CINEMA: “Dreams” / “Drømmer”
Realização | Dag Johan Haugerud
Argumento | Dag Johan Haugerud
Fotografia | Cecilie Semec
Montagem | Jens Christian Fodstad
Interpretação | Ella Øverbye, Selome Emnetu, Ane Dahl Torp, Anne Marit Jacobsen, Andrine Sæther, Ingrid Giæver, Lars Jacob Holm, Nadia Bonnevie, Ella Bothner-By, Brynjar Åbel Bandlien, Valdemar Dørmænen Irgens, Silje Breivik, Anne-Karen Hytten, Eija Saraneva
Produção | Hege Hauff Hvattum, Yngve Sæther
Noruega | 2025 | Drama, Comédia, Romance | 110 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar – Castello Lopes
29 Nov 2025 | sab | 15:10
Uma semana após a estreia de “Sex”, chega às salas de cinema “Dreams”, novo capítulo da “trilogia de Oslo”, da autoria do realizador norueguês Dah Johan Haugerud. Se no filme anterior o cineasta investigava o desejo adulto e as tensões das relações maduras, aqui desce à zona mais frágil do sentimento humano: o primeiro amor. A protagonista é Johanne, uma adolescente que, ao apaixonar-se pela nova professora de francês, deixa que a imaginação enrede ficção e realidade, num diário onde o verbo antecede sempre a acção. Esse dispositivo literário, eco da formação de Haugerud como escritor, concede ao filme uma interioridade rara, permitindo que as dúvidas e devaneios da jovem habitem o ecrã com a mesma naturalidade com que atravessam a sua consciência. Longe do melodrama que outro realizador poderia explorar, o autor opta por um cinema que observa sem escândalo, que interroga em vez de sentenciar, e que percebe na escrita uma forma de ordenar o caos emocional. É nesse registo desarmante, guiado por diálogos de precisão cirúrgica, que “Dreams” afirma a singularidade de uma trilogia cujos títulos se desvanecem nos genéricos, mas permanecem como mapa emocional de uma cidade e das vidas que a percorrem.
A conquista do Urso de Ouro na Berlinale deste ano — um feito inédito para o cinema norueguês — premeia “Dreams” pela sua coragem e ousadia. Piscando o olho ao cinema de Éric Rohmer, Haugerud convoca o espectador para o lugar da fantasia na formação amorosa, dando a ver a permeabilidade entre gerações e a forma como cada mulher de uma mesma família responde ao que foi, ao que é e ao que poderia ter sido. A leitura do diário de Johanne por mãe e avó desencadeia um movimento de espelhos, onde as projecções da jovem iluminam as frustrações adormecidas e os sonhos perdidos das progenitoras. Haugerud mostra-se capaz de converter conceitos abstractos como o amor, o desejo ou a esperança, em estados sensoriais que moldam o quotidiano. Oslo emerge, assim, como palco emocional partilhado, onde cada recanto acolhe memórias e onde a intimidade é também um território urbano. Ainda que, tal como em “Sex”, possamos apontar ao filme algum excesso de conversação e uma certa contenção visual, é precisamente na palavra, volátil como uma nuvem, concreta como uma confissão, que o filme encontra a sua força, tornando sensível aquilo que tantas vezes permanece por dizer.
Se “Sex” se debruçava sobre a atracção, “Dreams” ocupa o interstício inaugural, a centelha que antecede a queda, o sobressalto que forma, tanto quanto fere. Haugerud filma esse limiar com maturidade invulgar, conferindo ao amor inaugural a dignidade que muitas narrativas lhe recusam. Em vez de inocência cristalizada, mostra um processo de descoberta em que a fantasia se torna mecanismo de sobrevivência, uma forma de os adolescentes traduzirem o mundo antes de nele se inscreverem plenamente. Longe do ornamento, a “voz off” actua como extensão do corpo e da hesitação, revelando um talento literário que a própria família tenta apropriar, numa cadeia de leituras, equívocos e projecções que toca simultaneamente o íntimo e o político. Há momentos em que a trama se afasta da delicadeza inicial para insinuar repercussões sociais, mas esse desvio não anula a autenticidade do percurso emocional. No fim, “Dreams” assume-se como atualização contemporânea dos velhos rituais de passagem, reconhecendo a repetição dos esquemas amorosos e a persistência do deslumbramento, mesmo quando as ilusões se desmoronam. Um belíssimo momento de cinema, terno e sensível, que vale a pena saborear.
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