CONCERTO: Raquel Tavares
Cine-Teatro de Estarreja
23 Mar 2019 | sab | 21:30
“ - Avó, eu vou dedicar este
concerto ao avô.
- Minha filha, ele vai estar lá na
fila da frente a gritar 'Ah, fadista!' ”
Não é comum que um concerto possa conter um momento de intimidade tão sincero e emotivo, tão
intenso, a dor partilhada com o público, as palavras vivas dum longo
desabafo a cederem lugar às lágrimas grossas da saudade por alguém
que partiu. Mas foi precisamente isso que aconteceu na noite de
ontem, no Cine-Teatro de Estarreja, já Raquel Tavares conduzira
metade do concerto entre fados e modas, palmas a compasso,
muitos aplausos e os habituais “fadista” ou “és linda”.
Caladas as guitarras, eis que o coração se abre - “vocês fazem parte da minha vida, eu não existia se
vocês não existissem e é convosco que eu quero desabafar”. São
ternas as memórias do avô Luis partilhadas com um público suspenso da emoção na voz de Raquel Tavares, o “cheirinho de avô”, a
família toda reunida ao domingo, os pequenos-almoços de sumo de
melancia e pão na chapa com ovo, o pratinho de arroz, feijão e farofa depois de mais uma noite de samba no Salgueiro, a forma maravilhosa como ele
cantava “Nem Às Paredes Confesso”... Um avô Luis que partiu aos
80 anos, a fadista a dar lugar à dor e a cantá-la, tornando este
“concerto íntimo” quiçá no mais íntimo de todos quantos o palco do
CTE recebeu até hoje.
Na sua estreia nesta sala, Raquel
Tavares abriu o concerto com dois “clássicos” - “Eu Já Não
Sei” e “Sombras da Madrugada” -, para se focar de seguida em
dois temas mais “leves”, com assinatura de Tiago Bettencourt e António
Zambujo, respectivamente “Gostar de Quem Gosta de Nós” e “Não
Me Esperes de Volta”. Seguiu-se “Limão”, o primeiro grande
momento do concerto, o público chamado a participar, o entusiasmo a
tomar conta da sala e a ir ao rubro quando Raquel Tavares, empunhando
as baquetas, “arma” um solo de bateria com tanto de intenso como
de inesperado. Ainda antes do instrumental que deixou o palco por
conta de André Dias na guitarra portuguesa, Bernardo Viana na viola
de fado, Daniel Pinto na viola baixo e Fred Pinto Ferreira na
bateria, a fadista, com a propriedade que lhe assiste para falar de
fado, homenageou os fadistas antigos e interpretou “Meu Corpo”,
com música de Fernando Tordo e letra de José Carlos Ary dos Santos,
dedicando-o este fado a Beatriz da Conceição.
Veio então o episódio narrado dois
parágrafos acima, veio um tema de Rui Veloso, “Regras da Sensatez”, e veio o abraço do público, cantando em uníssono “Amar Pelos
Dois”, dos manos Sobral. Veio ainda a confissão
de Raquel Tavares: “Eu precisava disto hoje!” Mas era preciso
animar o ambiente, porque a vida segue, e... fomos ao baile.
Popularizado por Amália Rodrigues, “Fui ao Baile” recuperou a
boa disposição, dois espectadores – o senhor João e o senhor
Luís - a “degladiarem-se” na plateia pelas boas graças da
fadista. “Emoções”, tema maior do “Rei” Roberto Carlos, foi
cantado em português do Brasil, em homenagem ao avô Luis, numa
altura em que o concerto caminhava para o final. “Foi Deus”
de Alberto Janes e “O Ardinita” de Linhares Barbosa precederam o
momento mais aguardado da noite, “Meu Amor de Longe”, dedicado a
uma jovem fã, sentada na fila da frente, de seu nome... Raquel. No
encore, tempo ainda para escutar “Rapaz da Camisola Verde”, onde
se misturaram toques de samba, de bossa nova e mesmo de música pop,
“o mundo nos chama loucos”, Matias Damásio a entrar
inadvertidamente em cena. Por último, na música do “Fado Bailado”
de Alfredo Marceneiro, com versos de Amália Rodrigues, “Estranha
Forma de Vida” foi o ponto final perfeito numa noite memorável.
Pois que venham mais Concertos Íntimos!
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