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quarta-feira, 3 de abril de 2024

LIVRO: "A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos"



LIVRO: “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”,
de Marta Duque Vaz
Ilustração |  Danuta Wojciechowska
Ed. Paulinas Editora, Setembro de 2023


“ – A essência das palmas está na admiração.
– As pessoas batem palmas porque estão atentas.
– É muito importante receber palmas em vida.
– É muito bom sair de cena sob uma salva de palmas.”

Bater palmas. Creio que seria possível escrever um livro inteirinho a falar daquilo que é, mais do que um acto social, um gesto de comunicação por excelência. Batemos palmas (e atiramos beijinhos) desde a mais tenra idade, antes mesmo de sabermos falar, como primeiro passo de um processo de interacção intimamente ligado ao desenvolvimento social e cognitivo. A mãe a cantar “bate palminhas que a mamã dá sopinhas, quando o papá vier dará o que tu quiseres” é uma memória viva da minha infância, embora esteja em crer que a capacidade persuasiva da minha mãe para que eu comesse a sopa tivesse de ir muito além da cantilena. Capazes de exprimir as mais díspares emoções, as palmas são sinal de júbilo mas podem igualmente ser motivo de embaraço (quando a destempo, no intervalo entre dois andamentos de uma peça clássica, por exemplo). Espontaneamente ou “a pedido”, fazemo-nos ouvir através delas. Batemos palmas com força ou de forma discreta, com vivacidade ou desinteressadamente, como forma de agradecer ou de chamar a atenção. Batemos palma com palma, com apenas uma das palmas no tampo da mesa e até batemos palmas com os pés.

Pois é de palmas que “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos” trata, abrindo ao leitor uma nova área do conhecimento, a Aplausologia, e lembrando a importância desse “pequeno-grande gesto, capaz de produzir verdadeira magia”. Reeditado em Setembro do ano passado, o livro viu a luz do dia em Maio de 2015, com ilustrações de Alexandre Esgaio. A beleza e significado da sua mensagem fez com que conhecesse novos públicos por via do teatro, tendo sido levado à cena em 2016, no Rio de Janeiro. Há muito ansiada, a reedição surge agora pela mão da Paulinas Editora e com ilustrações de Danuta Wojciechowska, abrindo a mais leitores a história desta Senhora Clap, uma pessoa muito especial e que é uma sumidade a bater palmas. Com ela vemos “que a palma das mãos é um lugar especialíssimo, reservado a grandes sentimentos e emoções, exatamente como o coração”. Ou que não devemos ter receio de bater palmas mesmo quando somos os únicos a fazê-lo. Ou que as palmas fazem de nós pessoas mais transparentes, deixando ver claramente as cores da ternura e do amor. Ou…

Neste livro de Marta Duque Vaz, encontramos a beleza das coisas simples, ditas com o coração. Lemos que “as palmas que não se sentem perdem o som” e ficamos perplexos perante a verdade deste aparente paradoxo. Depois olhamos para as ilustrações, para aquela profusão de formas e de cores, e apetece-nos bater palmas. Porque “amar é bater palmas”. São apaixonantes os desenhos de Danuta Wojciechowska, na cor com que nos cativam como na luz que derramam sobre os sentimentos mais doces e delicados. Caules que se abrem num abraço, pétalas que são dedos, peixes que invadem os ares, crianças e flores fundidas numa profusão de sóis, trapezistas e cantores, actores e uma bailarina (mesmo que no interior de uma caixinha de música). A voz das palmas como o canto dos pássaros... É admirável a forma como a ilustradora soube interpretar o sentido do texto e, com os seus desenhos, enriquecê-lo, acrescentando-lhe novas camadas, visões inovadoras, leituras complementares. Um livro de histórias e memórias, afectuoso e terno, a valer uma enorme salva de palmas às duas, escritora e ilustradora, por tão bem saberem “desenhar” esta história.

sábado, 23 de setembro de 2023

TERTÚLIA LITERÁRIA: "Conversas às 5" | Marta Duque Vaz



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Marta Duque Vaz
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
21 Set 2023 | qui | 17:00 


Após a pausa estival, regressaram ao CRN as “Conversas às 5”, iniciativa que junta escritores e leitores com o objectivo de promover o livro e estimular a criação de hábitos de leitura. Convidada desta décima primeira edição das tertúlias, Marta Duque Vaz trouxe consigo um rico e variado mundo de histórias e memórias, onde afloram, em lugar de destaque, “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”, “O Lado Esquerdo” e “Os Anjos Não Morrem e Tu Morreste Duas Vezes”, três marcos primordiais no seu percurso de escritora. Pela primeira vez, as “Conversas às 5” saíram do Auditório Correia de Campos e instalaram-se no aconchegante espaço da “sala de estar” voltada a poente, com vista privilegiada sobre o grande lago Atlântico. Foi aí, perante uma interessante e interessada plateia, onde se contaram alguns utentes internados no Centro de Reabilitação do Norte, que Marta Duque Vaz nos falou da sua paixão pela leitura e do que isso pode ter significado em termos do apego à escrita, o “clic” a surgir na adolescência, num “mundo silencioso” marcado pela timidez, com esse momento inaugural entre a escritora e a folha em branco a revelar-se na forma de um poema.

“Nem tudo o que escrevemos vivemos, mas o escritor é também as suas vivências.” Ditas desta forma extraordinariamente franca, as palavras da escritora serviram de mote a uma conversa que, ao debruçar-se sobre o acto da criação, lança a mesma questão que tantos e tantos escritores continuamente se colocam: “Porque é que escrevo?”. Na tarde vazia dos seus catorze anos, em vez de ir dar um passeio até ao mar ou andar de baloiço, Marta enfrentou a solidão triste do seu quarto com uma folha em branco à frente. Não foi premeditado, simplesmente aconteceu. E assim nasceu uma escritora, alguém para quem escrever é respirar (como diria Clarice Lispector), nesse alinhar de palavras que podem ser entendidas como “escrivivências” (como diria Conceição Evaristo).

Depois de um primeiro livro de poemas intitulado “Aclive” e publicado aos 20 anos, Marta Duque Vaz entra em “apneia”, regressando mais de duas décadas depois com um livro infanto-juvenil chamado “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”, hoje incluído no Plano Nacional de Leitura. Recuperado da gaveta, de onde saía a espaços para ser lido aos sobrinhos, “ao José, ao António, à Maria, ao Francisco, ao Miguelinho”, este livro representou um ponto de viragem a todos os títulos marcante na vida da escritora, que trocou “um lugar financeiramente confortável”, pela imponderabilidade de algo situado na esfera dos sonhos. Devemos agradecer a Marta Duque Vaz o passo, o assumir o risco, já que o livro é lindíssimo - nas palavras como nas ilustrações - ao falar-nos de “aplausologia”, essa arte (e ciência) de bater palmas em todas as circunstâncias. Mas que nos fala também de “transparência”, qualidade que a tão poucos assiste nos nossos dias e que é imagem de marca da convidada, na partilha como na dádiva. Que nela se revela por inteiro, e não apenas sobre o lado esquerdo, como acontece com a Senhora Clap.

Monólogo que é peça de teatro com o mesmo nome, “O Lado Esquerdo”, o seu livro seguinte, mostra um “lado esquerdo” nada transparente, antes “sinistro, pavoroso, funesto, desgraçado, que não sabe perdoar, mas ainda sabe falar de amor.” Mulher com muitas mulheres dentro, “O Lado Esquerdo” inclui no seu seio a própria escritora, no que tem de “feminina e feminista”, em cujo lado direito -“diurno e divino” - podemos encontrar “Sophia, Adélia, Adília, Rita, Natália, Hélia, Hilda, Matilde, Florbela, Filipa, Raquel, Regina, Rosa Alice, Ana Luísa, Maria Teresa, Maria do Rosário e tantas outras”. Com a conversa a aproximar-se do final, tempo ainda para “Os Anjos Não Morrem e Tu Morreste Duas Vezes”, tempo de afectos e de leitores perigosos, tempo de contos (o mais antigo dos quais com quinze anos) onde cabem as preocupações da escritora, do trabalho precário à violência de género, dos dramas do envelhecimento ao analfabetismo nos dias de hoje. Nas respostas às questões do público, Marta Duque Vaz voltou a pegar na ideia de sonho, citando Lygia Fagundes Telles para dizer que “[é] preciso amar o inútil. Plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar”. A finalizar, um repto àqueles cujos escritos merecem sair do escuro das gavetas, oferecendo-se aos leitores num abraço: “Temos de estar preparados para não acontecer; não devemos é estar preparados para não tentar.”

domingo, 13 de agosto de 2023

LIVRO: "Os Anjos Não Morrem e tu Morreste Duas Vezes"



LIVRO: “Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes”,
de Marta Duque Vaz
Ed. Kalandraka Editora Portugal, Agosto de 2023


“Paravam a conversar cinco minutos, perguntavam por Henrique, se a escola lhe estava a correr bem. Foi numa dessas conversas ocasionais que Laura descobriu qual era o seu número. Enquanto esperava para entrar na cabine de gravação, uma modelo portuense, apaixonada por numerologia, pediu-lhe o nome completo e revelou-lhe o “seis” como o seu número de vida. E por isso, quando reparava numa raspadinha com esse algarismo, Laura apostava, acreditando que, por obra de Pitágoras, lhe pudesse sair alguma maquia que lhe permitisse ir ao dentista e, quem sabe, colocar dois dentes definitivos na gengiva cansada.”

Ainda a cheirar a tinta fresca, é com entusiasmo que abraço “Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes”, o mais recente livro de Marta Duque Vaz. Súmula de contos feito de anjos, mas também de alguns fantasmas (não lhes chamaria demónios), o livro é revelador da enorme generosidade e coragem de uma autora que não se inibe de se mostrar nele por inteiro. A autenticidade que emerge de cada palavra faz-se partilha num porta moedas da Parfois ou num poema de Kipling, num workshop de cianotipia, num carro em segunda mão comprado no OLX, no trabalho a recibos verdes, no Corega na prótese frouxa, na Helena Sarmento a cantar Zeca ou Adriano, num copo de Charamba Reserva, num vale de compras, numa iogurteira redonda de cor de laranja, num baloiço azul no fundo do quintal ou nas pratas alisadas dos chocolates Regina. Uma interminável lista de pequenos nadas de que a vida é feita e nos quais se cruzam todas as vidas. Sorrimos ao vê-los passar pelas nossas mãos e sabemos que há um milagre de empatia a acontecer.

Entre a descoberta do ser e a improbabilidade do estar, Marta Duque Vaz tanto aborda a condição da mulher - “nascer homem é uma espécie de fundo de garantia para uma existência absolutamente livre” -, como se debruça sobre a humilhação dos idosos, a inocência das crianças ou o analfabetismo nos dias de hoje. A geografia tanto pode variar entre a grande metrópole que é S. Paulo, no Brasil, e uma aldeia minhota próxima do mar, mas é o Porto, onde a autora vive desde os 19 anos, que se oferece por inteiro aos avanços e recuos de uma narrativa rica de sentimentos e emoções. Este Porto da Lello, do Majestic, da Estação de S. Bento e da velha Arcádia; dos Jardins de Serralves, do Palácio de Cristal e de novo da Estação de S. Bento (a vontade de partir?). Um Porto que se atravessa de carro a ouvir Melody Gardot e o seu Quiet Fire, ou se percorre a pé, de Cedofeita à Cordoaria, entre o Piolho e uma sábia araucária. Um Porto que se desvenda em lugares que muitos encontrarão dentro de si.

Em doze contos, tantos quantos os meses do ano, Marta Duque Vaz convida-nos a reflectir sobre o preconceito de género ou os conflitos de gerações, mas dá igual atenção a questões que só na aparência podem ser consideradas pueris, como um Menino Jesus em cima das palhas coberto de algodão em rama ou um namoro sazonal que não vingou. São muitos os mundos de Marta Duque Vaz, mundos de um mundo mais vasto, interior, onde escrever se revela num acto de amor e de cuidar. Também de partilha. Por isso nos mostra como um canino e um incisivo lateral podem ser travão à aproximação entre um homem e uma mulher, faz de um vestido verde uma sinfonia (ou de como a vida é feita de encontros inesperados), apresenta-nos uma fotógrafa aprendiz de Cesariny e põe um corta-papéis no centro de um mistério. Doce e delicada, a escrita de Marta Duque Vaz coloca com frequência um sorriso no rosto do leitor (por vezes, uma lágrima também). Calmamente, a sedução faz o seu caminho. “Ama como a estrada começa”.

terça-feira, 24 de maio de 2022

TEATRO: "O Lado Esquerdo"



TEATRO: “O Lado Esquerdo”
Texto | Marta Duque Vaz
Encenação, dramaturgia e adaptação | Daniel Freitas
Figurinos e cenografia | Paulo Alvarez Veloso
Voz off | Pedro Ramalho
Interpretação | Sonja Valentina
50 Minutos | Maiores de 16 Anos
Coliseu do Porto (caixa de palco)
22 Maio 2022 | dom | 19:00


Desejar, sonhar. Resistir, desistir. Insistir. Ousar. Isto é António e António sou eu. Somos nós quem, quase há seis meses, observamos longamente o lado esquerdo de Isabel. Da nossa secretária, de segunda a sexta, todos os dias úteis. Aos fins de semana sentimos a falta do seu lado esquerdo. Na verdade, sentimos também a falta do seu lado direito. Ao contrário de Isabel, nunca gostámos de assimetrias. Precisamos de lhe dizer isto, de o partilhar, de afastar o tormento de alimentar fantasias só nossas. Pode ser um acto egoísta, mas está na nossa natureza o querer conhecê-la inteira. É por isso que lhe escrevemos este email. Sabemos que, quando o abrir, o embaraço irá tomar conta de nós, sentados a uns palmos apenas dela. Por isso lhe pedimos que não nos olhe enquanto lê, que tenha fair-play, que considere o momento decisivo. Sabemos que ela sabe que a melhor forma de assustar alguém é ser sincero. Queremos mostrar-nos sinceros naquilo que lhe dizemos - a luz a uma certa hora do dia que a desvenda em sensualidade, as migalhas de bolacha caídas no decote, a cor do verniz a combinar com o bâton que raramente põe, o perfume que emana do seu lado esquerdo. Acreditará ela na nossa sinceridade? (Assustar-se-á?). Estaremos nós a ser sinceros?

Com texto de Marta Duque Vaz e interpretação de Sonja Valentina, “O Lado Esquerdo” é uma peça que se (des)enreda camada após camada, tantas quantas as mulheres que cabem nesta Isabel, “nuns dias treze, noutros dias sete, noutros apenas duas ou três”. São elas que respondem a António, que se expõem sem subterfúgios e sem máscaras, em toda a sinceridade. Elas, sim, assustadoras. Porque de uma força e de uma coragem sem limites, mesmo se apenas falam de maçãs “bravo de Esmolfe”, de famílias normais onde não há mentiras, da felicidade de terem uma janela voltada para uma árvore que as vê crescer, de poetas que lhes acertam em cheio sem que lhes apontem ao coração. Ou nos mostram o quão ténue pode ser a linha que separa o fácil do árduo, o bem do mal, o dar do receber, o santo do serial killer. Escutamos sem conseguirmos olhar nos olhos estas mulheres. O rosto baixo, contemplamos os muitos sapatos desirmanados pelo chão, uma vela acesa no colo de um Buda, a trinca numa maçã, o velho gira-discos. Ombro a ombro, em sobressalto, escutamos. E sentimo-nos desconfortáveis por nos sabermos todos António.

Peça de teatro, “O Lado Esquerdo” é também um livro, com palavras de Marta Duque Vaz e imagens de Carla de Sousa, acabadinho de editar (a sua apresentação teve lugar nos momentos que antecederam a primeira de duas representações no Coliseu do Porto). É nele que se baseia o excelente trabalho de texto que permite dar espessura ao monólogo aqui representado. A subtileza com que nos é apresentado este António que apenas escutamos, as suas palavras e a forma como as profere, são alimento para o fogo que irrompe do mais fundo destas mulheres. Tensa ou resignada, furiosa ou ardente, sempre solta e imensamente livre, Sonja Valentina é enorme na forma como sustenta um texto com esta força e o recheia de momentos onde “o medo, a coragem, a calma ou a raiva, continuam a movimentar-se em distâncias curtas dentro do [meu] peito”. Preso na delicada teia de emoções que se desprendem de cada verdade partilhada, o espectador sente que é chegada a hora de encher a sua vida de discos e de quadros e de cores e de livros. De papagaios de papel e de puzzles aos quais não falte a última peça. De cartas de amor e de beijos em sorrisos quentes e húmidos. De um café, numa esplanada à beira-mar, com uma mulher de nome Isabel.

[Foto: Carla de Sousa | https://www.facebook.com/sonja.valentina]