LIVRO: “O Homem Duplicado”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, Outubro de 2002
“Quê, esse horrendo bentónico que vive em fundos arenosos e lodosos, e acrescentará, definitivo, Nem pensar. A responsabilidade desta fastidiosa digressão piscívora e linguística tem-na toda Tertuliano Máximo Afonso por tardar tanto a meter Um Homem como Qualquer Outro no leitor de cassetes, como se estivesse estacado no sopé de uma montanha a deitar contas às forças de que vai precisar para lá chegar acima. Tal como parece que da natureza se diz, também a narrativa tem horror ao vazio, por isso, não tendo Tertulianno Máximo Afonso, neste intervalo, feito alguma coisa que valesse a pena relatar, não tivemos outro remédio que improvisar um chumaço de recheio que mais ou menos acomodasse o tempo à situação. Agora que ele se resolveu a tirar a cassete da caixa e a introduziu no leitor, poderemos descansar.”
Quanto mais leio José Saramago e mais fundo mergulho no seu universo literário, mais fascinado fico com a descoberta da enorme riqueza que se abriga na sua escrita, enquanto extensão do próprio pensamento. Particularmente significativas são as obras mais recentes, publicadas após a atribuição do Prémio Nobel, em cujos assuntos são mais evidentes as reflexões sobre a vida e os seus mistérios, a natureza humana e a variedade dos seus caracteres, o ofício da escrita e as mil e uma maneiras de torcer as palavras. Não raro, o romance assume a forma de ensaio (ou será o contrário?) e o leitor vê-se confrontado com os seus próprios sonhos e desejos, com os seus defeitos e limites, como se fosse, ele próprio, parte de uma história cuja abrangência se estende muito para lá das páginas de um livro. É assim que o descobrimos em “As Intermitências da Morte” ou em “Ensaio Sobre a Lucidez”, em “A Caverna” ou neste “O Homem Duplicado”.
O “Homem Duplicado” é “apenas” mais uma reflexão atenta e detalhada sobre o Homem e a sua natureza. Numa grande cidade, com cinco milhões de habitantes, vivem dois homens. Um é professor, o outro é actor. Um é casado, o outro divorciado. O carro, o apartamento, as rotinas e os gostos de um são assim; os do outro são assado. Há, porém, algo que os aproxima de forma inelutável: a extraordinária semelhança entre ambos, que abrange não só a fisionomia, como o próprio timbre da voz, as marcas pessoais (tanto as genéticas como as adquiridas), a própria data de nascimento. Afinal, qual deles será o “original”? E qual deles é o “duplicado”? A curiosidade de um passa a ser a de ambos a partir do momento em que se dão a conhecer. Sem o perceberem, estão a entrar por caminhos que os afastam dos seus propósitos mais inocentes e os mergulham no pior que a natureza humana tem para oferecer. Enquanto isso, o “senso comum” vai fazendo algumas esporádicas aparições, mas os seus conselhos são frequentemente desconsiderados.
Surpreendentemente enérgico, audaciosamente vivo e livre, “O Homem Duplicado” volta a revelar-se um divertimento para o leitor e, adivinha-se claramente, para o escritor também. É ele que, na figura de um narrador omnipresente, ostensivamente intrusivo, se faz voz da sua própria consciência, interrogando-se (e interrogando-nos) sobre as ironias do destino. Sem nunca o interromper, José Saramago provoca sucessivas “suspensões” no fio narrativo para nos desinquietar, nos interpelar e nos pôr a pensar acerca de nós próprios e do nosso papel no mundo. Citando o Livro dos Contrários, José Saramago lembra que “o caos é uma ordem por decifrar”. Aceitá-lo como um dogma e lançarmo-nos na busca dos seus hipotéticos pressupostos é matéria que parece não se coadunar com o supersónico ritmo de vida que levamos. Importa abrandar, reflectir, mudar. É por isso que ler Saramago nos faz tão bem. Mais cedo ou mais tarde, acabaremos por perceber que não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós.
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