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domingo, 30 de novembro de 2025

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #100 Expandida
Com | Ana Castro e Rosalina Macieira de Castro
Apresentação | Tiago Alves
120 Minutos | Maiores de 12 Anos
Escola de Artes e Ofícios
28 Nov 2025 | sex | 21:30


Em tempo de festa e de celebração da sua sessão n.º 100, o Shortcutz Ovar quis expandir o momento a um conjunto de novos filmes, reafirmando o compromisso que, desde 2017, sustenta a relação entre o certame e o seu público. Menos participada do que o habitual, esta edição especial construiu-se em torno do tema “Corpo & Memória”, fazendo dessa promessa um gesto concreto ao colocar em diálogo duas obras que investem na forma como o tempo se inscreve em nós e nos transforma. Em “Salto”, de Ana Castro, e “Kora”, de Cláudia Varejão, o corpo surge como arquivo vivo, território onde a memória se movimenta, resiste e se reinventa. Juntas, as duas curtas foram um convite ao espectador a pensar no que permanece e no que se perde, no que se recorda através do gesto ou da palavra, mas também no que a imagem cinematográfica guarda quando tudo o resto ameaça desaparecer. Uma escolha que sublinha a maturidade do projecto e a sua capacidade de continuar a interrogar o presente, e cujas reflexões partilhadas com um público particularmente interveniente fizeram do serão um dos mais gratificantes momentos de cinema na vida do Shortcutz Ovar.

“Salto”, da realizadora Ana Castro, abriu a sessão, levando os espectadores a acompanhar o processo de revisitação das memórias da avó da cineasta, Rosalina Macieira de Castro, uma das primeiras paraquedistas civis portuguesas. Investigação íntima transformada em gesto político, o filme constrói-se como uma ponte entre gerações, cruzando imagens de arquivo pessoal, testemunhos directos e filmagens contemporâneas, que recuperam a determinação daquelas que ousaram desafiar os céus de um país marcado por uma visão redutora e retrógrada do papel da mulher. No cuidado balanço entre o peso da história e a leveza da lembrança, “Salto” afirma-se não apenas como retrato de uma época, mas como reflexão sobre o legado feminino, as ausências que persistem e o que continua por dizer. Na sessão expandida do “centenário” do Shortcutz Ovar, a presença da avó Rosalina reforçou a dimensão viva desse legado, alimentando um diálogo vibrante sobre coragem, determinação e a força de ser mulher, mas também sobre a experiência nas antigas colónias portuguesas, onde, paradoxalmente, se respirava um ar mais livre. “Salto” revela-se, assim, como o próprio gesto da realizadora: Um mergulho nas raízes e na identidade, um movimento de busca que prova que certas memórias, mesmo herdadas, continuam a pulsar no presente.

No segundo filme da noite, a curta-metragem “Kora”, Cláudia Varejão parte do gesto ancestral de fixar uma sombra na parede para iluminar a vida de mulheres refugiadas que reconstroem o presente em Portugal, trazendo no bolso o retrato de quem amam e no corpo as marcas do que deixaram para trás. Produzido pela Terratreme Filmes, o documentário convoca a mitologia grega para sublinhar a origem íntima da imagem: guardar alguém para que não desapareça. É a partir dessas fotografias, frágeis âncoras de identidade, que o filme desenha a silhueta de mulheres vindas de territórios em conflito - a Ucrânia e o Afeganistão, o Sudão, a Rússia e a Síria -, muitas delas instaladas em contextos precários, em trânsito, tentando integrar-se num país que ainda lhes oferece escasso amparo. Para quem enfrentou a travessia em condições extremas ou viu a família destruída, revisitar memórias pode ser insuportável, mas o que dizem, as ideias que partilham, continuam a ressoar em nós como um verdadeiro manifesto político. Abandonar o próprio país é “ser um jogador de futebol sem pernas”, enquanto continuar significa carregar o passado, não apagá-lo. No subtexto, impõe-se a pergunta que o filme não resolve, mas devolve ao espectador: E aqueles que não têm como fugir e acabam por sucumbir ao genocídio — como em Gaza?

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