo e livre.

terça-feira, 16 de abril de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Esta Máquina, Esta Objectiva, Estas Fotografias: 25 de Abril de 1974, Quinta-Feira”



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Esta Máquina, Esta Objectiva, Estas Fotografias: 25 de Abril de 1974, Quinta-Feira”,
de Alfredo Cunha (fotografia) e Alexandre Farto aka Vhils (gravura)
Centro Português de Fotografia
06 Abr > 28 Jul 2024


“A professora mandou‑nos calar e estava a tentar sintonizar o rádio. A determinada altura recambiou‑nos a todos para casa. É tudo o que me lembro desse dia. Tinha 6 anos, estava na 1.ª classe, e pertenço à geração que, nas décadas seguintes, foi acusada de ter perdido o 25 de Abril. Só lá para as eleições de 1980, com uns sólidos 12 anos, é que estava politizado o suficiente para entrar na luta partidária, como era costume na época. Tinha perdido a festa. Mas então o que estou a fazer neste projeto?”

Tenho vários 25 de Abril. Este é o meu favorito: estou na Amadora, são 3 e tal da manhã e ouço pela primeira vez na vida o “Riders on the Storm”, dos Doors. Lá para as 4 e tal começam a dizer que algo se está a passar em Lisboa. Visto‑me e decido ir para o Século. Vou para a estação. Passo pelo bairro de lata da Falageira, uma das vistas mais miseráveis dos subúrbios de Lisboa e que tenho fotografado nos últimos anos. Chegado à estação do Rossio, corro até ao Bairro Alto, à redacção do Século, e saco o maior número de rolos possível. Uns quarenta. São umas 6 da manhã. Está lá o Mário Zambujal, que destaca o jornalista Mário Contumélias e a mim para seguirmos para o Terreiro do Paço. Só lá para as 9 e tal é que tenho a primeira conversa com o Salgueiro Maia. Vê‑me fotografar e pergunta‑me o que estou ali a fazer. Digo que sou do Século. Pergunta‑me se sou dos deste lado ou dos outros. Não sei bem o que dizer e respondo que estou ali daquele lado a fotografar. Então ele diz‑me para passar a barreira e não ficar escondido.

Este dia 25 de Abril não me pertence. É o 25 de Abril do Alfredo Cunha, então com 20 anos e que logo no início da carreira tem inesperadamente o dia mais importante da sua vida de fotógrafo. Uma dádiva e uma maldição. Há 50 anos que incansavelmente fotografa, expõe e publica como que para fugir e de novo voltar a esse dia. Esse 25 de Abril que não é meu e que relato na primeira pessoa foi surgindo como peças de um puzzle ao longo das centenas de horas que passámos nas viagens de trabalho em conjunto. Uma história que surgia após um silêncio de quilómetros numa picada. Episódios de que ele próprio não se lembrava e de repente lhe ocorriam. Um dia percebi que o meu dia 25 de Abril já era o dele. Naquele dia, foi gerindo os 40 rolos. Não sabemos se, caso tivesse tirado mais uns milhares de fotos, o seu dia 25 de Abril fotográfico seria mais ou menos intenso em termos imagéticos do que aquele que ficou. Havia a decisão de captar o momento, o que obrigava a puxar manualmente o rolo e perder complemente a situação. E não ceder à tentação de encenar a foto perfeita.

Cinquenta anos depois, Vhils é convidado a selar este projecto, como se se tratasse de uma cápsula feita para enviar para o futuro, para ser vivido, dado ter sido fotografado por quem vive apaixonadamente uma revolução. Deixe‑se levar para aquele dia em que 240 homens (muitos deles meros rapazes), vindos de Santarém, libertaram um país inteiro da mesquinhez instituída, de um poder autocrático e beato que sobrevivia da ignorância dos pobres que controlava. Quando der por isso, estará a ver como a coragem de um só homem perante carros de combate tocou de tal forma os que o estavam a ver do outro lado, que decidiram arriscar tudo e negar‑se a disparar. E assim, sem o saber, derrubaram naquele momento o regime. Foi o cair de uma mordaça pestilenta que sufocava. E o dar um fôlego de quem quer comer o mundo ao encher os pulmões de liberdade fresca e matinal. E gritar.

A próxima revolução pela liberdade não será tão simples e feliz.

[Texto adaptado do original da autoria de Luís Pedro Nunes]

segunda-feira, 15 de abril de 2024

TEATRO: "O 25 de Abril Nunca Aconteceu"



TEATRO: “O 25 de Abril Nunca Aconteceu”
Texto e encenação | Ricardo Alves
Cenografia | Ricardo Alves, Sandra Neves
Figurinos | Inês Mariana Moitas
Interpretação | Beatriz Baptista, Eloy Monteiro, Ivo Bastos, Filomena Gigante, Mário Moutinho, Rodrigo Santos, Valdemar Santos
Produção | Teatro da Palmilha Dentada
90 Minutos | Maiores de 14 anos
Teatro Carlos Alberto
14 Abr 2024 | dom | 16:00


Como seria Portugal se Salgueiro Maia não tivesse parado no semáforo vermelho, tivesse chocado com um camião de entrega de pão e o 25 de Abril não tivesse acontecido? Nos 50 anos da Revolução dos Cravos, o Teatro Nacional São João convidou a Palmilha Dentada a aventurar-se numa ficção distópica. “O 25 de Abril Nunca Aconteceu” acompanha um dia na vida da família Freitas, numa estética devedora de filmes como “O Pai Tirano” e “O Pátio das Cantigas”. O mundo avançou, mas Portugal não. A PIDE continua ativa e cada vez mais ridícula. As crocs, tal como a coca-cola, são proibidas. O pai trabalha via Internet num esquema de extorsão de dinheiro a mulheres falantes de português espalhadas pelo mundo. A empresa, tal como as tipografias anteriores a 1974, é local de funcionamento de uma célula clandestina, que põe a circular informação sobre a ditadura portuguesa. É nela que se ensaia uma peça que reflecte sobre a ficção de ter havido, na verdade, um 25 de Abril e as pessoas viverem hoje melhor. O encenador é preso.

Não é preciso consultar nenhuma estatística para perceber que a percentagem daqueles que têm memória do “antes” e que viveram efectivamente o 25 de Abril é cada vez mais reduzida. Isso faz com que, inevitavelmente, haja o aspecto emocional que se perde, independentemente da passagem do testemunho vivido e dos registos dos livros de história. O lado imensamente afectivo do 25 de Abril é uma das suas marcas mais perenes e deve-se à intensa vivência que a dita “última revolução romântica do seculo XX” proporcionou àqueles que tiveram a felicidade de a viver. Saiu-se de um ambiente cinzento e taciturno para uma explosão de luz e de alegria, onde um regime decrépito se finou, com a multidão nas ruas a clamarem liberdade e os cravos a despontar dos canos das metralhadoras. Em algumas horas, passámos de um povo manso e obediente a um mar de gente onde em cada rosto se via uma esperança nascente. Mais do que os factos, a sensação de liberdade e a memória dessa embriaguez, dessa esperança desmedida, são o fundamental a celebrar em Abril.

Para o comemorar, a Palmilha Dentada escolheu fazê-lo desaparecer e, com isso, tornar mais vivo na nossa actualidade um “antes” de que alguns dizem ter saudades. O acto tem tanto de provocatório como de pedagógico. Nos trabalhos da Palmilha, o texto é pretexto e o humor é o contexto. O colectivo cultiva o seu público, não para lhe agradar, mas para o agarrar, para o trazer para as questões aparentemente simples que nos enformam como sociedade. Assim também é neste seu 25 de Abril falhado (a revolução, não a peça) - um retrato onde se efabula como se tudo hoje fosse (quase) como antes. Todos sabemos que a hipótese é absurda, que o regime estava moribundo, que se não fosse assim era assado e que se não fosse a 25 era a 26; mas a fábula é importante para a reflexão da realidade. O texto do Ricardo Alves é eficaz no nosso retrato: nós somos os Marcolinos, os Pôncios, os Rosendos e as Ofélias de hoje. Reconhecermo-nos neles é perceber de que forma teríamos conseguido chegar à liberdade se o Salgueiro Maia não tivesse parado no semáforo.

Mas temos de estar atentos, perceber que depende de nós que aquele que “ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” não encontre espaço para a sua visão retrógrada e saudosista; estar preparados para agir, para novas formas de construir a democracia e preservar a liberdade. Os espectáculos da Palmilha habituaram-nos as cenas que se compõem à nossa frente e aos seus finais abruptos sem termos de esperar muito tudo acontece porque tem de acontecer e acaba porque tem de se acabar. Batemos palmas e seguimos com a nossa vida. Tratamos de regressar a casa em sossego, mesmo que com algo a bulir na nossa cabeça para além do riso e da boa disposição. Pensamos na peça e sentimos o dever de preservar e acarinhar as nossa liberdade e a nossa democracia. ASbandonar um pouco a afectividade sentimental pela data e abraçar a afectividade cerebral pelo seu significado. Substituir um bocadinho do coração por um pouco de pensamento construtivo. Efectivamente, o 25 de Abril nunca aconteceu. O 25 de Abril acontece todos os dias e tem de continuar a acontecer todos os dias. Depende de nós. E nós dependemos disso.


domingo, 14 de abril de 2024

LIVRO: "Os Memoráveis"



LIVRO: “Os Memoráveis”,
de Lídia Jorge
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2014


“Não havia rumor, não havia estrondos, não havia sirenes, não havia polícia e nós pensámos. Teremos mesmo nós cem colocado a gravação no ar? Foi mesmo verdade, ou foi um sonho, que há meia-noite e vinte o som dos passos começou a rolar pelo país fora, e depois dos passos do coro veio a voz do Zeca? A canção do Zeca? O cante dele? A sua voz alternando com a voz dos companheiros? Meu Deus! Tanto silêncio, tamanha calma, pensámos, nós cem, quando parámos entre as duas igrejas. Possivelmente terá sido uma fantasia das nossas cabeças, nós cem não teremos colocado a fita no ar, a canção não terá passado, ninguém neste país a terá escutado, nenhum civil, nenhum militar em nenhum quartel, em nenhum regimento, e era por isso que nada iria acontecer. Pensámos nós, os cem.”

Quanto tempo será necessário para decifrarmos o que verdadeiramente se passou no 25 de Abril de 1974? Há que arrepiar caminho, já que o tempo começa a escassear, a memória vai pregando partidas e os grandes actores desses momentos vão desaparecendo do mundo dos vivos, levando consigo a verdade dos momentos que fizeram deles memoráveis. Lídia Jorge oferece, com este seu livro, um conjunto de pressupostos que são, se assim o quisermos entender, manobras de aproximação à realidade dos homens e mulheres de Abril, aqueles que, ao lado de El Campeador, no próprio dia da Revolução, se viraram para o general que fixava cada um deles através de uma lente de vidro e prometia prebendas a quem tinha feito o golpe de Estado: “Não queremos recompensa nenhuma. E tome cuidado connosco, general. Olhe que este dia ainda não terminou, a revolução ainda está na rua, os tanques ainda não regressaram aos quartéis, e os rapazes que têm as armas só vão precisar de dormir lá para o mês que vem.”

O poder da ficção é enorme, mostra-nos a autora neste seu livro. Partindo de um trabalho para uma série de uma cadeia de televisão norte-americana, uma jornalista portuguesa regressa a Portugal cinco anos depois de ter deixado o País. Nesta “viagem ao coração da fábula”, tem por missão documentar os momentos de uma revolução feita sem derramamento de sangue e entrevistar alguns dos seus principais protagonistas. Um jantar que se estendeu pela madrugada fora e uma fotografia que ilustra o encontro de “memoráveis” são o ponto de partida de uma viagem ao passado, onde a irreverência, a audácia, a coragem e a nobreza se cruzam com a hipocrisia, a falsidade e a traição. Onde se olha, uma e outra vez, para os portões com buracos feitos por balas, para os braços das mesmas árvores onde populares se empoleiraram para assistir à queda de um regime de meio século, para o mar de gente a descer a avenida com espigas de trigo nos chapéus e cravos na lapela, um povo outrora escravo a cantar a liberdade.

Hábil a trazer-nos a sua visão da História, Lídia Jorge faz de “Os Memoráveis” um exercício de recuperação da memória. São muitos os momentos eloquentes, desde logo a recusa do “Ministro” em atribuir a Salgueiro Maia uma pensão vitalícia “por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país”, depois do pedido ter sido votado favoravelmente pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República. A autora não refere o nome deste “Ministro”, da mesma forma que nunca menciona os nomes dos “memoráveis”, optando por uns enigmáticos Oficial de Bronze e Charlie 8, Tião Dolores e El Campeador, o Nunes e Ernesto Salamida, os poetas Ingrid e Francisco Pontais. Caberá ao leitor descobrir quem é quem nesta história, sendo certo que uma passagem pelos motores de busca mostra a quantidade de leitores e estudiosos que se vão debruçando sobre o assunto e partilhando as suas conclusões. Por tudo quanto nos traz e pela forma como está escrito, “Os Memoráveis” é um grande livro de Abril, um livro de hoje e de sempre.