LIVRO: “Homens de Pó”,
de António Tavares
Edição | Maria do Rosário
Pedreira
Ed. Publicações D. Quixote,
Janeiro de 2019
“Que castigo é este?
Insistia comigo uma mulher negra com
duas crianças pela mão e exibindo um aspecto muito sujo.
Que castigo é, senhor?”
Portugal, 1975. O Império cai com
estrondo. De Angola, a ponte aérea “descarrega” três milhares
de pessoas por dia numa Lisboa manifestamente impreparada para o
êxodo africano. O próprio País está a ferro e fogo e a prenunciar
uma guerra civil. É difícil levar tudo a sério, como a visita da
astronauta russa Valentina Terechkova a Grândola, os constantes
anúncios de roubos de armas e a fuga, em bando, de quase uma centena
de pides da cadeia de Alcoentre. Nas ruas, os ardinas gritam: “A
Merda! Olha A Merda! Compre A Merda!” Nas filas para trocar
dinheiro, pessoas arrastam malas cheias de notas sem valor, tesouros
perdidos, trabalhos de uma vida reduzidos a lixo. É neste ambiente
de caos político e social que iremos acompanhar, no meio do pó
levantado pelos arranjos de ligação de um troço de auto-estrada
perto do Porto, o quotidiano de um africano fugido à guerra.
“Homens de Pó” surpreende-nos com
um retrato vivo dum momento muito particular da nossa História
recente. Narrado na primeira pessoa, o livro leva-nos nessa viagem
entre dois infernos, de súbito caídos em “Estaleigrado”, lado a
lado com o Bombazine, o Homem-Ciência, o Bruce Lee, o Pivô ou o
FBP, vivendo um dia-a-dia feito de comissões, pró-comissões,
proto-comissões e ligas várias, o discurso preenchendo tudo, o
espírito sempre atento às “manobras sediciosas dos divisionistas”. E
enquanto a auto-estrada avança, avança o País aos solavancos, o pó
teimando em não assentar, golpes e contra-golpes revolucionários a
marcarem um Verão particularmente quente.
Simples e extraordinariamente
apelativa, a escrita de António Tavares abraça o leitor da primeira
à última página. À descrição dos factos com notável rigor
histórico, acrescenta o autor um toque de humor subtil, vincando as
contrariedades de um país que tardava em desbravar o seu próprio
caminho, dividido entre a euforia revolucionária e o peso de oito
séculos de passividade. Fá-lo com a força de quem lança mão das
próprias memórias e recorda uma deriva dolorosa, mas que nunca
abandonou o sonho de lutar por um futuro melhor. Simultaneamente
cáustico e terno, duro e quase pueril, “Homens do Pó” é um
livro que nos faz navegar no curso da história e, sem julgamentos ou
moralismos, nos convida a olhar o passado nos olhos e a
compreender as nossas próprias contradições.
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