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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” | Maria Beatitude



EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados”,
de Maria Beatitude
Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira
22 Nov 2025 > 04 Jan 2026


“Num mundo onde tudo é agitação e afazeres, o tédio é cada vez mais necessário.
É no vazio que a mente procura novas ideias e conceitos.
O cenário parece perfeito para o nada poder acontecer, mas é nesse contexto de vazio que tudo acaba por surgir.
Obras que integram a palavra e a forma para que novos conceitos possam ocorrer.”
Maria Beatitude

Ver pela primeira vez uma exposição individual de Maria Beatitude, após anos a acompanhar o seu trabalho disperso em mostras colectivas, é como entrar num território finalmente revelado por inteiro. Já nas aparições fragmentadas se intuía que a artista não pintava apenas imagens: Pintava estados mentais, fricções interiores, pequenos abalos da experiência contemporânea. As suas obras sempre conseguiram mostrar-me uma tensão entre a delicadeza do gesto e a urgência da mensagem, uma percepção aguda de um mundo fragmentado e do nosso viver face a fracturas e dissoluções, da nossa necessidade de encontrar formas de habitar o desassossego sem sucumbir a ele. “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” confirma essa intuição antiga: a artista cria aqui não apenas uma exposição, mas um espaço mental, quase terapêutico, onde a pausa deixa de ser interrupção e passa a ser condição de sobrevivência. Assinado pela neurocientista Luísa V. Lopes, o texto que integra o catálogo convoca a ciência como aliada e torna visível aquilo que a prática de Maria Beatitude sugere: Que pensar devagar, divagar, permanecer em suspensão, entediar-se, não é desperdício. É método, é resistência, é tempo. Tempo de qualidade.

“Podiam ser frames de um filme. Podiam ser momentos de introspecção ou reflexão, momentos de pausa, de divagação ou de simples “Dolce Far Niente”. Podia ser tudo isso ou apenas um momento de tédio onde ‘Numa cadeira sobre um tapete aos quadrados’ tudo pode acontecer. Podem surgir as melhores ideias, a resolução para aquele problema até ali irresolúvel ou, simplesmente, ficar a contemplar com mais tempo.” O uso insistente da cadeira e do tapete — motivos aparentemente simples — ganha uma densidade simbólica que se aprofunda ao vê-los em comunhão num discurso coerente. Maria Beatitude sempre trabalhou com objectos silenciosos, dotando-os de uma vibração simbólica que ultrapassa a superfície pictórica; mas aqui essas imagens tornam-se verdadeiros dispositivos de introspecção. A cadeira vazia é simultaneamente convite e ausência, promessa e perda. O tapete geometrizado organiza o espaço como quem tenta organizar a mente. O diálogo com os espelhos “DRAMA” e “ROMANCE” enfatiza essa dramaturgia da interioridade, recusando a ideia da simples categoria literária e assumindo-o como modos de existir, narrativas que cada visitante reencontra em si.

Ambiguidades e utopias, levezas e paixões, possibilidades e mentiras, compêndios e diários ou as “narrativas que não tiveram um fim” revelam outra dimensão do trabalho de Beatitude: a consciência de que a memória é sempre um processo incompleto, um arquivo instável que resistimos a perder, mas que raramente dominamos. Esta exposição traduz de forma exemplar a necessidade de criar zonas de abrigo mental num mundo em colapso acelerado. Ao longo dos anos, nas suas participações colectivas, percebia-se que a artista procurava mais do que fazer pintura — procurava fazer sentido, ou pelo menos dar forma ao que ainda não conseguia ser dito. Aqui, esse impulso atinge um grau de clareza raro: cada peça é um fragmento de pensamento tornado visível, uma tentativa de ordenar o caos sem o domesticar. Maria Beatitude parece propor que a sanidade não está na eliminação do ruído, mas na criação de espaços onde o ruído possa ser escutado sem nos desintegrar. Coreografia de pausas, “Numa Cadeira Sobre um Tapete aos Quadrados” é um convite a que cada visitante encontre o próprio eixo num mundo que insiste em o deslocar. Termina-se a visita com a sensação de que o tédio, esse estado tantas vezes desprezado, pode ser a porta para uma lucidez inesperada.

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