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sábado, 8 de maio de 2021

CONCERTO: Márcia



CONCERTO: Márcia
Concertos Íntimos
Cine-Teatro de Estarreja
07 Mai 2021 | sex | 21:00


“Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada
Dá-me o quarto vazio da minha casa
Vou deixar-te no fio da tua fala
Sobre a pele que há em mim
Tu não sabes nada”

Pela sensibilidade, quase ternura, com que trata os seus poemas, pela forma subtil de os devolver envoltos em músicas que nos tocam e nos preenchem, um concerto de Márcia é sempre um acontecimento especial. A ele nos oferecemos na certeza de momentos únicos, que nos invadem e tomam conta de nós, que nos fazem companhia na nossa “lojinha” das memórias boas e que fazemos questão de guardar como um bem precioso. Todavia, o concerto da noite de ontem, no Cine-Teatro de Estarreja, foi mais especial ainda, o regresso ao palco com o “sabor” do público a quebrar um doloroso confinamento que nos vai afastando uns dos outros, tornando-nos menos solidários, mais intolerantes e insensíveis. Mais tristes, também, a mensagem de que “a cultura é segura” obrigada a atravessar um caminho com cada vez mais escolhos, a confrontar-se com mais preconceitos e reservas, com mais medos, também.

Foi, pois, do palco para a plateia, que brotou, em catorze temas, a força da música de Márcia, devidamente secundada por Zé Kico Moreira na bateria, David Santos no baixo e Filipe Cunha Monteiro e Manuel Dórdio nas guitarras. Datado de 2018, “Vai e Vem”, o último trabalho de estúdio da cantora, chamou a si a “parte de leão” do concerto, do qual extraiu cinco belíssimas canções, nomeadamente esse verdadeiro “hit” que é “Tempestade”, mas também a sensível e intimista “Amor Conforme”. Os restantes temas pertenceram aos álbuns “Dá” (2010), “Casulo” (2013) e “Quarto Crescente” (2015) e ainda ao EP “Márcia” (2009). A este último foi buscar o incontornável “A Pele Que Há em Mim”, logo a abrir o concerto (lembramo-nos de ti, J.P. Simões). Dos restantes vieram “Menina”, “Lado Oposto” e esse incrível “A Insatisfação”, entre outros. Zeca Afonso não poderia faltar, dele se escutando “A Presença das Formigas”, assim como Ana Moura, de quem Marcia cantou, a capella, “Até ao Verão”, naquele que foi o mais belo e arrepiante momento da noite.

Generalidades à parte, aquilo que verdadeiramente faz de Márcia uma autora única tem sobretudo a ver com a sua poesia. Ora sóbria, introspectiva, contida, murmurante, ora telúrica e efusiva, sempre visceral, ela é manta de retalhos que, “se demora, não é por desmazelo”, aprende a “levar o seu azar a sério”, “semeia sol, colhe a tempestade”, “promete-se a si mesma mais de céu azul” e sabe que “vai chegar o dia em que o medo não faz parte”. Cada poema é página de um diário íntimo, liberto na sua nudez, aberto a todos e a si próprio em busca da “pele que há em mim”. Laborioso, minucioso, oficina de formiguinha a clamar liberdade. “E assim, ouvi, pela noite fora a Márcia cantar; e o que não vi só tive de imaginar”. Fechar os olhos, imaginar. Sonhar com um céu sem nuvens. Sentir o aroma das giestas no verão. “Entender a chuva que acontece”. Escutar o bater do coração. E ser feliz. Obrigado, Márcia.

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