É dividido que abandono a sala. É sempre assim depois de um concerto de Salvador Sobral, à excepção de uma noite mágica no Aveirense, Sobral a cantar Brel, precioso momento poético e musical que viria a encabeçar a minha lista do melhor de 2020. Naquela que foi a penúltima noite do Ovar em Jazz 2022, voltei a ficar “como o tolo no meio da ponte”, com coisas que gostei muito e outras que nem por isso. Embora alguma crítica se refira a “bpm”, o mais recente trabalho discográfico de Sobral e espinha dorsal do concerto, como “perfeito para amantes de jazz”, só a espaços se escutou jazz. Isso mesmo admitiu o artista, sozinho em frente ao piano, já no “encore”, antes de interpretar “Tristeza dos Dois”, um tema de Bernardo Sasseti com letra de Luísa Sobral. Por outro lado, continuamos a ser confrontados com a “imagem de marca” de Sobral, os seus interlúdios humorísticos algo descontrolados. Mas depois há a voz, a energia, a alegria, e há também esse hino que é “Amar pelos Dois”. Sinto-me dividido - lá está! - e acabo por quebrar, por reconhecer que o balanço é positivo.
Se “bpm” parece remeter para o bater de corações e para o milagre da vida, deixando adivinhar uma viagem ao interior de Salvador Sobral, “Mar de Memórias”, o tema que abriu o concerto, dissipou todas as dúvidas. Escutamos as palavras - “guardo cá dentro / um mar de memórias / histórias esquecidas / glórias perdidas / vidas cruzadas / com mortes fingidas / lágrimas secas / que brotam as minhas” - e temos a certeza de estarmos perante algo que vai muito além da própria música. Mas é pela música que estamos ali e o piano de Abe Rábade vem lembrar-nos que, em palco, não há só Salvador Sobral e a sua voz. O prelúdio a “Fui Ver Meu Amor” é um daqueles preciosos pedacinhos intimistas, carregados de beleza, que nos fazem sonhar. Seguem-se as palavras, igualmente intensas e emotivas: “Ai o meu amor / já viu a dor de perto / sente sem pensar / e ama com tudo / o que tem para amar”. Novo prelúdio, desta vez na guitarra de André Santos, e logo de seguida o ritmo e os blues a marcarem presença em “Se de Mim Precisarem”.
Primeiro grande momento da noite, “Ay, amor” trouxe-nos esse magnífico bolero composto pelo cubano Ignacio Jacinto Villa Fernández, mais conhecido por Bola de Neve, com o artista a deixar o palco e a vir cantar para junto do público. Saltitando entre os trabalhos mais antigos e este seu novo disco, o cantor foi-nos oferecendo alguns outros momentos verdadeiramente intensos, sobretudo “Sonhos”, o grande êxito do musico paulista Peninha, que Sobral cantou acompanhado apenas pela guitarra de André Santos. De resto, importa salientar a qualidade dos músicos que acompanharam Sobral, dos já referidos Rábade e André Santos, ao contrabaixista André Rosinha e ao baterista Bruno Pedroso. “Medo de Estimação” - mais um pedacinho precioso da vida de Sobral e da sua inspiração compositiva - fechou o alinhamento e, depois de três peças a solo, já no encore, o concerto viria a terminar com “Bom Vento”, a faixa que encerra “bpm” e que pôs toda a gente a cantar na plateia. Goste-se ou não da música de Salvador Sobral, não creio que alguém tivesse dado o tempo por mal empregue.
[Foto: Ovar / Cultura | facebook.com/ovarcultura/]
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