Surgida no âmbito do Ovar Expande, “Bandopipo: Da Aduela ao Brinde” é uma exposição sobre “a fusão da tanoaria com a música”, e que pode ser vista por estes dias na Escola de Artes e Ofícios. Nela, o fotógrafo Mário Lisboa desloca-se do gelo primordial para o calor íntimo da madeira trabalhada e do dedilhar das cordas de um instrumento musical, trocando a vastidão hipnótica do extremo sudoeste da Sibéria pela respiração concentrada das tanoarias, onde o ferro e as madeiras dialogam entre si e o artefacto se faz música. Depois de décadas a cartografar geografias exteriores — povos, paisagens, rituais, atmosferas — o fotógrafo volta-se agora para o espaço interior, onde a escala se reduz mas a intensidade permanece. O que aqui se vê é menos a representação das artes e ofícios e mais a revelação de uma alquimia que transforma matéria em som. Na Escola de Artes e Ofícios, as imagens constroem um percurso que acompanha a génese do Bandopipo, esse híbrido improvável nascido de um pipo e destinado ao convívio com a família do bandolim. Lisboa observa o fazer e o ensaiar, o gesto paciente do tanoeiro e a precisão do luthier, como quem acompanha o amadurecimento de um fruto raro. Entre fotografias, estações sonoras, videoarte e entrevistas, o visitante percorre um território onde as fronteiras entre artes e ofícios se dissolvem, e onde cada imagem parece conter, adormecido, o primeiro sopro de música.
Aquilo que começou como instrumento torna-se pretexto, e aquilo que se apresenta como exposição converte-se em narrativa de criação, partilhada em camadas de luz e som. O diálogo entre tanoaria e luteria, registado com a minúcia de quem deduz os ritmos secretos da matéria, surge aqui transfigurado em composição visual. Herdeiro de cinco gerações de fotógrafos, Mário Lisboa conhece a gramática própria que cada ofício encerra: o fogo que curva a aduela, o metal que fixa o arco da forma, a lâmina que afina o corpo ressonante, a corda que vibra em embalos sublimes. As suas vinte imagens percorrem esses gestos como quem decifra uma pauta, revelando o paralelismo entre fabricar pipos, construir instrumentos de corda e dar a ver as muitas sonoridades que neles se encerram. Se a madeira é a mesma, também é semelhante a tensão interna que conduz ao som: Primeiro contida, depois liberta, é a vibração que dá voz ao Bandopipo, acrescentando-lhe o pressentimento de uma ressonância futura. A instalação multissensorial acentua este parentesco: A videoarte de Carla Varanda devolve o ritmo dos gestos à orquestra; as estações de escuta expandem a Suite Bandopipo para além da imagem; as entrevistas restituem o timbre humano à técnica. No centro, como um coração que pulsa em silêncio, está o instrumento conceptualizado por Eurico Silva e materializado por Agostinho Rodrigues, meio bandolim, meio pipo, inteiro na ousadia de assumir o lugar de benjamim na distinta família dos cordofones.
No encontro entre matéria e metáfora, atinge a exposição a sua plenitude. O Bandopipo, instrumento improvável que faz passar a música para o vinho, reintroduz o visitante num território onde criação e celebração são indissociáveis. Se o pipo amadurece o líquido, aqui é a música que o acompanha no estágio, como se cada nota depositasse no néctar uma memória adicional. Mário Lisboa capta essa ideia com subtileza: as garrafas especiais — colheitas musicais que evocam os concertos da Orquestra de Bandolins de Esmoriz — erguem-se como testemunhos de uma alquimia final, onde a imagem se faz memória, o som se torna sabor e o gesto artesanal se converte em rito coletivo. A exposição culmina, assim, num brinde simbólico à tradição reinventada, à persistência dos ofícios e à imaginação que os reconfigura. O fotógrafo, habituado a percorrer o mundo em busca do extraordinário, encontra-o agora na intimidade da madeira, no sopro quente da tanoaria, na vibração que se faz música. E ao fazê-lo, confirma que a verdadeira viagem nunca depende da distância percorrida, mas da capacidade de olhar. Em “Bandopipo: Da Aduela ao Brinde”, Mário Lisboa devolve-nos esse olhar: preciso, sensível e profundamente enraizado na convicção de que a arte — como o vinho — se faz de tempo, gesto e partilha.
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