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domingo, 19 de setembro de 2021

CONCERTO: "Onde" | Paulo Praça



CONCERTO: “Onde” | Paulo Praça
Festival Literário de Ovar 2021
Centro de Arte de Ovar
12 Set 2021 | dom | 19:00


“(…) Corria o ano de 1975 e a revolução era ainda um bebé com poucos meses. Fernando, o meu irmão mais velho, tinha treze anos e, para além da sua beleza, levava sempre consigo a rebeldia de quem estava a começar uma das mais turbulentas viagens. Se por dentro já não havia limites, por fora esta desconhecida liberdade tornava possíveis todos os seus sonhos, toda a sua loucura. E fumar um cigarro na rua era apenas uma das suas pequenas conquistas (…).”

Foram em número pouco expressivo os resistentes de uma longa tarde à roda dos livros que se mostraram disponíveis para escutar Paulo Praça e “Onde”, o filme-concerto que colocou um ponto final na sétima edição do Festival Literário de Ovar. Quem porfiou, contudo, terá sentido aquela escassa hora como um momento extraordinariamente curto de tão precioso e sincero, o projecto abrindo-se em palavras e acordes ao público num gesto de amor e homenagem do autor à sua cidade-natal, Vila do Conde. Com Eurico Amorim nos teclados e programações, Andrés Malta no baixo e Pedro Martins na bateria, Paulo Praça deu voz a um conjunto de textos soltos, uma boa parte deles musicados, o todo complementado com um videodisco de Paulo Pinto. Indissociáveis no conjunto deste trabalho de fôlego, texto, música e imagem foram um convite a viajar pelos recantos da memória, ao encontro “do lugar onde o coração se esconde”.

“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! / Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: “vem por aqui”!”. O “Cântico Negro”, na voz de José Régio, uma gravação original da Orfeu datada de 1958, rasga o palco. Presos às palavras, reféns da beleza que delas emana, sentimos que o corpo fica mais leve, que levita ante as imagens que vão passando no ecrã, a partilha como catarse de um tempo colado à pele. Sem que a razão seja para aqui chamada, temos a certeza que “Onde” nasce e cresce num lugar preciso do qual não pode escapar. Um lugar único tornado referencial por todos quantos o fizeram e fazem, um lugar mitificado, glorificado, louvado em cânticos que se perdem na noite dos tempos, que fazem dele o santo e senha de corpos e almas. Nesta voragem, que tudo pede e tudo oferta, “Onde” inscreve uma marca indelével “entre pinhais, rio e mar” com a beleza das coisas simples.

Com contribuições de Jorge Cruz, Renato Maia, Simão Praça, Valter Hugo Mãe, Ruy Belo, Artur Cunha Araújo, José Coutinhas, José Cid, Fausto Bordalo Dias e o apoio e amizade de tantos outros, “Onde” é um objecto fascinante na forma como abraça um tempo outro. Recusando um revivalismo serôdio, Paulo Praça trata a sua cidade com paixão e enlevo, lembrando que “tem tudo, só não tem comparação”. A jogar à bola com os amigos da rua ou a andar à beira-mar, ouvindo o som das plainas que vem do estaleiro ou vendo o vento norte cortar luas brancas no azul do mar, Praça é cada um de nós, gente da beira-mar que partilha um legado comum que, no amor e na dor, a todos une. Se nesse cunho imaterial se encontra a chave para guardar “Onde” junto daquilo que mais amamos, não sei. Sei que amei tudo quanto vi e ouvi, como amo aquilo que vejo quando folheio o livro-disco com o mesmo nome, uma fotografia entre as mãos com as barracas de praia que podem ter sido as do meu Furadouro, as quatro crianças em cima do muro, uma das quais poderia ser eu.

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