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domingo, 23 de novembro de 2025

DANÇA: "Umuko" | Dorothée Munyaneza



DANÇA: “Umuko”
Direcção artística | Dorothée Munyaneza
Figurinos | Stéphanie Coudert
Música | Impakanizi, Jean Patient Nkubana e Michael Makembe 
Luz e cenografia | Camille Duchemin
Interpretação | Jean Patient Nkubana, Impakanizi, Cedric Mizero, Abdoul Mujyambere, Michael Makembe
Produção | Virginie Dupray, com assistência de Nouria Tirou e Louise Mutabazi / cie Kadidi
70 Minutos | Maiores de 6 Anos
Teatro do Campo Alegre - Auditório
22 Nov 2025 | sab | 19:30


“Já lá vão 28 anos desde que deixei a minha terra natal.
28 anos a viver em novas terras.
28 anos a enraizar-me noutros lugares.
28 anos sem esquecer umuko, essa árvore que ilumina a minha infância. Essa árvore que só ressoa na língua materna. Essa árvore vermelha, vermelha como a terra, que me liga ao que começa, ao que se perde e se reencontra, quando volto, ao que continua…”
Dorothée Munyaneza

Em “Umuko”, Dorothée Munyaneza regressa simbolicamente ao coração da sua paisagem primordial para construir uma obra que é, simultaneamente, um rito de evocação e de projecção. A coreógrafa parte do “umuko”, uma árvore de flores vermelhas, guardiã de mitos e de práticas ancestrais, para ordenar um gesto artístico que interliga temporalidades, memórias e futuros possíveis. Não se pense, porém, que se trata de um retorno nostálgico. Ao invés, ele é incisivo, interroga, quer compreender. Depois de quase três décadas a viver entre Londres, Paris e Marselha, Munyaneza reencontra em “Umuko” a força daquilo que persiste, mesmo quando se vive fora do lugar de origem. E é dessa pulsação, dessa raiz que resiste ao exílio, que nasce um espetáculo onde corpos jovens encarnam uma herança que não é estática, mas em plena mutação. No palco, a árvore converte-se em dispositivo dramatúrgico: um centro simbólico que irradia sentidos e onde se instala o “ejo”, esse termo kinyarwanda que, ao significar ontem e amanhã, dissolve a fronteira entre o que foi e o que poderá vir a ser.

O gesto de Munyaneza é profundamente político, mas recusa o panfleto. Sem recorrer a imagens explícitas do genocídio de 1994 — cuja sombra permanece inevitável — “Umuko” coloca em palco cinco artistas nascidos depois da catástrofe, como quem responde à violência com vitalidade e imaginação. Impakanizi, Jean Patient Nkubana, Abdoul Mujyambere, Michael Makembe e Cedric Mizero formam um colectivo multiforme: dançam, cantam, tocam inānga e tambores, improvisam poemas. A coreógrafa carrega neles a marca dos “brand new ancients”, retomando a expressão de Kae Tempest para nomear aqueles que carregam uma memória ancestral enquanto inventam novas linguagens para o futuro. Cada gesto - um passo que fende o chão, uma vibração vocal que ecoa como prece, uma frase musical que convoca o épico - funciona como testemunho e reinvenção. O espectáculo sugere que a arte pode ser mais do que apenas memória: ela cura, reorganiza, reinscreve. A árvore ancestral torna-se, assim, uma metáfora do país inteiro, onde ramos frágeis e vigorosos coexistem, e onde o passado, por doloroso que seja, não impede a emergência de uma criatividade desarmante.

Enquanto experiência estética, “Umuko” move-se entre a celebração e a vulnerabilidade, num equilíbrio raro de força e delicadeza. A coreografia evita a monumentalidade e aposta num diálogo íntimo entre corpo, música e palavra, fazendo da alegria uma forma séria de resistência. É uma obra que se lê tanto como celebração - da juventude, da cooperação, da liberdade artística -, quanto como meditação sobre o que significa herdar uma história traumática sem permitir que ela determine ou extinga os horizontes possíveis. Munyaneza convoca o público para um encontro que é também uma pergunta: Como enfrentar a vida depois do irreparável? A resposta que oferece não é abstracta nem moralizante; está inscrita na fisicalidade destes jovens intérpretes, na audácia com que reinventam códigos tradicionais, na sua imensa alegria, na energia contagiante que irrompe do palco como promessa de continuidade. “Umuko” é, no fundo, um manifesto de persistência. Como as flores vermelhas da árvore, é uma criação que ilumina o caminho sinuoso entre o que perdemos, o que guardamos e o que nos permitimos sonhar.


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