Páginas

terça-feira, 26 de abril de 2022

CONCERTO: "Ascética"



CONCERTO: “Ascética”
Hugo Carvalhais Feat. Liudas Mockūnas
Ovar em Jazz 2022
Centro de Arte de Ovar
24 Abr 2022 | dom | 18:30


Só em contextos muito específicos nos atreveríamos a comparar maçãs com azulejos ou colchões com martelos pneumáticos. Talvez o mesmo se possa dizer deste “Ascética”, se quisermos atribuir-lhe um degrau na escala de valores do Ovar em Jazz 2022. É que a proposta musical que Hugo Carvalhais nos trouxe não é comparável com nada que tivéssemos escutado na edição deste ano do certame (nem deste ano nem de anos anteriores, em Ovar ou onde quer que pudesse ter sido). Refratário a rótulos, alinhado com a complexidade e as contradições que assistem à própria definição do que é ou não o jazz, “Ascética” é uma entidade única, paradoxal, com tanto de pacífico como de tempestuoso, de equilibrado como de temperamental. Com tanto de ordem como de caos. É um objecto essencialmente orgânico, que se regenera a partir do próprio núcleo, fonte irrefriável de energia, intransigentemente visceral, deliberadamente solto e livre.

Não poderíamos querer mais do concerto que, ao final da tarde do passado domingo, encerrou a quarta edição do Ovar em Jazz. De uma exigência e complexidade incomuns, as peças tocadas pediram o máximo de músicos e público, cúmplices numa experiência imersiva, ao mesmo tempo asfixiante e vivificadora. Na companhia do contrabaixista Hugo Carvalhais estiveram Fábio Almeida no saxofone alto e flauta, Gabriel Pinto no órgão e sintetizadores, Fernando Rodrigues no órgão e teclados, João Martins na bateria e Liudas Mockūnas no saxofone tenor. Mockūnas que foi uma das figuras em destaque no seio da formação, abordando os vários temas numa linha marcadamente experimental, ao arrepio de quaisquer convenções estilísticas. Mérito, logicamente, de Hugo Carvalhais, que assina todas as composições (uma ou outra em parceria com Gabriel Pinto) e cria, em todas elas, espaço para os músicos poderem explanar a sua alegria, intuição e virtuosismo.

Mas escutemos os primeiros sons que vêm da bateria. Dispensam o ritmo. Estamos no 47º andar de um prédio em construção no coração de Manhattan, numa remota aldeia do Tibete ou onde cada um de nós quiser estar. Juntam-se os saxofones e, de seguida, os sintetizadores. Discretamente, o contrabaixo faz também a sua aparição. Somos tomados por uma estranheza há medida que vamos sendo invadidos pela música. Há portões que se fecham com estrondo, há rodas que chiam na ferrugem dos eixos, há chuva que fustiga um telhado de zinco. Cúmplices, os saxofones tomam conta da paisagem. Vão mostrando como, depois da desordem, tudo consegue reorganizar-se e regressar à calma. O orgão e os seus acordes harmoniosos abrem-nos as portas do céu. Afinal, há em tudo isto muito mais do que música. Há planetas que chocam e corações que batem descompassados. Há mares de lama que borbulham e borboletas que deixam ouvir um roçar de asas. Há silêncios a explodir à nossa volta. E há esse sentir que nos traz a certeza das coisas raras e boas, mas que não se explica, que não tem uma palavra que o defina. Talvez “ascética” seja essa palavra. 

[Foto: Ovar / Cultura | facebook.com/ovarcultura/]

Sem comentários:

Enviar um comentário