CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #50
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 14 anos
16 Set 2021 | qui | 21:30
Todos os motivos são bons para celebrar o Cinema, mas a razão agiganta-se quando envolve números redondos que acarretam consigo a dimensão dos grandes feitos e são prova de persistência, resiliência, muito suor e, seguramente, algumas lágrimas também. Por estes e outros motivos, dobradas as cinquenta sessões, o Shortcutz Ovar e os seus promotores e dinamizadores estão de parabéns, desde logo por não baixarem os braços face à ameaça de uma crise sanitária à escala global que virou as nossas vidas do avesso, mas também pela forma como têm sabido “alimentar” um público cada vez mais apto a compreender e valorizar o cinema em versão curta. Embora longe da normalidade e da “experiência-Shortcutz” tal como a conhecemos antes da pandemia, os sinais são francamente positivos e a “reentré” após a pausa estival veio confirmar isso mesmo. O formato voltou à exibição de três obras por sessão, o público em maior número esgotou uma vez mais a sala e percebeu-se um maior calor e entusiasmo da parte de todos. Só mesmo a obrigatoriedade da máscara permanece, mas até isso irá cair em breve, assim o esperamos.
Obra de animação 3D de Catarina Romano, “Seja Como For” abriu a sessão para falar-nos de solidão. É um filme que parte de testemunhos reais, remetendo para a precariedade laboral em cenário pós-troika e lembrando as dificuldades de quem perdeu o emprego e se vê obrigado a contar os tostões e a fazer escolhas com vista à própria sobrevivência. Com um trabalho de animação cuidado e de enorme beleza, a realizadora toca o público com a sua visão sensível de uma mulher desempregada que se refugia nas suas memórias para vencer um tempo estagnado, quase sufocante. Os sons que reconhecemos do quotidiano remetem para uma vida outrora activa, em choque com o actual mundo interior, fazendo dela o arquétipo de todas as mulheres isoladas e excluídas numa sociedade profundamente desigual. “Por riba se ceifa o pão, por baixo fica o restolho”, a voz de Mariana Root nessa “Cantiga da Ceifa” imortalizada por Ti Chitas, a fechar o filme, é um grito de desafio e um incentivo a erguer a cabeça e a olhar nos olhos o futuro.
Olhar o futuro pode ser também entendido como mote para o segundo filme da noite. “La Tierra de L Passado”, com realização, argumento e montagem de Rui Falcão, dá-nos a ver uma terra encostada a uma esquina do nosso País e que tem na sua língua a sua maior riqueza. Falo de Miranda do Douro, no extremo nordeste de Portugal, um território envelhecido e votado ao isolamento, que trava uma luta desigual na tentativa de preservar esta que é, desde 1999, a segunda língua oficial portuguesa. Enquanto objecto artístico, “La Tierra de L Passado” assume-se como sendo uma ficção, mas o carácter documental toca o filme de forma indelével, contaminando-o no mau sentido. Não poucas passagens têm o sabor da reportagem, o que não será o melhor dos seus salvo-condutos. Há, todavia, esse lado emocional que adquire aqui um cunho de tributo, um gesto de amor que abraça língua e território como ser uno e indivisível que é, e neste aspecto o sentido de oportunidade do filme não poderia ser maior. Chamar a atenção para uma “espécie ameaçada” é um dever que cumpre a todos e esse será, porventura, o grande mérito de Rui Falcão e do seu “La Tierra de L Passado”.
Antes de abandonar a sala, o público teve a oportunidade de ver um dos mais extraordinários filmes que passaram até hoje pelo Shortcutz Ovar. Falo de “Noite Perpétua” de Pedro Peralta, ficção que convida o espectador a viajar até Castuera, na estremenha província de Badajoz, fazendo-o mergulhar numa Guerra Civil Espanhola quase a chegar ao fim mas cuja memória permanece bem viva no coração de muitos sob a forma de um profundo ressentimento. É lá que encontraremos uma mulher que, encurralada por dois guardas falangistas, se entrega num doloroso mas muito digno acto de despedida, na certeza de que não voltará a ver aqueles que lhe são queridos. Extraordinariamente sóbrio, o filme faz uma gestão rigorosa do tempo e do espaço, em planos-sequência de cortar a respiração. A fotografia de João Ribeiro é preciosa, acentuando a tensão e mergulhando o filme numa atmosfera de angústia e dor. Quando a mulher - a actriz Paz Couso, extraordinária de contenção e nobreza - sai para a noite, escutamos o ladrar dos cães a rasgar o silêncio e sentimos as gargantas apertarem-se. Inquietante e envolvente, de um realismo profundo e trágico, “Noite Perpétua” é um manifesto contra o apagamento da memória e uma simples mas muito bela homenagem àqueles que morreram pela liberdade e são hoje um verdadeiro farol nas nossas vidas.
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