Álvaro Domingues é um dos nossos maiores pensadores da paisagem e do território. Assente em livros, imagens e conferências, o que vou sabendo dele, o que vou vendo e escutando, reforça a cada dia esta certeza. Com profundidade consistente, o seu trabalho incide no estudo da geografia urbana, no território, na paisagem e nas políticas urbanas, conjugando investigação teórica e elaboração crítica. No passado mês de Julho, foi eleito Académico Efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, sinal por demais evidente da sua relevância científica no panorama português. Essa construção intelectual serve de alicerce a um olhar fotográfico que não é mero capricho artístico, antes resulta de um pensamento geográfico, sociológico e político, estruturado e amadurecido no meio académico. Exemplo acabado de um “olhar o território não como cenário, mas como processo”, aí está, à vista de todos, “Todo o Mundo é Composto de Mudança”, exposição de fotografia inaugurada no passado sábado no Centro de Arte de S. João da Madeira, com curadoria de Aníbal Lemos. Nela, o visitante entra com a convicção de que irá ver paisagem, mas sairá a perceber que viu tempo: O tempo das lendas herdadas, o tempo das metamorfoses rápidas, o tempo de um território que insiste em estender-se muito além de uma só fotografia, quanto mais de um só discurso.
No centro do trabalho de Álvaro Domingues está um olhar atento à paisagem como espelho das transformações sociais e económicas: Ele não apenas fotografa, mas “lê” o território. A sua famosa noção de “paisagens transgénicas” reflecte precisamente essa abordagem crítica. Ao inspirar-se no conceito biológico de organismos geneticamente modificados, Domingues descreve paisagens híbridas, instáveis, compostas por elementos muito diversos — rurais, industriais, urbanos — que coabitam num mesmo quadro estético e simbólico. Nas suas fotografias, tais paisagens revelam a dissolução das fronteiras tradicionais entre o “natural” e o “artificial”, oferecendo uma metáfora sociológica e política para a mudança acelerada e a globalização. Domingues convida-nos a perceber que vemos mal e identificamos pior, educados que fomos por um imaginário que promete permanência onde só existe fluxo. Mas, em vez de lamentar estragos, o autor propõe uma leitura mais madura: a paisagem como sismógrafo, registo das mudanças que fizemos, das escolhas que repetimos, dos desejos e omissões que deixámos impressos no território. A sedução das imagens resulta precisamente dessa ambiguidade: são belas, mesmo quando denunciam, poéticas mesmo quando se afirmam como “meios complementares de diagnóstico”.
Criticamente, a obra de Álvaro Domingues sugere uma tensão entre a promessa de desenvolvimento e o agravar das desigualdades. Fazendo valer o olhar irónico e um humor subtil, as suas imagens iluminam discrepâncias económicas e culturais nos territórios sobre os quais se debruça. Em Portugal como no Brasil, no México como em Espanha, o seu olhar guia o espectador ao encontro de construções improvisadas, viadutos interrompidos, cabos eléctricos emaranhados, rotundas que culminam estradas sem saída, animais de todos os géneros que povoam paisagens marcadas pela tecnologia. Domingues não pretende resolver o território, nem celebrá-lo ou castigá-lo. Pretende apenas torná-lo legível. E para isso desmonta mitologias, raspa vernizes, aproxima escalas, cruza o microscópico com o monumental. Cada fotografia é um convite à dúvida e um desafio à simplicidade com que julgamos compreender o espaço que habitamos. No fim, a exposição opera um raro efeito: devolve-nos o território como tarefa, um lugar em permanente experimentação, para o qual não basta olhar; é preciso interpretar. Sai-se com a sensação de que, “entre a rua e o país” vai, de facto, “o passo de um anão”. Mas que esse passo, quando dado com olhos de ver, pode revelar mais do que qualquer geografia oficial. Álvaro Domingues, uma vez mais, ensina-nos a caminhar.
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