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domingo, 28 de maio de 2023

CONCERTO: Adriana Calcanhotto



CONCERTO: Adriana Calcanhotto
Concertos Íntimos
Cine-Teatro de Estarreja
27 Mai 2023 | sab | 21:30


Adriana Calcanhotto elegeu o nosso país para dar início à “tour” mundial de apresentação de “Errante”, o seu décimo terceiro álbum de estúdio e o vigésimo da carreira. Depois de Coimbra e Lisboa, ontem foi a vez de Estarreja receber a artista, numa noite que encerrou o ciclo de Concertos Íntimos da temporada. Esta referência aos “Concertos Íntimos” não é inocente, já que de intimidade se vestiu a quase hora e meia que durou o concerto, repartindo-se por dezassete temas (dois dos quais já no “encore”) cantados praticamente em sistema “non-stop”. Através deles deu a cantora a escutar dez dos onze temas que compõem este novo trabalho, havendo ainda espaço para recuar a “Enguiço”, álbum de estreia datado de 1990, do qual cantou “Naquela estação”, uma das suas músicas mais icónicas. Cobrindo um arco temporal de mais de trinta anos de carreira, nesta revisitação não ficaram esquecidos “Beijo Sem”, “Mais Feliz”, “Maresia”, “Fico Assim Sem Você”, o incontornável “Esquadros” (com um arranjo inicial a beber a inspiração em Richard Strauss e no conhecido tema de abertura do filme “2001:Odisseia no Espaço”) e esse beijo a Coimbra que é “Corre o Munda”, do álbum “Só” (2020).

Acompanhada pelos músicos Jorge Continentino (flauta, saxofone, teclados), Diogo Gomes (trompete), Marlon Sette (trombone), Guto Wirtti (contrabaixo), Domenico Lancellotti (bateria) e Pedro Sá (guitarra), Adriana Calcanhotto abriu o concerto com “Prova dos Nove”, justamente o tema que inaugura o seu novo trabalho. Nele a cantora parece querer justificar esta sua “errância” - “Tenho o corpo italiano / O nascimento no Brasil / A alma lusitana / A mátria africana (…) / E a crença na alegria como prova dos nove” - , mas rapidamente se percebe que a errância será sobretudo íntima, interior, e a “alegria como prova dos nove” surgirá vertida na tristeza de quem se vê preterida por “não ser branca, não ser moça, por ser mulher” (“Quem Te Disse”), de quem perde um amor (“Era Isso o Amor?”), de quem não se vê correspondida (“Horário de Verão), de quem não aceita a despedida para sempre (“Reticências”). A errância, portanto, o ser “Nômade”, sem pouso, ser aquilo que se carrega amanhã cedo, ser aquilo que se carrega amanhecendo.

Dolorida, magoada, carregando no seu seio uma enorme tristeza (da doença? da perda? do luto?), foi esta a Adriana Calcanhotto que vi no palco do Cine-Teatro de Estarreja. A sua alegria contagiante, a sua energia e entusiasmo inspiradores, primaram pela ausência na noite de ontem. Às palmas que celebravam cada uma das músicas, respondeu com um sorriso tímido e um discreto “obrigada” que os acordes da música seguinte se encarregaram de abafar rapidamente. Nunca “provocou” o público e apenas na última música virou o microfone para a audiência, escutando, no retorno, “por que é que tem que ser assim / se o meu desejo não tem fim.” Foi uma Adriana Calcanhotto fragilizada, desprotegida, vulnerável, aquela que vi em palco. Uma Adriana com uma voz menos ágil, que dispensa o atrevimento do gesto, que caminha lentamente como quem percorre um trilho pejado de espinhos. Que mostra consciência das suas limitações (e isto é a minha sensibilidade a dizê-lo) e não desiste de as desafiar e de as assumir. Mas foi assim, despida de fantasias, inteira e limpa, que escolheu dar-se a ver. Tocante de humanidade, transformou o gesto e a palavra em instantes sublimes e únicos. E fez do concerto um dos mais belos momentos de sempre.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

CONCERTO: Armandinho



CONCERTO: Armandinho
Concertos Íntimos 2022
Cine-Teatro de Estarreja
13 Mai 2022 | sex | 21:30


Não me é fácil gostar da música de Armandinho. Mas é ainda mais difícil não gostar de Armandinho. Nesta aparente contradição radica o que de mais intrigante e de mais fascinante me foi dado ver e sentir num Cine-Teatro de Estarreja repleto de um público que, desde o primeiro momento, fez da sua presença um acto de festa e de celebração. E começaria precisamente por falar do público, um público muito diferente daquele que habitualmente preenche a sala de espectáculos de Estarreja, um público maioritariamente jovem e com um travo a canela na voz. Um público brasileiro, portanto, altamente motivado para escutar um dos seus, disposto a fazer do tempo de um concerto um tempo de histórias e memórias plantados no hemisfério sul, na margem direita do grande lago atlântico. Armandinho percebeu isso desde o primeiro momento. Espalhou a sua música como quem desfralda uma bandeira. O Brasil fez-se presente, misturando a batida pop e o reggae com o fado e a saudade. E a “galera” vibrou.

Porque é que não me é fácil gostar da música de Armandinho? Porque é, como ouço dizer desde que me lembro, “vira o disco e toca o mesmo". Há ritmo e cor e vida na música do cantor, mas escuta-se uma música e estão todas escutadas. Da mesma forma, as letras não primam pela originalidade. “Quando chegar o entardecer / é impossível não lembrar de você”, que encontramos em “Casa do Sol”, poderia muito bem ser o refrão de “Rosa Norte”, “Semente” ou “Desenho de Deus”. Mas que importância é que isso tem quando há centenas de gargantas na sala a entoar música após música, a preencherem os largos momentos em que Armandinho se debruça sobre o violão e se entrega, solto e livre, nas mãos do público? Sem nunca ter ouvido uma música sequer das mais de vinte que o artista cantou, sinto-me à margem de uma festa que apenas posso tentar compreender. Mas que me emociona e me faz acreditar ainda mais na música e no poder que tem de unir as pessoas em torno dos mais variados ideais.

Num registo praticamente “non stop”, Armandinho foi desfiando os seus maiores êxitos e abrindo espaço à participação do público. A chamada de “dois casais ao palco para dançarem um forró” resultou num momento de controlada euforia, que se foi descontrolando à medida que o concerto caminhava para o final. O público percebeu que em frente ao palco é que era bom e o Cine-Teatro de Estarreja transformou-se num enorme salão de festas onde dançar era a palavra de ordem. Quem, como eu, deixou de poder apreciar tranquilamente o espectáculo, vendo algumas dezenas de pessoas a saltar à sua frente, passou a ter uma de duas soluções: ou vencê-los ou juntar-se a eles. Escolhi a primeira opção e bati em retirada. A caminho de casa uma música parecia não me querer deixar. “Fuma fuma fuma folha de bananeira / Fuma na boa só de brincadeira”. Logo a mim, que nem fumo!

domingo, 26 de setembro de 2021

CONCERTO: Bárbara Tinoco



CONCERTO: Bárbara Tinoco
Concertos Íntimos
Cine-Teatro de Estarreja
24 Set 2021 | sex | 21:30


“Eu acho que todas as pessoas mais velhas olham para mim a falar de amor e pensam, o que é que esta pita está para aqui a falar se não sabe nada disto, não é casada, não tem filhos, não percebe nada de amor, está para aqui… Mas esta é a minha experiência. É o que eu tenho para partilhar, pronto.” Foi com toda a naturalidade e descontração que Bárbara Tinoco subiu ao palco do Cine-Teatro de Estarreja para mostrar a sua música, espécie de exercício “utópico-romântico-deprimente” como a definiu um seguidor no Instagram, mas que sabe bem e mal não faz. A forte presença da cantora e a proximidade com o público fez ressurgir o registo especialmente intimista dos concertos nesta sala, predispondo para algo mais do que o fruir das canções, no caso concreto a enorme paixão pela composição que se adivinha por detrás de cada uma das suas letras e a grande conquista de enfrentar o público e de saber estar, quando, há meia dúzia de anos atrás, era apenas “a menina que escrevia canções no seu quarto e morria de vergonha de cantar para alguém”.

Com o suporte da viola de João Gaspar, Bárbara Tinoco começou por cantar “Estrelas” - “não desalinhes as estrelas / que tu mesmo alinhaste / que se lixe a tristeza / é minha eu que a ultrapasse” - dando o mote para um concerto onde muito se falaria de amor, das linhas sinuosas onde corre, dos seus enredos, da sua altivez, da sua arrogância e desdém, e onde se procurou, com a ajuda da plateia, descobrir o segredo de uma longa vida a dois. Seguiu-se “Outras Línguas”, “A Fugir de Ser”, “Diz-me o Que é Que Fizeste” e a muito aclamada “Sei Lá”, segundo tema a solo da cantora saído em finais de Dezembro de 2019 e talvez o seu maior êxito até hoje, a par de “Antes Dela Dizer Que Sim” (que viria a encerrar o concerto, já num muito reclamado “encore”). “Loira” foi a canção seguinte e integra o EP lançado em Abril em conjunto com “pessoas pequeninas a quem dei uma oportunidade, por exemplo, António Zambujo, Carolina Deslandes, Carlão, pessoas que começaram agora e em que eu fui uma visionária em chamá-las para este projecto”, Bárbara Tinoco a ironizar e a arrancar palmas e sorrisos ao público.

A versatilidade da cantora mostrou-se na canção seguinte, “Devia Ir”, um tributo ao “hip-hop” que denuncia as suas origens, nascida no Cacém, “que está para Lisboa como Valongo está para o Porto”, fez questão de esclarecer. “Advogado” - “Não me olhes assim / Que eu não penso dar-te / O meu advogado / Podia processar-te” - e “O Teu Namorado” voltaram à velha questão das cumplicidades no amor, imediatamente antes dessa melancólica e ternurenta “Cartas de Guerra”, os avós de Bárbara Tinoco, Maria e João, e a sua bela história de amor de cinquenta anos de casados passada em revista: “Durante a Guerra os meus avós trocavam cartas de amor e mandavam fotografias. A minha avó com o cabelo arranjado, unhas pintadas, bonitinha, maquilhada e o meu avô enviava-lhe fotos em tronco nu”, diz numa enorme gargalhada. “Salada com Molho Cor de Rosa” serviu para desvendar o segredo dos títulos das canções, antes ainda de “Cidade” e “Tragédia” - “tragédia é jantar salada (…) usar tampões (…) amor sem gemidos (…) sentir coisas más mas dizer que não” - colocarem um ponto final no alinhamento. Noite boa, divertida, descomprometida, livre, “alimentada” por uma jovem cantora que, mostrou-o bem, tem um belo futuro à sua frente.

sábado, 8 de maio de 2021

CONCERTO: Márcia



CONCERTO: Márcia
Concertos Íntimos
Cine-Teatro de Estarreja
07 Mai 2021 | sex | 21:00


“Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada
Dá-me o quarto vazio da minha casa
Vou deixar-te no fio da tua fala
Sobre a pele que há em mim
Tu não sabes nada”

Pela sensibilidade, quase ternura, com que trata os seus poemas, pela forma subtil de os devolver envoltos em músicas que nos tocam e nos preenchem, um concerto de Márcia é sempre um acontecimento especial. A ele nos oferecemos na certeza de momentos únicos, que nos invadem e tomam conta de nós, que nos fazem companhia na nossa “lojinha” das memórias boas e que fazemos questão de guardar como um bem precioso. Todavia, o concerto da noite de ontem, no Cine-Teatro de Estarreja, foi mais especial ainda, o regresso ao palco com o “sabor” do público a quebrar um doloroso confinamento que nos vai afastando uns dos outros, tornando-nos menos solidários, mais intolerantes e insensíveis. Mais tristes, também, a mensagem de que “a cultura é segura” obrigada a atravessar um caminho com cada vez mais escolhos, a confrontar-se com mais preconceitos e reservas, com mais medos, também.

Foi, pois, do palco para a plateia, que brotou, em catorze temas, a força da música de Márcia, devidamente secundada por Zé Kico Moreira na bateria, David Santos no baixo e Filipe Cunha Monteiro e Manuel Dórdio nas guitarras. Datado de 2018, “Vai e Vem”, o último trabalho de estúdio da cantora, chamou a si a “parte de leão” do concerto, do qual extraiu cinco belíssimas canções, nomeadamente esse verdadeiro “hit” que é “Tempestade”, mas também a sensível e intimista “Amor Conforme”. Os restantes temas pertenceram aos álbuns “Dá” (2010), “Casulo” (2013) e “Quarto Crescente” (2015) e ainda ao EP “Márcia” (2009). A este último foi buscar o incontornável “A Pele Que Há em Mim”, logo a abrir o concerto (lembramo-nos de ti, J.P. Simões). Dos restantes vieram “Menina”, “Lado Oposto” e esse incrível “A Insatisfação”, entre outros. Zeca Afonso não poderia faltar, dele se escutando “A Presença das Formigas”, assim como Ana Moura, de quem Marcia cantou, a capella, “Até ao Verão”, naquele que foi o mais belo e arrepiante momento da noite.

Generalidades à parte, aquilo que verdadeiramente faz de Márcia uma autora única tem sobretudo a ver com a sua poesia. Ora sóbria, introspectiva, contida, murmurante, ora telúrica e efusiva, sempre visceral, ela é manta de retalhos que, “se demora, não é por desmazelo”, aprende a “levar o seu azar a sério”, “semeia sol, colhe a tempestade”, “promete-se a si mesma mais de céu azul” e sabe que “vai chegar o dia em que o medo não faz parte”. Cada poema é página de um diário íntimo, liberto na sua nudez, aberto a todos e a si próprio em busca da “pele que há em mim”. Laborioso, minucioso, oficina de formiguinha a clamar liberdade. “E assim, ouvi, pela noite fora a Márcia cantar; e o que não vi só tive de imaginar”. Fechar os olhos, imaginar. Sonhar com um céu sem nuvens. Sentir o aroma das giestas no verão. “Entender a chuva que acontece”. Escutar o bater do coração. E ser feliz. Obrigado, Márcia.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

CONCERTO: Maria | Carminho



CONCERTO: Carminho | “Maria”
Cine Teatro de Estarreja
18 Jan 2020 | sab | 21:30


Maria é nome de gente e é nome de disco. É por aqui que gostaria de começar, por esse que é o último trabalho de Carminho, editado em Novembro de 2018 e que, por essa altura, acrescentei à minha colecção. Ao longo do ano que findou, “Maria” foi presença assídua nos pontos de escuta habituais: o leitor de audio lá de casa ou o do carro. Ouvi-o vezes sem conta e aprendi a amá-lo como a nenhum outro antes dele, sorvendo a beleza dos seus poemas na voz cada vez mais pura de Carminho, aquele ondear sedutor no colo da guitarra, a cumplicidade única com Luís Guerreiro a revelar-se por inteiro. Quando passava uma música na rádio, cantava-a em voz alta, na esperança que mais e mais gente a pudesse ouvir. Faltava escutar “Maria” ao vivo. Em boa hora o CTE elegeu a fadista para abrir a mais nova série de “Concertos Íntimos”, inscrevendo-se como o segundo dos catorze palcos que, até Abril, a recebem em digressão nacional. O meu ingresso ajudou a esgotar a sala em três tempos. As expectativas não podiam ser mais elevadas. O espectáculo podia começar.

“Principio a cantar para quem tenha / Fome de ouvir a música do vento... / Porém, sabeis que fiz, da mágoa, lenha / E que das suas brasas me sustento?”. É sempre uma emoção incrível, difícil de explicar, o arranque de um concerto de Carminho (ainda hoje vivo amarrado ao “baque” de a ouvir a cantar sem qualquer suporte instrumental, no começo do memorável “Alma”, no Centro de Artes de Ovar). Com este “O Começo” (Fado Bizarro), letra de Pedro Homem de Mello e música de Acácio Gomes, assim foi uma vez mais. Depois o foco dilui-se, já conseguimos abarcar o palco por inteiro e perceber em Luís Guerreiro, Flávio César Cardoso, Pedro Geraldes e Tiago Maia um suporte de eleição, sólido pulmão que sustenta a respiração da cantora. Mas enquanto aquele primeiro momento vive, o que se vive é único, os sentidos concentrados num ponto apenas, nesse inesgotável gerador de energia e de emoções que é o coração de Carminho.

Nunca Carminho terá sido tão verdadeira em palco. Desde logo porque, na letra ou na música (ou em ambas), encontramos o seu “sangue, suor e lágrimas”, a sua assinatura. Escuta-se “A Mulher Vento” em êxtase, tal como se escuta “Estrela” ou esse texto sublime que é “Poeta”, o talento da Carminho-escritora-de-poemas a aproximar-nos aqui do grande António Aleixo. O mesmo poderia dizer de “Desengano” ou “Se Vieres”, os seus poemas sobre a música do Fado Latino, de Jaime Santos, e do Fado Santa Luzia, de Armando Machado, respectivamente. Ou de “O Menino e a Cidade” e “As Rosas”, ambos os temas com letra e música de Joana Espadinha mas transcendentes na voz de Carminho. Depois há todo um conjunto de detalhes que aproximam cantora e público, uma espécie de intimidade que se percebe no gesto de acariciar o pequenino ser que cresce na sua (já respeitável) barriguinha, na forma como lembra que “Maria é um bocadinho de nós”, como sussurra a uma criança para lhe dizer que sim ou como pede para cantar “bom dia, amor”. Intimista, especial e absolutamente único, assim foi o concerto desta que é, do fado, a sua melhor voz, a sua maior alma.

[Foto: Ángel Medina G. / EPA | observador.pt]

domingo, 24 de março de 2019

CONCERTO: Raquel Tavares



CONCERTO: Raquel Tavares
Cine-Teatro de Estarreja
23 Mar 2019 | sab | 21:30


“ - Avó, eu vou dedicar este concerto ao avô.
- Minha filha, ele vai estar lá na fila da frente a gritar 'Ah, fadista!' ”


Não é comum que um concerto possa conter um momento de intimidade tão sincero e emotivo, tão intenso, a dor partilhada com o público, as palavras vivas dum longo desabafo a cederem lugar às lágrimas grossas da saudade por alguém que partiu. Mas foi precisamente isso que aconteceu na noite de ontem, no Cine-Teatro de Estarreja, já Raquel Tavares conduzira metade do concerto entre fados e modas, palmas a compasso, muitos aplausos e os habituais “fadista” ou “és linda”. Caladas as guitarras, eis que o coração se abre - “vocês fazem parte da minha vida, eu não existia se vocês não existissem e é convosco que eu quero desabafar”. São ternas as memórias do avô Luis partilhadas com um público suspenso da emoção na voz de Raquel Tavares, o “cheirinho de avô”, a família toda reunida ao domingo, os pequenos-almoços de sumo de melancia e pão na chapa com ovo, o pratinho de arroz, feijão e farofa depois de mais uma noite de samba no Salgueiro, a forma maravilhosa como ele cantava “Nem Às Paredes Confesso”... Um avô Luis que partiu aos 80 anos, a fadista a dar lugar à dor e a cantá-la, tornando este “concerto íntimo” quiçá no mais íntimo de todos quantos o palco do CTE recebeu até hoje.

Na sua estreia nesta sala, Raquel Tavares abriu o concerto com dois “clássicos” - “Eu Já Não Sei” e “Sombras da Madrugada” -, para se focar de seguida em dois temas mais “leves”, com assinatura de Tiago Bettencourt e António Zambujo, respectivamente “Gostar de Quem Gosta de Nós” e “Não Me Esperes de Volta”. Seguiu-se “Limão”, o primeiro grande momento do concerto, o público chamado a participar, o entusiasmo a tomar conta da sala e a ir ao rubro quando Raquel Tavares, empunhando as baquetas, “arma” um solo de bateria com tanto de intenso como de inesperado. Ainda antes do instrumental que deixou o palco por conta de André Dias na guitarra portuguesa, Bernardo Viana na viola de fado, Daniel Pinto na viola baixo e Fred Pinto Ferreira na bateria, a fadista, com a propriedade que lhe assiste para falar de fado, homenageou os fadistas antigos e interpretou “Meu Corpo”, com música de Fernando Tordo e letra de José Carlos Ary dos Santos, dedicando-o este fado a Beatriz da Conceição.

Veio então o episódio narrado dois parágrafos acima, veio um tema de Rui Veloso, “Regras da Sensatez”, e veio o abraço do público, cantando em uníssono “Amar Pelos Dois”, dos manos Sobral. Veio ainda a confissão de Raquel Tavares: “Eu precisava disto hoje!” Mas era preciso animar o ambiente, porque a vida segue, e... fomos ao baile. Popularizado por Amália Rodrigues, “Fui ao Baile” recuperou a boa disposição, dois espectadores – o senhor João e o senhor Luís - a “degladiarem-se” na plateia pelas boas graças da fadista. “Emoções”, tema maior do “Rei” Roberto Carlos, foi cantado em português do Brasil, em homenagem ao avô Luis, numa altura em que o concerto caminhava para o final. “Foi Deus” de Alberto Janes e “O Ardinita” de Linhares Barbosa precederam o momento mais aguardado da noite, “Meu Amor de Longe”, dedicado a uma jovem fã, sentada na fila da frente, de seu nome... Raquel. No encore, tempo ainda para escutar “Rapaz da Camisola Verde”, onde se misturaram toques de samba, de bossa nova e mesmo de música pop, “o mundo nos chama loucos”, Matias Damásio a entrar inadvertidamente em cena. Por último, na música do “Fado Bailado” de Alfredo Marceneiro, com versos de Amália Rodrigues, “Estranha Forma de Vida” foi o ponto final perfeito numa noite memorável. Pois que venham mais Concertos Íntimos!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

CONCERTO: Sara Tavares



CONCERTO: Sara Tavares
“Concertos Íntimos”
Cine-Teatro de Estarreja
19 Jan 2019 | Sab | 21:30


Foi uma casa cheia aquela que deu as boas vindas a Sara Tavares no primeiro “Concerto Íntimo” deste novo ano no Cine-Teatro de Estarreja. Ao carinho do público, respondeu a cantora e compositora portuguesa de ascendência cabo-verdiana com a sua magnífica voz e com uma postura cativante, mantendo um diálogo constante com os presentes, partilhando com eles histórias e memórias e convidando-os a “mexer o esqueleto” ao som da sua música. Quebrado o “friozinho” inicial, o público foi-se soltando, batendo palmas, afinando a voz e ensaiando refrões, chegando ao final do concerto de alma cheia, de pé e a dançar, numa demonstração clara de completa adesão às propostas da cantora.

Quinto álbum de Sara Tavares, “Fitxadu” (“fechado”, em crioulo cabo-verdiano) foi a verdadeira “espinha dorsal” dum alinhamento que incluiu quinze temas (um dos quais interpretado na única vez que a cantora regressou ao palco) e se saldou por cem minutos de harmonia, alegria e ritmo. Cavalgando uma “Onda de Som”, “So Sabi” deu o mote, a cantora a explicar que as duas palavras, em crioulo, representam “um estado de espírito” e significam “estar livre, relaxado, num estado de alma de bem consigo mesmo, de aceitação”. E foi assim nesta música, como nos intimistas “Para Sempre Amor” - com letra e música de Bilan – e “Ter Peito e Espaço”. Seguiu-se o lindíssimo “Brincar de Casamento”, um poema doce e delicado - “Podemos aproveitar / Podemos então largar / Essa manha, esse vai não vem / Que nos demora / Quero buscar dentro de ti todo um incêndio” -, a mente a libertar-se das agruras do mundo e a mergulhar num mar de calma e de felicidade.

Depois de “Ginga”, uma morna longa e apaixonada, Sara Tavares deixou por momentos o álbum “Fitxadu”, recuando a 2005 e a um dos seus maiores êxitos, “Balancê” (tema que dá nome ao seu segundo álbum de estúdio), aproveitando a deixa para descobrir uma Maria José entre a assistência. Ao álbum “Xinti” (2009), foi a cantora buscar “Ponto de Luz”, outro dos seus temas mais queridos, assim como “Problema de Expressão”, “roubado” a Carlos Tê e aos Clã, um tema que abre o álbum “Voz e Guitarra 2”, de 2013. “Coisas Bunitas” marcou o regresso a “Fitxadu”, seguido de “Bué (Você é...)”, de “Flutuar” - “Quando Deus bate palmas, a gente dança / Quando Deus bate palmas, o mundo balança” -, ainda do popularíssimo “Bom Feeling” e do tema que dá nome ao álbum, a marcar um final batido, vivido e sentido. Prestes a completar 41 anos, Sara Tavares demonstra uma forma invejável, mais solta em palco, sempre positiva, a mexer e a fazer mexer. Junta isso á sua lindíssima voz, o que faz de cada concerto um momento de alegria e de compromisso com a música. Um momento feliz!