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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

LIVRO: "O Rasto dos Peregrinos" | André Domingues



LIVRO: “O Rasto dos Peregrinos”,
de André Domingues
Ed. Poética Edições, Agosto de 2025


“Eu disse-lhe ‘olá’ e fiquei com a sensação de que tinha dito muito pouco. Depois virei-me para trás e gritei: ‘Alexandra!’. Ela estancou o passo e eu comecei a caminhar ao seu encontro. ‘Alexandra’, disse eu, já muito próximo, um pouco atordoado e ofegante, ‘quero dizer-lhe que a respeito muito’, e imediatamente percebi que estava a ser demasiado abstracto, formal, idiomático, laborioso, e tentei corrigir, ‘quero dizer-lhe que gosto muito de si’, mas agora a frase tinha saído com o relevo de outras conotações. ‘Eu sei que isto pode parecer-lhe absurdo, mas sou escritor e queria pedir-lhe a sua autorização para entrar num livro meu’.”

“O Rasto dos Peregrinos”, o novo livro de contos de André Domingues, aí está para nos inquietar e desafiar. Nele, o autor articula uma série de narrativas que orbitam a esfera pessoal de amigos, de conhecidos e desconhecidos, dotados todos de uma espécie de atavismo emocional que regressa como quem volta a casa apenas para descobrir que a casa já não é a mesma. Na esplanada de um bar, à beira da piscina ou num quarto de hotel, as personagens entram e saem sem pedir licença, prontas para nos inquietar e nos perguntar, olhos nos olhos, o quanto delas reside em cada um de nós. Como alguém que não quer, mas quer muito fazer parte do enredo, o autor insinua-se quase como um mito doméstico, uma presença inquieta que assume recorrentes crises de identidade, deslizes morais e epifanias rutilantes. Observador atento e envolvido na análise dessa fronteira ténue onde o quotidiano tropeça no absurdo, André Domingues faz da pena um espelho capaz de tudo distorcer, convidando o leitor a descobrir o verosímil no ridículo que se abriga num grupo de amigos presos num bar que se afunda, nos amantes decididos a perder todo o pudor, num escritor fracassado apaixonado por uma prostituta virtual, num poeta sem amor-próprio e por aí fora. Tudo isto com uma minúcia psicológica que nos faz entender ser nosso este seu mundo.

Numa prosa que oscila entre o terno e o cínico, o autor abre-nos a possibilidade de, através das personagens, descermos ao mais fundo de nós, sempre com a graça trágica de quem caminha alegremente em direcção ao abismo enquanto vai tecendo comentários sobre o tempo que anunciam para o próximo fim de semana. Há, por exemplo, a Maria Tânger que todos os dias prova a si própria que ainda sabe chorar - “rir, toda a gente ri, ok. Mas chorar… quem é que hoje em dia ainda consegue chorar?” Noutra narrativa, seguimos dois grandes leitores que se conhecem na esplanada de um bar e contam um ao outro verdades que só na sua imaginação existem. Ao longo de quase duzentas páginas, são onze os contos que se abrem ao leitor, formando no seu todo um catálogo de personagens que se debatem com as suas versões idealizadas, tropeçando em relações imprudentes e amizades tóxicas, lutando para se manterem unidas e adoptando, para o efeito, as mais variadas estratégias de duvidosa eficácia. Ainda assim, a escrita de “O Rasto dos Peregrinos” é marcada por um charme desconcertante, capaz de transformar os pequenos desastres em observações humanas de rara precisão e argúcia.

Entre “a página em branco que dói na sua implacável nudez” e “uma metáfora que não corresponde às condições atmosféricas, o que sobressai no livro é a forma como o autor, com um humor vivo, retrata a confusão emocional como se esta fosse o estado natural da espécie humana. E talvez seja. As personagens movem-se guiadas por impulsos contraditórios: Desejam pertencer e simultaneamente fugir, buscam amor enquanto coleccionam as piores decisões. Há introspecção, mas sempre manchada de uma ironia resignada, como se André Domingues nos viesse dizer, fazendo uso da sua própria experiência e convicções, que crescer não ilumina coisa nenhuma, apenas torna a escuridão mais palpável. Não se pense, porém, que estes contos se votam ao desalento. Há, aqui e ali, lampejos de ternura, pequenos actos de coragem doméstica e uma espécie de esperança teimosa que insiste em sobreviver, mesmo quando as personagens tentam sabotá-la de todas as maneiras. No conjunto, “O Rasto dos Peregrinos” oferece-nos um retrato incisivo das fraquezas contemporâneas, mas com aquela generosidade perversa que só a boa ficção permite: julgamo-las, rimo-nos delas, reconhecemo-nos nelas e por fim aceitamos que talvez a única coisa verdadeiramente atávica seja este hábito humano de procurar um sentido no caos em que estamos mergulhados.

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