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domingo, 10 de agosto de 2025

LIVRO: “A Chuva Pasmada” | Mia Couto



LIVRO: “A Chuva Pasmada”,
de Mia Couto
Ilustrações | Danuta Wojciechowska
Ed. Editorial Caminho, 2004 (4.ª edição, Agosto de 2024)


“Estanquei as pernas, sacudi a cabeça. Tudo aquilo me surgia sem a devida realidade. O avô, por exemplo, segurava uma cana de pesca. O fio pequeno e o anzol ficavam suspensos a uns palmos do chão. Pescava no ar. Haveria, dizia ele, sempre um peixe que não saberia separar as águas. O avô, mais os seus ditos. Enquanto fingia pescar, os olhos fixavam um inexistente horizonte. Pensava no nascimento da bezerra?”

Os livros de Mia Couto são sempre um milagre. Profundamente enraizados na cultura moçambicana, têm para oferecer as cores, os sons, os aromas e os sabores dessa porção oriental de uma África que o viu nascer há 70 anos. Tal como acontece com o conjunto da sua obra, a prosa está envolta numa sonoridade única que lhe acrescenta autenticidade e lirismo. Vestido de poesia, “A Chuva Pasmada” é um primor de realismo mágico, onde o natural e o quotidiano se mesclam com o fantástico e o sobrenatural. Também aqui vamos encontrar um significativo conjunto de elementos místicos, espirituais e fantásticos, em convivência estreita com o dia a dia simples, no qual a inocência das crianças e o conhecimento milenar dos anciãos ganham expressão e ajudam a reflectir sobre as questões universais da humanidade. Daí que não seja estranho que avô e neto se assumam como os pilares desta história, fazendo girar à sua volta os mundos do saber e da descoberta em matérias que cruzam identidade e memória, conhecimento e afirmação, representação pessoal e condição humana.

Um avô e um neto, sim. Mas também um pai e uma mãe, uma tia e… Ntoweni. Seis personagens que, tal como Neruda, irão “saltar para a água para cair no céu”, ante um gotejar sem chuva, um cacimbo sonolento e espesso, uma chuva pasmada. Chamar-lhe-ão chuvilho e rirão muito, para logo perceberem que a indecisão da chuva não é motivo de alegria e que a diferença entre andar e nadar são duas letrinhas apenas. Feitiço, maquinação de quem queira mal aos habitantes da aldeia, obra dos fumos da nova fábrica ou castigo de Deus, a inundação sem chão faz com que histórias adormecidas rompam à superfície: O homem morto num abraço, um barco que desce até ao mar largo, um rio que nasce de uma cabaça quebrada no chão, roupa lavada solta na corrente, um filho que se vê numa gota de chuva. Tudo muito bem arrumado numa mesma gaveta onde cabem milhares de arco-íris a luzinhar à volta de uma nuvem, um português falado com mais ondas que curvaturas, a certeza de que antes ao sol do que mal acompanhado, uma cadeira sagrada ou uma tia a rezar na pequenina igreja: “Pai nosso, cristais no Céu, santo e ficado seja o vosso nome.”

O leito seco de um rio, uma ponte em ruínas, um punhado de casas pobres, uma tabuleta de letras indistintas onde outrora estivera gravado “Sembora”, o nome da aldeia que os habitantes esqueceram. Também uma fábrica, com o seu ruído constante, os seus fumos, o seu patrão branco. Mundo deste nosso mundo, a aldeia e os seus habitantes parecem reger-se por leis diferentes, do domínio do sobrenatural, servindo de modelo ao olhar de Mia Couto e à sua necessidade de contrapor as realidades mais divergentes. Na representação dessas identidades, o autor questiona a visão sobre o homem africano, sobretudo os arquétipos de pureza ou autenticidade ainda presentes, bem como os lugares-comuns da sua representação: as crendices, a feitiçaria ou a sexualidade. Conceitos como a identidade cultural ou o conflito entre o olhar europeu e o periférico num contexto pós-colonial fazem vir ao de cima os estigmas supremacistas que persistem numa lógica colonizadora. É Moçambique ainda a encontrar o melhor rumo, toda uma sociedade em contínua construção, cinquenta anos volvidos sobre a independência.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

LIVRO: "A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos"



LIVRO: “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”,
de Marta Duque Vaz
Ilustração |  Danuta Wojciechowska
Ed. Paulinas Editora, Setembro de 2023


“ – A essência das palmas está na admiração.
– As pessoas batem palmas porque estão atentas.
– É muito importante receber palmas em vida.
– É muito bom sair de cena sob uma salva de palmas.”

Bater palmas. Creio que seria possível escrever um livro inteirinho a falar daquilo que é, mais do que um acto social, um gesto de comunicação por excelência. Batemos palmas (e atiramos beijinhos) desde a mais tenra idade, antes mesmo de sabermos falar, como primeiro passo de um processo de interacção intimamente ligado ao desenvolvimento social e cognitivo. A mãe a cantar “bate palminhas que a mamã dá sopinhas, quando o papá vier dará o que tu quiseres” é uma memória viva da minha infância, embora esteja em crer que a capacidade persuasiva da minha mãe para que eu comesse a sopa tivesse de ir muito além da cantilena. Capazes de exprimir as mais díspares emoções, as palmas são sinal de júbilo mas podem igualmente ser motivo de embaraço (quando a destempo, no intervalo entre dois andamentos de uma peça clássica, por exemplo). Espontaneamente ou “a pedido”, fazemo-nos ouvir através delas. Batemos palmas com força ou de forma discreta, com vivacidade ou desinteressadamente, como forma de agradecer ou de chamar a atenção. Batemos palma com palma, com apenas uma das palmas no tampo da mesa e até batemos palmas com os pés.

Pois é de palmas que “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos” trata, abrindo ao leitor uma nova área do conhecimento, a Aplausologia, e lembrando a importância desse “pequeno-grande gesto, capaz de produzir verdadeira magia”. Reeditado em Setembro do ano passado, o livro viu a luz do dia em Maio de 2015, com ilustrações de Alexandre Esgaio. A beleza e significado da sua mensagem fez com que conhecesse novos públicos por via do teatro, tendo sido levado à cena em 2016, no Rio de Janeiro. Há muito ansiada, a reedição surge agora pela mão da Paulinas Editora e com ilustrações de Danuta Wojciechowska, abrindo a mais leitores a história desta Senhora Clap, uma pessoa muito especial e que é uma sumidade a bater palmas. Com ela vemos “que a palma das mãos é um lugar especialíssimo, reservado a grandes sentimentos e emoções, exatamente como o coração”. Ou que não devemos ter receio de bater palmas mesmo quando somos os únicos a fazê-lo. Ou que as palmas fazem de nós pessoas mais transparentes, deixando ver claramente as cores da ternura e do amor. Ou…

Neste livro de Marta Duque Vaz, encontramos a beleza das coisas simples, ditas com o coração. Lemos que “as palmas que não se sentem perdem o som” e ficamos perplexos perante a verdade deste aparente paradoxo. Depois olhamos para as ilustrações, para aquela profusão de formas e de cores, e apetece-nos bater palmas. Porque “amar é bater palmas”. São apaixonantes os desenhos de Danuta Wojciechowska, na cor com que nos cativam como na luz que derramam sobre os sentimentos mais doces e delicados. Caules que se abrem num abraço, pétalas que são dedos, peixes que invadem os ares, crianças e flores fundidas numa profusão de sóis, trapezistas e cantores, actores e uma bailarina (mesmo que no interior de uma caixinha de música). A voz das palmas como o canto dos pássaros... É admirável a forma como a ilustradora soube interpretar o sentido do texto e, com os seus desenhos, enriquecê-lo, acrescentando-lhe novas camadas, visões inovadoras, leituras complementares. Um livro de histórias e memórias, afectuoso e terno, a valer uma enorme salva de palmas às duas, escritora e ilustradora, por tão bem saberem “desenhar” esta história.